**LONGOS E IN-VERNOSOS JEJUNS** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
O espírito humano, à imitação da planta que
floresce do modo mais esplendoroso entre os não-conformistas, não-alienistas,
não-alienados e anticristos, alíás, onde sempre floresceu, na sombra, como a
violeta, embora com outro odor, deve seguir uma curva que o devolva ao seu
ponto de partida, um aclive que o leve ao seu lugar de origem ou declive que
identifique o seu habitat eterno – de origens escalafobéticas e risíveis (que
coisa, não?! E dizer que estamos em plena era da civilidade e modernidade!)
estamos os homens de todos os séculos com certeza entediados. Valha-nos
Deus!... Já nem ousamos mais questionar essa realidade, perguntarmos entre
ansiosos e esperançosos quando é que o tédio terá seu fim, pois que já nascemos
conscientes de que isto nunca será concretizado.
Não deveria eu estar-vos falando de alegrias,
felicidades, contentamentos, esperanças e fé, e estou agindo exatamente de modo
contrário, falo que a vida não vale um tostão furado, estamos iludidos quanto a
realização de nossos sonhos e quimeras, estamos todos condenados ao fracasso
universal. Quereis criar ainda o mundo diante do qual qualquer um de vós
possais ajoelhar-se; é esta a vossa derradeira esperança e a vossa última
embriaguez. Os simples, todavia, o povo, são idênticos ao rio por onde desliza
um barquinho e, no barquinho vão, imponentes e mascaradas, as apreciações dos
valores.
No início, falo deste estado maravilhoso em que se
encontram os divinos proscritos, onde o espírito se encontra, às vezes, lançado
como que por uma graça especial; digo que estes mesmos divinos proscritos
anseiam incessantemente à reanimação de suas esperanças e à sua elevação ao
infinito; mostram um gosto frenético e alucinado, muito embora em suas mentes e
imaginações estas palavras suscitem quase o mesmo sentido, a mesma lengalenga
sem sensos, posturas, idiotices sem limites e fronteiras, por todas as experiências
prazerosas e sublimes, mesmo que perigosas, mesmo que em demasia ininteligíveis
e portadoras de conseqüências as mais desastrosas; ao exaltarem suas
personalidades, o caráter lídimo e puríssimo de condutas, suscitam por um
instante aos seus próprios olhos o paraíso de segunda mão, objeto de todos os
desejos, orgias, e digo, enfim, que este espírito arrojado trigueiro e elevado,
sem o saber, até o inferno, confirma assim a sua grandeza original, o seu poder
magistral.
Perguntais-me, quem sabe bestificados, quem sabe
estupidificados, por não terdes ainda percebido – quem sabe devido ao tecimento
das idéias e pensamentos através de linguagem e estilo eruditos e clássicos,
mui bem trabalhados – qual seria o meu único defeito. Fazeis-me rir, senhores.
Qual é o homem neste mundo que seja repleto, cheio até às raízes dos cabelos,
de defeitos, erros, enganos? Todos os homens estamos mais do que entupigaitados
deles. Contudo, digno a responder-vos com franqueza e honestidade. O meu único
defeito é ser piegas; venero os esqueletos, já porque o são, já porque o não
sou. Não sei me explico. Tiro o chapéu às caveiras. Estive mesmo me perguntando
se os cadáveres que são enterrados em gavetas, se encontraremos suas caveiras
integras. Com efeito, em sepulturas normais, os ossos se espalham pela terra
até serem consumidos por elas.
Durante longas noites, em vossos estábulos,
dormindo à luz das estrelas, presos à carroça, no chão de terra dura, no capim
fresco e viçoso, contemplais alguma aranha astuta espreitando, que predica a
astúcia às próprias aranhas, ensinando: “É bom tecer sob as cruzes”.
Do jeito que as coisas vão, serei sim crucificado,
e, nessa época sem fé, tornar-me-ei Deus, mais importante que o próprio e seu
Filho. Não foi o Beatle John Lennon quem declarou: “Somos mais populares que
Jesus Cristo!”, o que levou centenas de pessoas a queimarem seus discos. Na
época de Cristo, Ele era o mais popular, nos anos ´60, eram os Beatles. A
dessemelhança era verdadeira: Cristo era Deus, os Beatles não eram Deus,
tornaram-se homens-deuses com a arte, talentos e dons que lhes habitavam o
espírito.
Era ele o meu ídolo, era apenas não, continua sendo
– então, quando ele canta com toda alma e espírito Happy Christmas não consigo
conter-me, deixo as lágrimas quentes descerem-me a face, também Stand by me,
interpretada por ele, ambas me sensibilizam bastante. Aquando de seu
assassinato, confesso-vos que andei perdido e confuso pelas ruas da cidade, não
me conformava com este seu desfecho. E até hoje me pergunto: “Como um homem
desse pode ser assassinado?”. Fora o primeiro ídolo que perdi, e não me
conformo com isso, o que ajuda a amenizar é quando passo o dia inteiro, sábado
ou domingo, ouvindo as suas canções. Há quando penso e sinto que se houvesse
vivido na época de Cristo, não iria conseguir sobreviver com a sua crucifixão,
não viveria sem a presença d´Ele. Não conheço ninguém que haja pensado que
talvez tenha sido esta a razão de Judas haver se suicidado.
Creio não ser necessário e nem conveniente
transformar o espetáculo em um comércio que visa apenas o lucro e o conforto,
fama e sucesso, imortalidade e eternidade, vender a alma para pagar as carícias
embriagantes e a amizade das parcas. Imagino um homem (poeta, filósofo,
cristão), um anticristo, colocado no árduo Olimpo da espiritualidade, à sua
volta as Musas de Rafael ou de |Mantegna, para consolá-lo de seus longos e
in-vernosos jejuns e preces assíduas, observam-no com seus mais doces olhares e
úmidos lábios, os sorrisos mais iluminados. O divino Apolo, mestre em tudo
saber, afaga e acaricia com seu arco as cordas mais vibrantes, ritmos mais
alucinantes, tons mais endiabrados e infernais. Abaixo dele, ao pé da montanha,
nas sarças e na lama, a multidão dos humanos, o bando dos apátridas, simula os
esgares da alegria e do prazer e solta urros provocados pelas dentadas do
veneno.
Não é a minha alma que aqui está em causa; o que
pode interessar-vos saber que meus pais tinham um dissabor em suas vidas, com
efeito faleceram com ele, jamais poderiam esquecer dele, o filho era em demasia
emotivo, chorava por nada, até por patetismo, e, sendo chamado a atenção, logo
as lágrimas deixavam de descer o rosto, e no lugar delas um semblante de alguém
arrependido e cheio de remorsos por esta atitude sem justificativa, chorar por
nada, e em conseqüência o arzinho cínico se revelava. Não cheguei a tomar surra
homérica devido aos cinismos, mas as orelhas ficaram vermelhas inúmeras vezes,
de nada adiantou, aumentou ainda mais, talvez por um gesto rebelde. Estive
indeciso se deveria ornamentar minha fala com esta explicação, ajudaria a
mergulhar mais nas palavras que pronuncio a todo instante. Está feito, sinto-me
mais à vontade.
Creio que de outro modo, noutras palavras,
conseguiria expressar-me melhor: a defesa é natural, cada qual para o que
nasce, os homens nasceram para se emaranharem nas garras da razão, outros para
se livrarem das moscas nada melhor que num sacolejo.
Devendo acrescentar que depois dos puxões de
orelhas, no meu canto a cabeça enchia-se de pensamentos e idéias as mais
estapafúrdias, como se estivesse pedindo desculpas a todos, atrapalhei-lhes os
momentos de prazer, alegria, almoço ou festinha de aniversário, e só porque o
marido dissera não saber mais o que fazia, se comprava uma bicicleta ou se
pedia o divórcio, fazendo-me emocionar às lágrimas quentes e efusivas.
Entristecido com tamanho espetáculo de luzes e
palavras, gestos e insinuações, digo a mim próprio: “Estes infortunados que não
jejuaram, nem oraram e que recusaram a redenção pelo trabalho, enfim o trabalho
enobrece o homem, garante que os seus epitáfios sejam por todo sempre iluminado
pela luz solar, com direito às recordações e lembranças dos longos discursos de
autoridades e personalidades ao pé da cova, buscam submeter-se aos escárnios e
humilhações de toda sorte como alguém se submete a um câncer, a uma AIDS ou à
morte, com aquele impávido fatalismo sem revolta, em virtude do qual os russos,
por exemplo, ainda hoje têm vantagem sobre nós, os ocidentais, no trato com a
vida”.
Isto, como agora sou bem autêntico e ousado em
afirmar, é digno de um grande trágico: o qual, como todo artista, somente então
chega ao cume de sua grandeza, ao ver a si próprio e à sua arte como abaixo de
si – ao rir de si mesmo.
Em face da velha senha mentirosa do ressentimento e
da mágoa, a do privilégio da maioria, enfim é mais fácil um proscrito adquirir
o seu leito de penas – penas sem tinta servem apenas para simular e dissimular
a imortalidade medíocre e mesquinha, abanar o tédio insofismável da vanglória
imbecil e idiota, sem méritos, honras, louvores, enfim; e no Panthéon, serão
motivos de troça de Machado de Assis, Lúcio Cardoso, Guimarães Rosa, Graciliano
Ramos: “Ainda bem que não estamos mais no mundo, as coisas de lá se tornaram
mesmo brincadeira, “escritores sem letras”, que absurdo!” -, diante da vontade
de rejeição, preconceito, discriminação, de atraso e ocaso do homem, ecoou
forte, nítida, simples e insistente como nunca dantes pensado e imaginado, a
terrível e fascinante contra-senha do privilégio dos raros.
O que interessa não é tanto impor uma nova ordem
como afirmar uma vontade como princípio de autonomia. Dizer que não àquilo que
nos submete é dizer que sim ao poder de recusá-lo. As relações de vida
estabelecem-se apenas entre dominar e o ser dominado; e à força do que nos
esmaga nós respondemos assim com o gesto de esmagar. Se ao efeito que vem de
cima não podemos responder com a eficácia que vá de baixo, respondemos ao menos
com o que pode imitá-la até onde imitar nos é possível. Assim res-pondo a uma
consideração feita a mim com todas as letras, “se não conseguia ser o Deus,
tenha a dignidade de imitá-Lo”. Atua por atuar diverge enquanto atuante, mas
não enquanto se executa ação. O destino atua e é eficaz; que a nossa resposta
esteja ao menos no executar a ação. Que importa que o nosso orgulho seja
impotente?
Eis, portanto, homens supostos, divinos proscritos,
o espírito de minha escolha, chegado a esse grau de prazer e serenidade, onde
sou levado a admirar-me a mim próprio. Senhores, que civilidade e modernidade
são estas que, no sentido de continuar vivendo, sobrevivendo, tenha de
admirar-se a si próprio, por nada mais haver para ser admirado. Isto é triste,
senhores! Toda contradição desaparece, toda polêmica se resolve com um aperto
de mãos e três tapinhas nos ombros, como é sobremodo peculiar nos mineiros,
todos os problemas filosóficos e teológicos tornam-se transparentes, ou pelo
menos assim parece. Tudo é motivo de prazer, de júbilo, de ostentação. Tudo são
razões de ostentar as importâncias, enfim são os únicos que grandes
contribuições realizaram em nome da cultura (quem não acreditar é só se
informar das medalhas de honra ao mérito recebidas, embora quem as concedeu
tenha dito: “Aos cães, as medalhas”, pensando merecerem de verdade, latir sabem
com toda a força dos pulmões e dos instintos, mas não espantam nem os
mosquitos. Uma voz nele fala (infeliz! É a sua própria voz) e lhe diz: “Você
agora tem o direito de se considerar superior à raça humana, a toda a
humanidade; ninguém conhece ou poderia entender tudo o que você pensa e sente;
seriam mesmo incapazes de apreciar a benevolência que lhe inspiram. Você é um
rei que os passantes desconhecem, e que vive na solidão de sua convicção: mas
que importa isso? Aliás, nada disso importa realmente. Você por acaso não
possui este desprezo soberano que torna a alma tão humilde e boa, capaz de
praticar as mais perfeitas misericórdias?”. “Sai pra lá, Satanás. Tais prazeres
são dos verdadeiros, honestos, suas penas destilam à soleira das almas brancas
de papel os ácidos à luz de pepinos descascados. Isso não é para nós, os que
são imortais. Deus, meu livre!”, responde o outro torcendo os lábios e
impostando a voz.
De quantas ações tolas e imbecis não está cheio o
passo, que são verdadeiramente indignas deste rei do pensamento e que profanam
sua dignidade real e ideal. Quantos homens encontraríamos no mundo tão hábeis e
perspicazes para se julgarem, tão severos para se condenarem? Todas as épocas
bradaram umas contra as outras em vossos espíritos; e os sonhos e os brados de
todas as épocas eram mais reais do que a vossa insônia. Com a horrível
lembrança absorta, dispersa, desta forma na contemplação de uma virtude ideal,
de uma caridade ideal, de um gênio ideal, entrega-se candidamente à sua
triunfante orgia espiritual. Por que os homens dizem: “Somos totalmente
realistas, não temos crenças nem superstições”; assim enchem o papo, sem sequer
ter papo. Não é isto que sempre ouvimos em todas as esquinas e pracinhas de
nossa comunidade: “aqui, as pessoas só têm gogó”? De fato, quando uma fé é mais
útil, mais convincente, quando produz mais efeito que a hipocrisia consciente,
mais instinto, a hipocrisia se torna logo inocente; primeiro princípio para
compreender os grandes imortais, pena que seja imortalidade oportunística. Desde
que sentira forte e presente em mim estas palavras, o que é não se torna e o
que se torna não é”, é que pude compreender algumas estutícies humanas. Hajais
de buscar compreensão para estas palavras que aqui registro para me ajudar a
tecer o discurso de modo real e verdadeiro. Não sou capaz de lembrar-me neste
instante quem afirmara que os homens póstumos jamais seremos compreendidos, aí
é que está a nossa autoridade, o que endosso com todas as letras e sílabas
existentes na Língua Portuguesa.
Agora, da contemplação de seus sonhos e desejos e
de seus projetos de virtudes, decidiu-se pela sua aptidão prática à virtude; a
energia ao mesmo tempo vigorosa, esplendorosa, resplendorosa, apaixonante com a
qual ele abraça este fantasma de virtude parece-lhe prova mais do que cabível e
suficiente, peremptória da energia viril necessária para a realização de seu
espetáculo, de seu ideal. Confunde ele, com toda empáfia de sua personalidade,
o sonho com a ação, com a autenticidade, e com sua imaginação aquecendo-se mais
e mais diante do espetáculo encantador de sua própria natureza corrigida e
idealizada, substituindo por esta imagem fascinante de si próprio, divino
proscrito, o seu indivíduo real, tão pobre em vontade, tão rico em vaidade,
termina por decretar sua apoteose nestes termos nítidos e simples que contêm
para ele todo um mundo de abomináveis prazeres e contentamentos: “Sou agora o
mais virtuoso dos homens”.
Logo de imediato este furacão de orgulho e empáfia
se transforma em uma temperatura de êxtase tranqüilo, calmo, mudo, repousado, e
a universalidade dos seres se apresenta colorida e como que iluminada por uma
aurora ácida e sulfurosa.
Ó corpos vários, diversificados unificados no apelo
vário dos instantes de mim, corpos frágeis, delicados, de cristal, ondeada
chama débil como um devaneio, intrínseca vivacidade filamento ápide afiado
gume, subtilização da carne ao esvaimento do espírito, ondeada cobra fina e que
se toca com a polpa dos dedos se toca na pressão funda e linear no arranque, a
linha dos dentes, na ausência quase de uma realidade corpórea transfinita,
imaterial quase, irisada, longilínea, e se teme a violência, retraído a mim
como se mais ninguém, eu só, transcendido a um refinamento extremo e duro, o
prazer como um choro porque estremece na fibra última da sensibilidade, aí onde
nasce tudo o que é sensível, prazer tão fino e fundo que é como se implícito a
tudo o que se passa à superfície e o condiciona e o chama...
Se uma ruminação selvagem, um grito rebelde,
ardente, arrojar-se de seu peito com tal energia, um tal poder de projeção que,
se as vontades, desejos, sonhos, e as crenças de um homem ébrio, tivesse uma
virtude eficaz, esta ruminação, este grito revirariam os anjos disseminados nos
caminhos do céu: “Sou um Deus”. Qual é o filósofo francês que, para
ridicularizar as modernas doutrinas alemãs, dizia: “Sou um deus que jantou
mal”? Esta ironia, cinismo, sarcasmo não afligiria um espírito elevado ao nível
de um proscrito, e ele responderia com todo o carinho e ternura que sua alma
fosse capaz de expressar e revelar: “È possível que tenha jantado mal, a
costelinha de porco com maxixe não caiu bem no estômago, mas eu sou um Deus”.
(**RIO DE JANEIRO**, 21 DE MARÇO DE 2017)
Comentários
Postar um comentário