**ANTES MORRER DO QUE PERDER A VIDA** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
Carachapuda!...
A noite segue custando a passar. "Passar", o que é isto?
Esvaeceram-se-me o sentido, significado.
Microfone no ouvido, ouvindo músicas, melhor diria, sons, os dedos
rápidos digitando dígitos que formam palavras - até nisto a gafe: só se digita
em digitos, só se datilografa em teclas; pleonasmo vicioso! -, um corpo nu, sem
quaisquer vestes, sentado na cama, curvado numa mesinha. Corpo: cabeça, tronco
e membros, carne e ossos, veias e sangue, instintos - tão simplesmente.
"Socorro!... Preciso de ajuda. Estou raspando parede com a unha
para fazer farofa." Pelo que possa saber de mim, não era homem que dizia
despautérios, era até muito sério. Tão sério que despertava desconfiança: a
seriedade era sudário para esconder, en-velar todas as mazelas, mauvaises-foi
da vida. E agora tantos a perderem de vista. "Socorro!... Preciso de
ajuda." O que é isto de "socorro", "ajuda"?
A alma dói inteira em todos os níveis. Alma doer? Se o vazio é na alma,
como pode doer? Posso até crer com o vazio na alma. Embora assim, isto é
inconcebível. Vazio, a alma esvaeceu-se, escafedeu-se.
Quê idiotice a minha gritar pedindo ajuda, socorro! Ninguém me ouve,
todos estão dormindo. Até Deus está tirando a soneca, sonhando com o tempo de
sua criação, quando criou o mundo, a terra, as espécies, o homem, sentindo-se
Perfeito, com o Filho que morreu na cruz, sentindo-se Desgraçado. No sono, o
Perfeito Desgraçado. E na vigília? - eis a questão. Mesmo que Ele estivesse
acordado, não me daria qualquer ajuda, não me socorreria. Não ajudou o Filho na
cruz, a quem vai ajudar? Sou por mim no mundo. Procuro saída para os problemas
ou sigo na penúria deles. Com uma palavrita só, desabei o mundo inteiro na
minha cabeça.
O que é o hábito das palavras!... Simples, trivial. Escreve-se. Escrevo
e não tenho noção do sentido e significado do que escrevo, meras palavras
registradas na página. Chamo de palavras: será isto mesmo? Talvez amanhã
desmonte este escrito por inteiro e compreenda o que nele há, o que lhe habita.
Só mesmo desmontando-lhe para sabê-lo.
O mundo estilhaçou-se. Agora sou eu no vazio, no nada. É-me sabido ser
noite porque, quando pronunciei a palavra, o quintal de meu casebre estava
escuro. Guardei esta imagem para não me sucumbir de todo, por inteiro, noutras
palavras, antes morrer do que perder a vida. Pronunciada, mergulhei fundo na
alma à busca de seu regaço, onde repousar, onde descansar. Quê alma?!... Quê
regaço?!... Nada encontrei. Só uma imensidão vazia, não iria ficar perambulando
à revelia, à toa. Perambular na "imensidão vazia": quê coisa mais
estapafúrdia! Retornei à superfície. Retornei ou fui retornado de lá? Não retornei,
não fui retornado. Onde a consciência de "retornar", "ser
retornado." Nada, simplesmente nada.
Des-pronunciar a palavra, voltar ao que era antes. Aqui não existe
aquilo de "Devo, logo posso". Devo des-pronunciá-la, posso fazê-lo.
Não me são dadas esta atitude, esta ação. Razão prática? Quê isso!...
"Devo, logo posso" é dimensão da moral. Moral do Vazio? Ah, ah, ah...
Está pronunciada. Ai... Antes não o tivesse feito. Não pensei que poderia doer,
a dor em mim por sempre, mesmo que o tempo a trans-literalizasse,
trans-elevasse-a, trans-cendesse-a.. Estará presente em mim, a memória estará a
mostrar-me todas as coisas acontecidas, antes, durante, depois da palavrita
pronunciada: "Adeus".
A noite segue custando a passar. Interessante isto: o mundo
estilhaçou-se, não me estilhacei. Meu Deus, quê série de nonsenses,
despautérios! Estilhacei-me sim: o que resta do que fui, do que de mim fui, o
que me fora? Sigo vivendo no vazio, no nada. Estou aqui sentado na cama,
escrevendo - quem sabe seja para passar o tempo, alfim o tempo existe sem o
mundo, o mundo existe sem o tempo, mundo e tempo não existem. Quem sabe seja
para deixar a dor registrada no espaço virtual, retirá-la de mim. Putz! Isto é
a pior de todas as fantasias: pensar que escrever esvazia - nada disso, encho-me
mais de coisas, as lembranças e recordações surgem inteiras na mente. Ainda
mais que há um paradoxo, ou melhor, nonsense: como é que se esvazia o vazio? O
mesmo que esvaziar um copo vazio? Quebrá-lo não é esvaziá-lo. Como podem surgir
lembranças e recordações inteiras na mente, se estou vazio? Talvez por não ser
o vazio, não ser vazio. Estou vazio. Nada compreendo, nada entendo.
Esvaeceram-se-me a compreensão, o entendimento.
Não me lembra bem se fora angolano ou africano quem me dissera que o
galo é ave desagradável. E não é que galo canta ininterruptamente. Não sei onde
é que ele se encontra; soubesse, sairia de cueca correndo pelo deserto das ruas
e esganaria essa ave ridícula: "Isto é para aprender a não cantar dentro
do meu vazio". Os inocentes sempre pagam pelos culpados. Sou o culpado de
o mundo estilhaçar-se na minha cabeça e é o galo que paga a conta. Não tenho
superego! Por que me sentir culpado? Isso é que é. Restaria apenas um sorriso
daqueles bem "es-mareliçados", sair à francesa de tanta vergonha.
"Pare de cantar, galo maldito!"
Só me resta tomar um litro de suco de maracujá e dormir. Se houver
alvorecer, talvez a dor da palavrita pronunciada haja desaparecido. Não vou
des-pronunciá-la. Fora pro-nunciada definitivamente. Não há retorno.
Quiçá, sente eu à soleira de meu casebre, passando o dia a olhar para o
vazio, o nada, o mundo está estilhaçado!
Adeus, amigos da madrugada! Fiquem aí no mundo de vocês, fico eu aqui no
vazio e nada de mim, sem perder a vida.
(**RIO DE JANEIRO**, 25 DE MARÇO DE 2017)
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