**FORMOSURA CRISTALINA DO SENTIR** PINTURA: Graça Fontis PROSA: Manoel Ferreira Neto
EPÍGRAFE:
Não creio que a palavra se encontre de qualquer modo mais
longe das contingências, dos sonhos e esperanças do que a acção "real", estão bem próximas, resta a síntese de ambas: con-duz ao Ser por si mesma e pela sua própria pureza. (Manoel Ferreira Neto)
A suntuosidade do esplêndido ápice do prazer a manifestar os espectros
eternos e perenes da ternura, tornando o viver um simples ato de credulidade. A
formosura cristalina do sentir a presença do clímax imortal a revelar as suas
plenas imagens de júbilo, os seus dons de perseverança. A pomposidade efêmera
do gozo de sensações da contingência a derramar os risos solenes da esperança,
os escárnios polidos da espera, a ironia nobre da intuição. Nobre desejo de
sentir as profundezas do coração, em seu segundo mais sublime, ascendendo ao
mais longínquo - se for poucochito sarcástico poderia assim ter escrito,
long-ínquo, abrindo um espaço para a ironia, escrevendo, long-iníquo, iníquio,
longe e iníquio -, cume da paz o sentimento nítido do alvorecer para o viver. O
homem re-cria para dar sentido ao seu instante-já, enquanto Deus cria para se
orgulhar de quem re-cria para intuir a Verdade da Vida.
Digna vontade essa de lançar-me nítido e consciente ao fundo de prazeres
reais. A fugacidade do olhar inscrita nas atitudes sérias e sinceras faz-me
recrudescer o sonho de futuro. Sinto permanecer num sítio de mim e, através de
sua percepção e veracidade, envio à superfície as sensações buriladas e
polidas.
A emoção é o cristal onde se espelha toda a beleza, todo o esplendor,
maravilha e inutilidade do mundo. As flores de seu carinho são aparições
fugidias. De sorte que a consciência delas serem apenas aparições fugidias. As
palavras sinceras e verdadeiras, humanas e profundas são as flores de amor
profundo, sujeito à ardente inspiração de um peito mais aconchegante. No vazio
do silêncio, destaca-se o respirar cadenciado de um velho.
A carne do mundo abre uma fissura, um corte de gordura, sebo, de
gelatina e manteiga, o sangue jorra quente e espumoso. Redescubro a luz dourada
que brilha e reluz suave, meiga, serena sobre os altares do nada no fundo da
penumbra. Re-acho o brilho cinzento que reluz e brilha dócil, incandescente no
mistério do cenário do cheiro frio de lama, quente da poeira e do vazio que
reina e impera sob as arcadas sombrias do mundo, visto através da retina dos
olhos. A eternidade invadida por uma tenra e pueril melodia do silêncio, da
inexistência completa e absoluta do som.
Voz saída do espanto, susto. Camadas estranhas podem descer os
sofrimentos. Tudo parece oscilar, enfurnado no surgimento de inteira realidade.
Candeia suspensa por único vento, destinado a ser lembrado pela inatingível
ternura de sonhos. Carne esmagada ao calor do sossego e da dúvida guarda na
odiosa timidez o infinito. Medo do desconhecido? Medo do conhecido? O rosto
irrisório petrificado numa desditosa penumbra. Oculto o riso, dilacerando o
desmaio mortal de desejos descarnados.
Só o que re-cria o fim dos homens e o que dá sentido e o futuro à terra,
só esse germina a semente do bem e do mal de todas as coisas. Sofrimento sem
igual isto de re-criar as situações passadas e os sonhos com a intenção de
vislumbrar o presente. Resta que a vida se torna um imenso passado. Isto de não
haver tempo em minha obra não é algo arbitrário e gratuito, mas sim uma
realidade que vivo a todo instante, e creio que começa de fazer-me sofrer um
pouco mais.
Um silêncio de vozes brilhantes e reluzentes, de multidão clara e
nítida. Um deserto de sons esvoaçantes, de sons que voam, somem e aparecem nos
raios amareliçados do sol. Algo dentro de mim amolece, descontrai-se. Escorrem
pingos de ar e de minutos sobre as folhas verdes. O céu translúcido,
transparente, luzidio, do qual escorrem ondas de luz, de brilho, envolvendo o
denso dos instantes, um denso abarrotado. Sons que riem e gargalham no
esvoaçar. Sons que estiram carreira atrás do homem de cabeça baixa, pensando nas
suas amarguras, nas suas dores, nos seus remorsos, no seu mais profundo
aborrecimento. Uma viseira curta de som esvoaçante repousa no dia cortado de
brilho e cenário frívolo, no topo das pedras.
Tudo acontece e tudo desaparece no ar. Palavras num papel branco. E tudo
acontecendo nelas. Há instantes em que desejo sumir, embocar-me, infiltrar-me
nos sentimentos e emoções, com a intenção de nada mais sentir. Impossível.
Sinto e vejo tudo desfilando aos meus olhos. Mergulho num silêncio povoado pelo
pulsar de meu coração, pelo escorrer lento e paulatino de meu sangue nas veias,
carícias suaves e aborrecidas nos ossos de meu crânio. Suas volúpias mordem o
ideal. Suas tesões degustam os sonhos e fantasias. O sensual desfruta dos
desejos de felicidade e paz num mundo completamente submerso. Abro a boca,
sentindo o seu abrir lento e paulatino. Presto atenção na língua que quer fazer
um barulho, mas se limita a dar uma mexida e repousar inerte sobre o fundo da
boca. O nariz faz um gesto imperceptível. Os olhos dão umas piscadas rápidas.
Um esgar facial.
(**RIO DE JANEIRO**, 18 DE MARÇO DE 2017)
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