**JEGUE ALADO** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: MANOEL Ferreira Neto
Embora o que se diz sobre a invenção do alfabeto grego, mui particular e
intimamente considero-a muito mais moderna do que se julga, muito mais
con-temporânea do que pensam os línguas de trapo.
Não me é dado saber se é devido a fértil criatividade que em mim trago
dentro, mas naquelas horas do entardecer, sentado no banquinho de mármore do
alpendre de minha residência, vem-me sempre ao espírito a dúvida não só de
Homero soubesse ler, recitar e declamar as palavras, mas até de que no seu
tempo se escrevesse. Dúvida metódica? Não sei. Só sei que esta dúvida é
desmentida pela história de Belerofonte na Ilíada e, como tenho a infelicidade
de ser um pouco obstinado em meus paradoxos - se precisar de alguém mais
paradoxal que eu, com certeza, não sirvo por ser paradoxal além de todos os
limites -, sentir-me-ia sobremodo atraído, se fosse menos ignorante, a estender
minhas dúvidas até sobre essa história e de tachá-la de ter sido, sem muito
exame, sem muitas delongas, inter-polada pelos compiladores de Homero.
Ouso afirmar - estou-me nas tintas, se me jogarem pedras - que toda a
Odisséia é um conjunto de idiotices, imbecilidades, cretinices e de inépcias
que uma ou duas letras teriam reduzido a fumo, enquanto que se pode tornar esse
poema razoável e mesmo muito bem conduzido supondo-se que seus heróis tenham
ignorado a escrita. Quer dizer então que nos tempos de Homero imperava a
ignorância deslavada. Em terra de ignorante, quem sabe ler e escrever com
excelência, é profeta. Vou-me embora para a terra de Homero, a hipocrisia
contemporânea está a dar-me nos nervos.
Se a Ilíada tivesse sido escrita, seria muito menos cantada, os rapsodos
menos procurados e menos multiplicados. Nenhum outro poeta foi tão cantado,
decantado, tres-cantado, salvo Tasso em Veneza e, assim mesmo, só pelos
gondoleiros, que não são grandes leitores.
Entardecido o entardecer, estrelas e lua brilhando com todas as magias e
esplendores, as dúvidas de se Homero soubesse ler caem por terra, não me
lembram mais a Ilíada, Homero, vem-me ao espírito outra dúvida, quiçá mais
profunda, se houve algum escritor que tenha feito os leitores rirem tanto
quanto Apuleio. As jeguices de Apuleio eram magníficas, sabia ele lidar com as
palavras tão bem que eram elas a cometerem as jeguices mais estapafúrdias. No mundo
contemporâneo, as palavras são muito sérias, seus sentidos e significados
honrados e dignos, e na época de Apuleio cometiam asnadas, asnices inglórias,
sentidos e significados dúbios, ambíguos. Só faltou a Apuleio dar asas às
jeguices das palavras, criar um jegue alado com as palavras. Ter-se-ia sido
interessante, pois nos nossos tempos contemporâneos os escritores seriam jegues
alados, ou seja, se alguém pedisse para definir, conceitar o
"escritor", daria logo a resposta na ponta da língua: "O escritor
é um jegue alado"
(**RIO DE JANEIRO**, 24 DE MARÇO DE 2017)
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