**OLÍVIA PALITO E MARIA CACHACINHA** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
Bons dias!
Lembra-me como se fosse ontem – se houvesse sido hoje de manhã, assim
que as luzes do dia se a-nunciaram, ou mesmo ontem à tarde, no crepúsculo de
pálidas nuvens, não é que não seria propriamente lembrança por ser bem recente,
não me lembraria da coisa tão pujante na contundência de um encontro fortuito.
As lembranças, para mim, têm de ser imemoriais, caso contrário a memória está
vazia de tudo, no seu estado de pureza.
Olívia Palito é esquelética por natureza e condição, ainda assim é-se
possível ver-lhe a pele que se lhe cobre os ossos todos, desde a cabeça aos
pés, sem um vestígio de carne de por baixo dela. Não saberia dizer se espinafre
engorda, se o fizesse Popeye seria um digníssimo hipopótamo de tão gordinho,
contudo é um pouquinho gordo, tendo como referência Olívia Palito. Se espinafre
engordasse, seria o caso de sugerir a Olívia que o comesse em todas as suas
refeições desde o desjejum até ao lanche da noite, antes de dormir. Olívia
Palito não come espinafre, só mesmo Popeye, apenas para lhe dar força e poder,
sabe-se que ele possui um pouco de carne de por baixo da pele.
Não estou exagerando só para obter os efeitos intencionados e desejados,
mas Maria Cachacinha é ainda mais esquelética que Olívia Palito, não se lhe vê
nem a pele cobrindo os ossos, é-se de imaginar se existem alma e espírito no
corpo ou se trata apenas de um monte de ossos se locomovendo pelas ruas e
avenidas da cidade, um esqueleto que se escafedeu da sepultura, por motivos de
força maior, Sugismundo passou por lá, está um verdadeiro lixo a cidade dos pés
juntos.
A verdade é que nunca a vi em botequins de elite ou copos-sujos, virando
os copos num fôlego só, de tão embriagada chamando urubu de meu amorzinho,
caindo e levantando, comendo poeira das ruas calçadas, verdadeiro remédio para
tirar o bafo e o gosto, felizmente para ela não haver asfalto nas ruas, comeria
fuligem, até chegar em sua casa.
Seria hilário ver ossos embriagados pelas ruas, dando até para duvidar
da sanidade mental, se se está com algum problema de alucinação, se um fuminho
foi puxado, se uma carreirinha foi inalada. Sei que o apelido que adquirira de
Maria Cachacinha é por ser chegada à cachaça, bebe até por correspondência, se
o correio estiver fechado, a osmose entra em cena. A cachaça, se não se souber
controlá-la, bebê-la com moderação, come até os tutanos que ficam dentro dos
ossos, acaba-se sendo uma vida invisível. Nunca a vi virando copos num só
fôlego, a bem da verdade jamais a encontrei em botequins ou restaurantes, sendo
digno e responsável. Não é de minha índole inventar para justificar, também não
é de minha índole carregar nas tintas para fazer as pessoas rirem à beça. O
apelido Maria Cachacinha pode haver sido criado por a cachaça levar a pessoa
aos ossos e pele, o povo tem imaginação sobremodo fértil, ademais tem um poder
inestimável de denegrir a imagem dos outros, sente prazer em jogar a pessoa na
sarjeta. O povo não pode ver ninguém bem, dizem as línguas de trapo ser inveja
e despeito, que eu até certo ponto concordo e endosso. Bem provável que o
apelido de Maria Cachacinha tenha nascido por ser esquelética, por associação.
Fosse ela brasileira de claras e gemas, sem dificuldades de entender, o
brasileiro é cachaceiro por natureza e estirpe, e por estas imediações da
região, não há outro povo que beba tanto cachaça, a cidade é conhecida e
reconhecida como a dos cachaceiros, a pingudice é pública e notória. Bebe
mesmo, o povo bebe com vontade, morrer de cirrose aguda é até honrar a raça,
engraçado que a cultura da cidade nada tem de romântica senão melancolia e
nostalgia, mas em razão de nela só se encontrar coisas velhas e caquéticas.
Maria Cachacinha não é brasileira. Fosse o caso de enxugar copos com
propriedade, o apelido está bem fora de seu sentido natural. Deveria, tomando
em conta a sua nacionalidade, ser Maria Cervejada ou Maria Cervejinha. Alemão
nasce bebendo cerveja, morre bebendo cerveja, se houvesse possibilidade levaria
alguns engradados de cerveja para a sepultura, para beber no crepúsculo, quando
a morte se revela um fardo bem pesado ou num dia de calor intenso no mundo e
mais ainda dentro da sepultura, refrescar os ossos ou as cinzas. Alemão não é
chegado a cachaça, é íntimo da cerveja, já me disseram, não posso afirmar ser
real, nunca fiz turismo lá para me certificar, o bebê bebe cerveja na mamadeira
ao invés de mingau. Penso haverem ironia e sarcasmo do brasileiro, embora não
devesse dizer e nem criticar os alemães, é chegado à cachaça. Desde o momento
que se descobre ser gente no mundo, o que solidifica a gentidade é a cachaça. Só
nunca ouvi dizer o brasileiro beber cachaça na mamadeira. O brasileiro nasce
puro, a cachaça corrompe. Questão de cultura.
Havia muito não me encontrava com Maria Cachacinha pelas ruas, becos,
avenidas e alamedas da cidade. Até pensei que houvesse participado sua mudança
para outra cidade do interior, para alguma megalópole como Rio de Janeiro, São
Paulo, lugares em que se sentisse infiltrada em sua cultura, lugares em que
mostrasse a sua alemanidade sem pejos e timidez, e fosse plenamente reconhecida
como alemã de claras e gemas. Havia tempos não a via. Em verdade, em verdade, a
última vez que a vi, mais ou menos há um ano e seis meses, estava bem magra,
mas ainda havia carne de por baixo de sua pele, mas neste encontro, fortuito
mesmo, vendo-a passar na rua, só lhe reconheci os ossos, esqueleto era pouco
diante de seu estado esquelético.
Pensei comigo, apesar de jamais a ter visto enxugando os copos, que
estava com os ossos em plena forma, estava com os ossos em dia com a estética,
mais esquelética ainda. Se fosse eu exagerado, diria que os ossos eram de minha
imaginação fértil. Não era a cachaça a responsável por sua esquelética forma,
mas a saudade, que é sempre uma espécie de velhice, da Alemanha, era a razão de
estar sem pele a cobrir seus ossos. Senti peninha dela, não é fácil ver uma
pessoa se acabando gratuitamente na vida, poderia viver muito tempo, neste
tempo conhecer a verdadeira felicidade, realizar todos os seus desejos e
sonhos. Se não fosse a cachaça a responsável por sua esquelética forma física,
deveria ir embora para a Alemanha, beber cerveja até explodir ou participar sua
mudança para qualquer megalópole de nação brasileira, onde pudesse sentir-se
alemã de claras e gemas. A ausência de sua cultura específica, se continuasse
aqui, iria tornar-lhe uma vida invisível. Não merecia esta degradação de sua
vida. Não mesmo.
Maria Cachacinha andava em passos de bicho-preguiça, cabeça baixa,
revelando estar no mundo das nuvens com seus problemas e dores – problemas e
dores devidos ao alcoolismo ou devidos ao saudosismo alemão? -, sofrimentos e
conflitos, devidos aos preconceitos e discriminações da comunidade, alfim a
mulher pinguça não é vista com bons olhos por ninguém, enquanto aos olhos da
comunidade o homem pinguço é o símbolo da honradez da raça e da estirpe. Estava
distante da vida mesma que é uma constante corrida em busca do tempo perdido,
das ilusões olvidadas. Estava Maria Cachacinha com uma blusa carnavalescamente
estampada, calça jeans mais que desbotada, par de sapatos de salto baixo,
cabelos presos por presilhas, lay-out em dia com a moda oficial da descontração
e lazer. Pareceu-me triste, desolada, um ser desconhecido na plenitude da vida.
Passou por mim, eu de um lado da calçada, ela no meio da rua. Parei,
olhei, observei, reparei. Os olhos azuis estavam lá no fundo das órbitas, não
pareciam apenas nublados, estavam envidrados. Confesso, estupidificado mesmo,
jamais haver presenciado uma cena tão degradante, visto um ser humano num
estado tão deprimente. Não fazia muito havia visto um mendigo, completamente
embriagado, dormindo na calçada, sujo e fedendo, mas um mendigo, por mais
deprimente seja isto, mas é um mendigo. Uma professora de alemão no Instituto
de Línguas Clássicas é inadmissível.
Ombreei-a por alguns segundos, abaixei a cabeça para que ninguém visse o
meu rosto que se encontrava num estado de sentimentos negativos enormes.
Seguimos a nossa caminhada em direções contrárias, ela descendo a rua Direita,
eu subindo. Tive vontade de olhar para trás, não o tendo feito contudo, não é
de minha índole reparar uma pessoa de costas. Se me pedirem explicações desta
minha prática, eu não saberia dar uma resposta convincente, creio que pelas
costas eu não reconheço um ser humano.
Os primeiros indícios da noite se apresentavam solenes, tranqüilos, as
luzes dos postos se acendiam. Imaginei que Maria Cachacinha estava indo para
algum botequim virar mais alguns copos num fôlego só, até embriagar-se, ir
embora dormir, dar uma trégua aos ossos para começar outra jornada do álcool e
do metanol assim que a manhã se anunciasse com nuvens azuis, aquele friozinho
agradável.
Pura imaginação...
E agora, cinco horas da tarde, assisto a uma cena inusitada em nossa
pequena comunidade. O féretro de Maria Cachacinha segue a rua, alguém está com
um blues sendo tocado no aparelho de celular, os amigos dançando e virando a
cachaça através do gargalo da garrafa, uma comemoração de sua morte, morreram
apenas ossos. Amanhã, ninguém mais lembrará que Maria Cachacinha existiu no
mundo, existiram os seus ossos locomovendo-se pelas ruas e avenidas da cidade,
e todas as vezes que virem uma garrafa de cachaça se lembrarão de que havia um
monte de ossos que bebia cachaça até por osmose, e eram alemães de claras e
gemas.
(**RIO DE JANEIRO**, 22 DE MARÇO DE 2017)
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