**EM SUFRÁGIO DOS INSTINTOS** - PINTURA: Graça Fontis/POEMA: Manoel Ferreira Neto
Obra de Deus! Logo, marcada de cruz e contradições,
fonte inexaurível da exuberância de todas as obras sobrenaturais. A cruz fora o
pábulo quase quotidiano da humanidade, de Atenas Atéia, Lágrima dos Insanos,
Itajaí, Curvelo, Inimutaba, Cordisburgo, etc., etc... Aliás, servindo-me da
cruz que fora o pábulo da humanidade, quase quotidiano, relincharei que sob o
pudor da morte os membros meus inermes têm de ser fatalmente o pábulo dos
vermes, frios e roedores...
A homilia de Padre Ricardo no domingo anterior à
minha morte, o traspassamento eterno e imortal, fora muitíssimo comentada por
dona Ragozina Neves, sentada no banco na varanda de sua casa, ao entardecer da
segunda feira, conversando com Beatriz Escullaxo. O padre Ricardo identificara
o autor das palavras, mas ela havia se esquecido, muitas vezes isto acontece.
Assiste a algumas novelas, conhecendo muitos artistas por nome, acontecendo
inúmeras vezes de esquecer os nomes, quando os vê noutras novelas em outras
emissoras. Contudo, foram palavras que ficaram memorizadas.
As palavras eram dirigidas ao Coração de Jesus:
“Tendes imolado meu corpo por sofrimentos múltiplos
e perigos de morte; meu espírito por desassossego, tentações, dúvidas, temores,
contradições advindas do mais sublime dos tribunais; meu coração por separações
supremas, a perda dos meus, o abandono, os desprezos, as divisões, o
isolamento, o desamparo de todos os que eram meus pais e protetores. Não me
tendes poupado as angústias pungentes da pobreza, faz já oito anos. Obrigado!
Obrigado! Abençoai a Obra em cujo proveito me tendes enviado”.
A bem da verdade, Ratto Neves dissera sobre a
possibilidade de pedir o padre Ricardo Boanerges para celebrar uma missa de
corpo presente para mim. Ragozina Neves lhe tirou de cabeça esta idéia
estapafúrdia: missa de corpo presente para um equus asinus. Padre Ricardo
Boanerges iria responder-lhe à altura: “Quando você morrer, celebro com
prazer”. Desejaria uma resposta desta. Se o caso era de princípios religiosos,
a igreja estava precisando ser pintada. Estava Ratto Neves louco? Era isto
suborno. Donde já se viu subornar um padre para celebrar missa de corpo
presente para um asno. O ridículo também tem seus limites. Contudo, inventara
um nome e mandara celebrar a missa de sétimo dia de minha morte, o nome era:
Cintilino Neves. Ninguém prestou atenção àquele nome, havia tantos importantes
e que todos conheciam; ninguém associou o nome com a família Neves. A missa foi
celebrada em sufrágio de meus instintos.
A coisa tinha suas raízes: Padre Ricardo Boanerges
andava recebendo várias propinas de fazendeiros para celebrar missas com
intenções as mais estapafúrdias. Por exemplo, celebrar missa para o galo de
briga Jô ganhar a briga no domingo. Aquela grana preta que os homens estavam
investindo poderia cair nas mãos de Odório Garrastazu, poderia assim consertar
a porteira do curral. Guido Neves é que lembrou a mãe destas coisas esquisitas
do Padre Ricardo Boanerges.
Criar mortos conscientes é diminuir a distância que
nos separa do mundo e entrar, sem alegria, na perfeição final, conscientes das
imagens de exaltação de um mundo perdido para sempre. E o canto triste das
serras crava-me na alma ainda mais a amargura deste ensinamento.
(**RIO DE JANEIRO**, 20 DE MARÇO DE 2017)
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