DELÍCIA DE MISÉRIA E FLAGELOS - PINTURA; Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
Bons dias!
Cara feia é fome.
A fome, sob qualquer “pers-pect-iva” do olhar, é
uma des-graça. Não há quem não expresse na cara mesma a sua feiúra, e põe
feiúra nisto. A fome simples, aquela que não faz longos dias que o estômago não
vê nem a imagem de uma côdea de pão ou um bago de feijão, não revela tanta
feiúra, é uma feiúra de nível mediano, mas quando já se perdeu as contas dos
dias que nada se come, o estômago já está muito distante das costas, a feiúra é
indescritível, inominável, Mefistófeles e seus asseclas, acompanhados das almas
penadas, correm léguas, é mais que assustadora, junto com ela vem a careta de
um palmo de língua. Fome é fome, se se for explicá-la nos conformes da
realidade e do real, ela aumenta ainda mais, mais que o cordão dos bajuladores.
Muito embora olhar o que é feio seja uma das coisas
mais desagradáveis, conforme a sensibilidade e o senso de belo e beleza a
angústia surge que é uma beleza, correndo-se o risco de se tornar crônica, só
não o sendo o Barroco que é o feio belo, é arte, sensibilidade, senso e instintos
ressentem, não é algo que resulte em danos emocionais e psíquicos, não
desatina. A cara por mais feia que se mostre não vai fazer tremer ou
tremelicar, os ossos dançarem ao ritmo e melodia do silêncio, não arranca
pedaços como fazem os cães com os seus caninos afiados, é apenas uma cara feia,
os motivos podem fazê-la mais feia ainda, de qualquer modo é cara feia.
Por vezes, queira ou não, sou homem tão comum e
simples quanto quaisquer outros, faço cara feia diante de certas situações,
olhando-a com esmero no espelho, trato de desfazê-la num piscar de olhos, fico
com vergonha de mostrá-la publicamente, a feiúra que é natural e da condição
ninguém mais dá atenção, passa batido, mas a língua se move tanto que entra em
desatino, entra na musicalidade da matraca, língua tagarela faz mais efeito que
cara feia, esta o é em silêncio, sinta-se e adivinhe-se o que diz, o que
expressa, a língua tagarela ressoa a plenos pulmões, ouve-se-lhe a léguas e
milhas de distância de modo claro e transparente, o “i” sem acento já descasca
pepinos ou manjocas. Não seria o caso de dizer: “Língua tagarela, para mim, é
sede”, no meu caso que faço cara feia para a minha própria contemplação? A cara
feia com o tempo passa, outras cositas quotidianas surgem, é esquecida ou
relevada, mas a língua tagarela fica nos anais da história, nada há que consiga
trazê-la a sete chaves. Se me dissessem língua tagarela ser sede, retrucaria
com toda humildade que me é peculiar em todos os momentos; “Se quiser posso
saciar sua sede com uma dose caprichada de saliva”, resposta esta nascida à luz
de que nenhuma língua tagarela sem limites sobrevive se não houver saliva na
boca, e como a minha tagarela mesmo faz-se necessária muita saliva para
mantê-la em forma. São as tais respostas atravessadas, não havendo no mundo
criatura de Deus que não torça o nariz, não ponha a língua fora da boca, não
ofegue, a cara não fique feia, terrível, horrorosa, horrorível. Ninguém nunca
mo dissera, isso não retruquei, só agora hipoteticamente concebi isso, seria
resposta sem contra-resposta, mataria a fome da cara feia com um apetitoso sapo
seco, engolido para sempre, o silêncio absoluto por eterno.
Arrependo-me por não ter tido em mãos uma câmara
fotográfica para filmar as centenas de caras feias a que assisti diante de
muitas situações, caras feias para todos os gostos e apetites. Agora mesmo
nestas garatujas aprazer-me-ia descrever, relatar, uma delas para exemplificar,
juntamente com o que ocasionou. Não o fiz. Fora a vontade de Deus, a imagem de
sua criação e criaturas ficaria por sempre denegrida e escarnecida.
Contudo, em poucas linhas, posso dizer algo que me
acontecera. Numa noite, de lua cheia e estrelas brilhantes, fomos minha esposa
e eu comer uma porção num restaurante, melhor, um botequim metido a restaurante
de classe e índole. Pedimos carne seca com mandioca. A carne estava dura,
salgada, a mandioca até que razoável. Na hora de pagar a nota, dissera eu ao
proprietário que a carne estava muito dura, salgada, só a mandioca contava a
história. Fizera cara feia, dizendo-me que eram os meus dentes que não
funcionavam, estavam mais que vencidos na lenda da mastigação e trituração.
Cara feia fizera, e cara feia mesmo, até as narinas se contorceram e
diminuíram. O que fiz diante de sua afirmação? Retirei a dentadura inferior e
lhe dissera que se certificasse de que os dentes estavam vencidos, fazendo hora
extra. O botequim com aparência de restaurante de cinco estrelas estava
entupigaitado de gente.
A fome da humanidade é secular, milenar. Fome de
justiça, paz, solidariedade, fome de amor, compreensão, compassividade, fome de
amizade, carinho, ternura. Não são necessários olhos de lince para ver a nu e
cru a cara feia da humanidade, mais que assustadora, mais que amedrontadora, e
a cada dia que passa cresce, cresce, o aconselhável mesmo é andar de cabeça
baixa, não olhar para ninguém, para evitar viver correndo pela vida, quanto
mais se corre mais se vê cara feia, e como não se é possível sair do mundo,
esconder-se noutro lugar ou viver, conviver com outra humanidade não faminta
secular e milenarmente, é sempre estar picando a mula, que é até uma espécie de
defesa, a fome secular, milenar é transmissível, pior que qualquer doença
transmissível, cara feia e careta são as conseqüências inevitáveis.
Caras feias não são, ou não revelam, só a fome, a
natureza é simplesmente caprichosa, ao mesmo tempo que privilegia os homens com
Angelina Jolie ou Giselle Bündchen, as mulheres com Robert Redford ou Humberto
Martins, põe no mundo cada tribufu daqueles. Caras feias são manifestadas
diante das situações, a mais feia que conheço é a de velório, o medo da morte,
e são cada careta que as pessoas fazem nas poucas horas de velação, fossem
filmá-las, daria um filme de terror daqueles, com direito a concorrer com
vários Oscars, melhor ator/atriz, melhor figurino, melhor cenário... A raiva, o
ódio também revelam caras feias. Não se pode esquecer as de ciúme, inveja,
despeito, que são bem interessantes, interessantíssimas até, os olhos brilham e
a saliva escorre queixo abaixo, a respiração ofegante. Creio que destas caras
feias todas nasceu isto de dizerem “cara feia, para mim, é fome”.
Quem liga para cara feia? Não diz qualquer coisa,
nada comunica, não põe mesa, nem mesmo o forro, não causa nenhum medo, mesmo se
se lhe encontra na rua à meia noite, próxima ao cemitério, às três horas da
madrugada, horário de recreio das almas penadas, podem passear pelo mundo à
vontade, retornando até às seis horas, quando o dia começa a clarear. Ligar
para cara feia é pior que ligar para o que o povo diz – morre-se varrido da
silva, se se der atenção à língua popular, sente-se a delícia da miséria e
flagelos, se se der atenção para as caras feias.
Qualquer cara feia, seja devido a estas ou àquelas
situações ou circunstâncias, que pintam no pedaço, para me utilizar de uma
linguagem e estilo vulgares, logo se ouve a plenos pulmões: “cara feia, para
mim, é fome”. Particularmente, jamais lhe dei a mínima atenção, mesmo sendo o
responsável por ela, isto porque não vai consertar a minha atitude ou ação, gratuidade
ou arbitrariedade, o passado não tem conserto, pode concertá-lo ao ritmo do
jazz ou blues, arranjados à luz das mofas e sarcasmos, como Bob Dylan o fizera
na música Desolation Row, arranjara as faces e lhes dera outros nomes, o máximo
que pode fazer é puxar-me as orelhas ou dar piparotes no meu nariz adunco para
não mais incorrer nos mesmos erros. Também se não for de meu interesse
recauchutar o meu caráter e personalidade, deixar as minhas condutas espúrias
para trás, não seria cara feia que isto iria mudar, ao contrário pode ser um
baita incentivo e impulso para continuar, não desejo apenas ver cara feia, isto
é tiquinho para mim, quero ver caras monstruosas e caretas de mais de um palmo.
Seria que os homens em uníssono me fizessem cara
feia, se eu dissesse com todas as pompas, daquelas pompas que revelam a verdade
é inconteste, não há o que argumentar contra, que a alma curvelana tem galerias
e corredores dentro de si, esconderijos, masmorras? O curvelano conhece bem os
caminhos sinuosos para o caos, abismo, crateras, buracos; conhece as veredas
tortuosas das invejas, ciúmes, despeitos, para a justificativa e explicação
insossa de suas incapacidades e incompetências de realizar suas próprias vidas;
conhece as trilhas das hipocrisias, farsas, aparências, falsidades para
conseguirem com perfeição e absolutidade os seus interesses, satisfazerem as
suas vaidades singulares e sui generis, nada há neste mundo sem cancelas que
sejam tão eficientes quanto estas digníssimas dimensões da natureza humana. O curvelano
já se acostumou tanto com estas cositas, já lhes rendeu todos os tributos e
graças pelos bens materiais adquiridos que não deixa de debulhar um terço à
noite, antes de se entregar ao sono justo, de manhã, antes de se levantar da
cama, pedindo a Deus e ao diabo que não lhes deixe faltá-las, precisam delas
mais que a luz do sol ou o brilho das estrelas e lua para a sobrevivência.
Igualmente como toda coisa ama o seu símbolo, também o curvelano ama as nuvens,
para andar de cabeça para baixo, olhando os transeuntes fazendo o “footing”
pela cidade, durante o dia, nas pracinhas à noite, e tudo o que é pouco claro,
crepuscular, úmido e toldado. O incerto, o inacabado, o que se transforma, o
que está em crescimento, qualquer que seja a sua índole, tudo isso o curvelano
sente como “profundo”.
O curvelano arrasta o peso da sua alma, por vezes
pedindo e clamando que os ajude nesta árdua tarefa, que é chegar ao calvário e
ser digno de todos os méritos e virtudes, já lhes falta fôlego para continuar.
Arrasta o peso de todas as suas vivências, experiências. Tem dificuldade para
digerir os seus acontecimentos, nunca consegue “arrumá-los” a critério e rigor,
deixa-os ao léu, Deus e Mefistófeles cuidem para não se perderem na poeira das
estradas longas e cheias de curvas, isto para não dizer da poeira que suja os
sapatos e a roupa inteira, e nem água sanitária é capaz de torná-las brancas. A
profundidade curvelana não passa freqüentemente de uma “digestão”, difícil e
arrastada. Semelhante aos doentes crônicos, todos os dispépticos têm uma
tendência para o comodismo, assim o curvelano gosta da “franqueza” e da
“probidade”. Quão cômodo não é ser-se franco e probo! Talvez seja hoje o traje
mais perigoso e mais feliz que o curvelano sabe usar, esse ar familiar, afável,
esse pôr as cartas na mesa da honestidade curvelana. Sem dúvida que é a sua
arte mefistofélica propriamente dita, com ela pode “chegar ainda longe”, todos
os caminhos, trilhas e veredas estarão abertos para ele, as realizações todas
serão com efeito inomináveis e indescritíveis! O curvelano deixa-se ir, olha
com os olhos curvelanos leais, vazios – e imediatamente o estrangeiro o
confunde com o seu roupão! Noutros termos: seja a “profundidade curvelana” o
que se quiser – cá muito entre nós, leitores, acaso não nos permitimos
rirmo-nos dela? Agimos bem continuando a honrar também para o futuro a sua
aparência e bom nome e em não vendermos ao desbarato a nossa velha fama de povo
da profundidade. É inteligente para um povo fazer-se profundo, desajeitado,
bondoso, honesto, pouco esperto. Poderia ser até profundo!
Ninguém irá fazer-me cara feia, ombrear-se comigo
nas ruas e virar a cara de lado, mudar de calçada, atravessar a avenida
correndo, sujeito a ser acidentado por um vereador que fala ao celular com a
sua secretária de assuntos aleatórios, sussurrar pelas esquinas todas as vezes
que passar, elencar todos os digníssimos adjetivos que elevam o caráter súcia,
por haver dito isto, haver rasgado o verbo. Não, de modo algum, ninguém iria
fazer isso comigo. Ao contrário, não haverá quem não vá me assediar, pedir-me
autógrafo, tocar-me a mão, agradecer-me com os olhos brilhando, faiscando,
alegres e saltitantes, o coração batendo acelerado, por lhes definir e
conceituar com tanto conhecimento e sabedoria, ninguém ainda o tinha feito,
será um povo reconhecido e aplaudido por todos os séculos dos séculos amém,
estava faltando alguém que tecesse considerações tão profundas, quem mostrasse
a índole, raça, estirpe, laia de nosso povo curvelano, ninguém mais irá se
esquecer de nós. Até haverá quem irá sugerir não apenas uma medalha de honra ao
mérito, isto é pouco, a sugestão será de meu busto de bronze na praça principal
da cidade, assim escrito numa plaqueta: “O único que nos honrou com as suas
considerações e reconhecimentos”.
Haverá alguém fazendo cara feia, dizendo a plenos
pulmões “cara feia, para mim, é fome”, se disser que os confins da alma humana,
toda sua extensão, até ao presente atingida, das experiências e vivências da
alma humana, os cumes, as profundezas e as distâncias dessas experiências, a
história inteirinha da alma até aos nossos dias e as suas possibilidades ainda
por explorar, essa é a reserva de caça destinada ao psicólogo nato e amigo da
“caça gorda”? Todavia, quantas vezes, matando cachorro a grito, diz para
consigo: “Ai de mim, que estou só! Tão só e com esta floresta imensa e virgem!”
Deseja então para si algumas centenas de auxiliares de caça e argutos cães de
caça que poderiam pôr na pista da alma humana, para aí perseguir a sua presa.
Pura inutilidade. Ele verifica sempre de novo intensamente, com amarga
decepção, frustração e fracasso, quanto é difícil encontrar auxiliares e cães
para tudo o que justamente aguça a sua curiosidade.
Não, não haverá quem me faça cara feia, ponha
palmos e palmos de língua para fora, por assim dizer. O que haverá mesmo são
aqueles olhares circunspectos, aquele arzinho de questionamento, aqueles que
perguntam ansiosos o que está havendo, o que estou desejando dizer com tudo
isso, o que estou insinuando através de palavras tão contundentes. Nada
entenderam, nada compreenderam. Sendo assim – não “assim sendo”, que é um erro
de senso e também gramatical, nos conformes da “última flor do Lácio”, pois que
iria comprometer-lhes até aos últimos fios de cabelo que lhes sobraram na cabeça,
que, inclusive, dera guarida a um boné para proteger os miolos dos raios fortes
do sol -, há-de se considerar que digo asnices, estão a faltar-me alguns
parafusos na cachola, afrouxaram-se ou se perderam na árdua tarefa de
compreender e entender as coisas do mundo e as hipocrisias humanas, endoideci
de vez, e neste caso não há que se fazer cara feia, sim cara de piedade,
comiseração, sou homem digno de dó, pena, sou homem necessitado de orações as
mais contundentes para Deus ter compaixão de mim.
Não haverá quem me critique, quem descasque os meus
pepinos ou manjocas, pois que nada mais, nada menos estou fazendo senão
reconhecer as idoneidades e dignidades de nossa índole de um povo de profundas
pré-fundidades, os curvelanos devem ser reconhecidos e considerados por toda a
humanidade, não apenas agora, que estamos ainda na idade da pedra lascada, mas
no futuro, quando forem apenas cristais. Fosse noutros tempos, só a imaginação,
dentro de mim mesmo, nas minhas entranhas não reveladas e virgens de todo, única
palavra destas iria dar origem a todas as caras feias, teria eu de pedir asilo
na Caverna de Zaratustra, de onde só saem aqueles que adquiriram outros
conhecimentos e sabedorias que enobrecem não apenas os instintos, mas os sensos
que estão nos pro-jetos de Deus, caso não quisesse ser queimado em praça
publica, decapitado pela guilhotina, enforcado na calada da noite. Antigamente
não existiam palavras sábias, hoje existem.
(**RIO DE JANEIRO**, 29 DE MARÇO DE 2017)
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