**MURMÚRIO DA ÁGUA CORRENDO PRECIPITADAMENTE, RIO DAS PULGAS** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
“Invoco o fundo de meu coração, já é inteligência a
verdadeira imagem da plenitude, construo um templo na montanha e um altar na
cidade onde nasci”.
Manoel Ferreira
“Uma certa continuidade no desespero pode engendrar
a alegria. Imersa em beleza, a inteligência se entrega ao festim do nada”.
SANTO INCITATUS DA FAZENDA DOS BOIS
Penetro até ao fundo do coração, e ouço as palavras
nítidas, límpidas, suaves e até serenas, nem mesmo o menor murmúrio me passa
desapercebido, o que, em verdade, deixa-me surpreso, indagando-me se não há um
equívoco em assim crer e acreditar, não existe esta capacidade absoluta de não
deixar algo desapercebido, seria até uma empáfia assim o dizer, assumir que não
há equívoco algum. Profiro uma linguagem iníqua, não posso fugir dela, e creio
que enfim fui capaz de realizar o tão esperado, algo ser capaz de atingir a
opinião pública, e não somente de alguns, e sendo que cada um apresenta uma
idéia diferente, o que há é desencontro de opiniões.
Desejo que os relinchos expressem uma crítica tão
contundente que ninguém deixe de proferir a sua opinião a respeito, porque até
mesmo um relincho sem senso, secreto, inconveniente, suscita algo ao ouvir, ou
a ler, não o sei, e existe mesmo uma intenção subentendida, este relincho mesmo
não ficará sem ser observado, e quem o proferiu, neste sentido, eu próprio,
arrasta as falas e as críticas, quem sabe até não tendo coragem de afirmar caso
alguém a diga com toda a empáfia. A perdição da alegria, com efeito, não me dá
intuição do mínimo que seja.
Se aos olhos dos homens o desejo e a vontade
suportaram uma pergunta em demasia ferina, isto de desejar chamar a atenção não
tem sentido por depender de haver interesse em observar, a esperança minha era
de imortalidade. Deveria eu de algum modo, embora sentindo dores incólumes
dentro de mim, deixar a flor da primavera passar sem lhe dar a mínima chance de
ser observada, desejada florida em todos os jardins, campos, serras, sentido a
suavidade de ser odor? Com o tempo, assim muitas vezes sou até obrigado a
pensar, apesar de me não ser nada agradável, e confesso que não aprecio pensar
sobre, meu nome cairá no esquecimento, se é que fora lembrado alguma vez, e
ninguém se recordará de Incitatus da Fazenda dos Bois.
- Esta confissão feita numa viagem, enquanto viajo
nesta carroça, uma viagem rumo ao horizonte, até onde Guido Neves e Beatriz
Escullaxo decidirem que é o fim dela, retornando a casa para abraçar e beijar a
família, agradecer-lhe, quem sabe até chorando, fazendo as caretas típicas,
agradecendo-lhe por todas as oportunidades desta viagem, estava sim precisando
dela, um tempo de descanso, tudo na fazenda está indo de vento em popa... Esta
confissão é endereçada à eternidade? Confesso a mim próprio. Não me lembra do
nome do escritor, mas dissera que “autobiografias exatas são quase
irrealizáveis”, dizendo ele que precisam sempre de enfeites e arrebiques. Por
que isto ficaria para a eternidade? Diz apenas para si. Se algumas vezes se
referiu à humanidade, até com a segunda pessoa do plural já se dirigiu a ela,
foi com uma leve intenção de mofa, enfim, a confissão é feita a alguém, mesmo
que seja num monólogo – quem sabe não seja para aquele que dentro de si sabe e
conhece tudo?
Experimenta o que acontecerá quando de sua morte,
tira das mãos as palavras que desejam tanto adquirir sentido e significado. A
fim de conhecer a sua doçura, estar ciente e consciente de sua paciência,
acredita na glorificação das almas puras. Entre elas tudo fala: ninguém sabe
entender por tudo o que existe quer revelar-se, quer manifestar-se, quer
iluminar a soleira da porta de entrada, refletindo uma sombra na parede, de um
galho de árvore. Embora, em tempo algum haja desejado proclamar a verdade, o
saber e a sabedoria adquiridas com as experiências e controvérsias, a toques de
sino às seis horas da manhã, ao meio-dia, às seis horas da tarde, esteve mais intencionado
a contar as batidas, as badaladas. Se houvesse mergulhado nestas picuinhas
todas, crê que em praça pública todas as badaladas do sino seriam abafadas com
o ruído das línguas e dos murmúrios.
Não espero, em hipótese alguma, que a santidade me
seja ofertada e doada. Sentiria ser uma troça de quem tivesse a ousadia de
expressá-la em público e em academias de todo este mundo velho sem porteira.
Não me dou ao luxo e à empáfia de acreditar na santidade de almas puras. Nada
consegue mostrar-me o contrário, nem mesmo o mais sábio dos homens, ser por
inveja do demônio que a morte entrou no mundo, contudo não pertenço ao demônio,
não vou prová-la assim de mãos inteiramente vazias. Encho-as mesmo que seja de
vazios.
O sinal da pubescência, adolescência, juventude
talvez seja uma extraordinária vocação para atingir tão depressa a perfeição,
confundindo os caminhos do campo com as sendas perdidas, precipitando sem voz
no meio dos ímpios que sobrevivem. Pudera eu neste instante, e só eu sei o que
este colóquio com alguém suscitou no espírito, a sabedoria faz as vezes dos
cabelos brancos, compreender os desígnios do homem, alçar vôo movimentando as
asas da paixão, minando uma alma ingênua, pura, imaculada!...
- Jamais tive qualquer dúvida de que cada um vê o
mundo a partir de seu ponto de vista, e seria eu mais um freqüentemente
freqüentador do tabernáculo dos impios, e o ponto de vista é sobremodo
particular. Posso afiançar e endossar que, conscientemente, jamais serei um
freqüentador de tais ambientes, não me fazem falta, não necessito deles para
ser capaz de algo deixar, e muitos, se ainda vivos, iriam concordar com esta
minha simples e modesta concepção de que realidade é esta por eles mesmos
haverem tomado esta decisão, não precisamos destes ambientes para qualquer
posição. Cuido bem que ela seja para mim uma boa conselheira, e minha
consolação nos cuidados e nas decepções. Por meio dela, obterei a imortalidade,
e deixarei à posteridade uma lembrança eterna. Consciente de não interferir na
minha vida, mesmo que inda não indique vez por todas, mas deixando traços e
passos no seu encalço, consciente de não me fazer qualquer falta, e digo, de
antemão, que me orgulho desta ausência. Invoco o fundo de meu coração, já é
inteligência a verdadeira imagem da plenitude, construo um templo na montanha e
um altar na cidade onde nasci.
Acontecem falas e comentários, e se trata de uma
sabedoria se os procuro entender, re-criando o estado espiritual e emocional,
enfim é esta a minha função e proteção, pensar e relinchar com a cachola
instintiva as dores mais contundentes, e por serem contundentes é que são
ásnicas-humanas, relinchar o que desejo muitas vezes relinchar, mas me calo.
Ainda deixo aos homens um testemunho desta interioridade, de minha loucura. Em
verdade, não interessa muito o que fizeram de mim, importa o que estou fazendo
disto. Em lugar das águas de um rio perene, turvadas por uma lama de sangue,
torno eloqüente a língua da ressurreição e da redenção, como querem alguns
acreditar. A sua continuidade, tirada de sua profundeza, confere-lhe à glória
eterna o murmúrio da água correndo precipitadamente, RIO DAS PULGAS!...
“Ai de quem em quem
A responsabilidade máxima termine!
Ser terminal é glória e isto fascina.
E também pode levar à desgraça
Não importa a linhagem, a empresa,
O grupo, o lucro, o sucesso, a utilidade.
Terminal é partida, nunca só ingresso.
É passagem, ainda que na desventura.
Terminal, sem remédio, é terminal:
Parto, vida, lida, sorte, diploma, oportunidade,
Nomeação, cargo, função, morte, emprego,
Fim diurno do serviço, aposentadoria.
Terminal é estação de viagem ininterrupta,
A pé, rodoviária, ferroviária, aérea, naval.
São nossas fases biológicas e sociais
E os locais de recebimento...
Sempre que se termina qualquer coisa,
Não se termina, haja mesmo velas e urna!
As coisas todas não querem término,
De fato, elas nunca param, sempre se vão...”
Diante destas imagens que fui elaborando na memória
instintiva, nos instintos de sobrevivência, cuja grandiosidade provoca um
aperto na garganta, cada um de meus relinchos representa uma rasura e
perfeição. Imagens assim tão puras insensibilizam a alma, a beleza delas às
vezes me é insuportável por ter uma dúvida de se serão entendidas e
compreendidas. Neste evangelho de pedra, céu e água, está escrito que nada
ressuscita, nada redime. Que há de tão surpreendente, que há de tão inusitado
assim, pois, no fato de que os espíritos educados no espetáculo da nobreza, a
compreensão de que cada indivíduo tem o seu ponto de vista sobre algo, e pode
ainda ser particular, não chegue, na atmosfera rarefeita do que é belo, a
persuadir-se de que se possam aliar a grandeza e sabedoria. Uma inteligência
sem deuses que a aperfeiçoem, busca um deus naquilo que a nega. Se Deus nos
concedeu o dom, apressemos-nos a goza-lo, a usufruir seus prazeres e alegrias.
O homem é feito, desde os tempos mais antigos, de
tal maneira que sua visão do mundo, a menos que não seja imposta por
hipnotismo, suas motivações, sua escala de valores, suas ações e intenções são
determinados pela experiência da vida dele próprio e de seu grupo. É como diz o
provérbio russo: “Não acredite em seu irmão, acredite em seu próprio olho
vesgo”. Mó... Mó... Mó...
Se aquelas palavras, que, não tenho dúvidas, foram
pronunciadas ocultando algum ressentimento, e posso garantir sei em que lugar
relinchara eu algo que não satisfez, causaram-me algum ressentimento, em
verdade fora um ensaio para conseguir registrar algo nesta página branca de
memórias. Re-criei-as, e agora me sinto completamente refeito. Não carreguei na
traseira da carroça a caveira que alimenta meditações e reflexões. Uma certa
continuidade no desespero pode engendrar a alegria. Imersa em beleza, a
inteligência se entrega ao festim do nada.
(**RIO DE JANEIRO**, 20 DE MARÇO DE 2017)
Comentários
Postar um comentário