**O CARDÁPIO E O CEGO** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
Se é que se pode acreditar as únicas esperanças são
aquelas que se esvaíram, perderam-se, sei como hei-de chamar a esta qualquer
coisa vazia e desumana que, hoje, habita em mim. A solidão olha-me de soslaio.
Um estranho retorna ao amor. O infinito os olhos procuram e entendem por
visionar, mas a distância se perde, efemeriza-se. O sol, com dificuldade,
filtra entre a folhagem. Os pássaros da terra e as aves da serra nessa folhagem
se abrigam, vencem os ventos e as grandes chuvas.
De todas estas evocações do pretérito que tenho
vivido na grande efusão dos primeiros dias nasce-me um imenso bem-estar, uns
redobramentos que reuni em desejos enormes de intimidade. Agora, tenho inúmeras
responsabilidades, sou o defunto de Incitatus da Fazenda dos Bois: aqui começa
a eternidade, em vida, eram os desejos, assim o creio ainda que falecido por
toda a eternidade. Inicia-se a eternidade; impõem-se-me obrigações de construir
estrebarias.
Além do esquife e da terra, há um coro de pardais
na árvore que dá sombra ao meu túmulo, um flamboyant, e não pára um minuto
sequer, e tudo vai adquirindo esplendor e glória no infinito, procurando
registrar o que acontece e desaparece num passo de mágica e de horror.
Tristeza, melancolia esvaeceram-se. São olhos em
nenhures. Não quero cantar as eternas melodias suaves e singelas. É
reconfortante ouvir as vozes, as notas de beleza e simplicidade. Observo e vejo
através da beleza. O silêncio, apesar das ondas e dos pássaros, é próprio desse
campo tão próximo às serras. A alma devia ser forte como os seus braços e
grande como as suas mãos.
O ceguinho chegou ao restaurante – todos já o
conheciam, andava livremente pelas ruas seguindo a sua bengala, as ruas da
cidade eram estreitas, os motoristas andavam dentro da velocidade permitida,
trinta quilômetros; não tinha ele qualquer dificuldade ou medo -, pedindo um
cardápio em braile. O garçom, desculpando-se, disse que não tinha. O cego então
pediu uma colher suja da cozinha.
O garçom achou estranho, mas pegou a colher usada e
deu ao ceguinho, que lambe a colher e comenta:
- Hum... Camarão, com arroz à grega, pode me trazer
esse prato mesmo!
No dia seguinte, a mesma coisa:
- Hummm, estrogonofe de frango... pode trazer esse
prato mesmo.
A mulher que estava no caixa prestou atenção aos
seus movimentos, comentando, era como se estivesse vendo as suas mãos, mesmo
não olhando para elas, tinham os movimentos tão livres quanto aos que enxergam.
Passou-se uma semana, sempre a mesma coisa, o cego
pedia a colher e dizia o prato. O garçom, querendo subestimar o ceguinho,
resolveu aprontar. Quando o ceguinho pediu a colher, o garçom chegou pra
cozinheira, que, aliás, era sua esposa, e disse:
- Margarete, estou a fim de aprontar uma boa para o
cliente. Pega essa colher e passa na menina!
A mulher atendeu ao pedido, e o garçom levou a
colher para o ceguinho. Este colocou a colher na boca, pensou um pouco e falou:
- Hum! Rapaz, não vai me dizer que a Margarete está
trabalhando aqui!
Com as mãos pode-se transformar as coisas com
facilidade. A partir do momento que a mulher com a mão passou a colher naquilo,
a mão do ceguinho levou a colher à boca e descobriu que a Margarete estava
trabalhando lá. Uma mão lava a outra, ambas lavam tudo.
Gostaria de lançar um olhar ao silêncio, este
silêncio irreverente que se faz neste instante, cuja porta vejo eternamente
aberta, de fio a pavio, e ainda mais a um silêncio atrás deste que se faz neste
momento. Ui! Que decoração rica, que espelhos e porcelanas!...
(**RIO DE JANEIRO**, 20 DE MARÇO DE 2017)
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