**QUEM NÃO TEM CÃES, RESTA-LHE CAÇAR COM OS DIVINOS JEGUES** - PINTURA: Graça Fontis/RAPSÓDIA SATÍRICA: Manoel Ferreira Neto
EPÍGRAFE:
Soneto "Língua Portuguesa" de Olavo Bilac
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
(OLAVO BILAC)
Bons dias!
A nossa “última flor do Lácio/inculta e bela...” é
tão flexível, tão flexível, que, se esticá-la até aos confins, num piscar de
olhos ela chega aos cafundós, sorrindo, de olhos faiscantes e brilhantes, e
ainda acena como quem diz: “Estava negligenciando os meus poderes! Que coisa
feia!” Nem tanto o céu, nem tanto a terra, eis a questão. Se não houverem as
devidas tramóias, trejeitos, jogos indecentes e imorais, fragmentos
imaginariamente musicalizados, à luz das rapsódias, perspicácias e
engenhosidades ao lidar com ela, com efeito não chegará a um palmo frente ao
nariz adunco ou aquilino. Fiquemos com a sua flexibilidade, com os poderes de
quem lida com ela. São a flexibilidade e os poderes que a elevam aos auspícios
da beleza e do esplendor, que tanto extasiam os espíritos sedentos e famintos
de sublimidade.
O poeta a chama de “inculta” e “bela”, o que penso
ser um acinte o “inculta”, fosse-o como mentes e espíritos desenvolvidos e
profundos iriam alcançar dela tantos esplendores; “bela” sim, quando se
mergulha em todos os seus recursos de sensibilidade e espiritualidade, quando
se adentra nos contornos de seu “corpinho” esbelto, de formas singelas e puras,
quando se se perde nos seus olhos vivos e perspicazes, aí não há dificuldades
de expressão que não se extasiam, e mesmo com todos os esforços e lutas, a
felicidade e alegrias de expressão deixam volúpias não apenas no corpo, também
na alma e espírito, aí me sinto no paraíso terreno de todas as sensações de prazer
e clímaces. Mas o poeta tem razão, inculta e bela, realiza os sonhos de verbos
outros que elevam a vida, que elevam a língua sedenta de outros movimentos, que
não os do cão, que no calor indecente, descansa-a, jogando-a um palmo além de
sua boca, e são os caninos que se revelam transparentes e vivos.
Anos e anos de experiência, vivência, crescimento e
amadurecimento, dores e sofrimentos inestimáveis, dificuldades e limites
in-descritíveis, ensinaram-me alguns de seus segredos, óbvio ela se abriu para
mim, con-sentiu-me mergulhar em seus interstícios e entranhas – e mesmo assim,
ainda hoje, as labutas e angústias são imensas, é um uni-verso ilimitado.
Dissera-me em silêncio sublime: “Valorize-me e faça-me grande, eis a grande
res-ponsabilidade que coloco em suas mãos. Sei que você jamais irá
decepcionar-me, sinto isto de verdade. Mãos à obra! Os horizontes e uni-versos
abro-os para você!”. Disse-me alguém:"... escrever tanto e tão bem; nao
cabe só numa reencarnação!" A última Flor do Lácio ensinou-me segredos que
só seriam revelados em muitos séculos, seria até falta de misericórdia de Deus
enviar-me ao mundo por inúmeras vezes só para depenar os galos e garnisés da
humanidade.
Não fosse assim, digo, não fossem a flexibilidade,
tramóias, perspicácias e engenhosidades, nem teria sentido algum quem lida com
ela escrever alguma coisa - usá-la-ia apenas para as conversas quotidianas e de
alcovas, e olha se conseguisse se expressar com propriedades, se conseguisse
dizer o que vai nas entranhas pré-fundas, ficaria vagando pelas beiradas dos
sentimentos e emoções, dos desejos e sonhos do ser, do verbo, do amor -, fazer
esforços sobrenaturais para atingir os objetivos e propósitos da arte, o que
conseguiria seria reduzi-la ao máximo, quem sabe assim dissesse alguma coisa,
criasse obra-prima. Não sendo flexível, o caminho seria a redutibilidade para
se chegar a realizar os sonhos da eternidade, escrevendo. Quem não tem cão,
resta-lhe caçar com os divinos jegues.
Cães, posso afiançar até com orgulhos da estirpe,
da laia, e até da raça, tenho-os, e são eficientes nas caçadas das palavras e
sentimentos devidos, da linguagem e estilo que me são próprios e singulares,
mas me não é tão simples quanto se possa imaginar, sou um vastíssimo mundo no
íntimo, sou um complexo de sentimentos e emoções, sensações, questionamentos,
dúvidas e incertezas, sou um abismo de re-versos e in-versos, de contradições e
paradoxos, mister esmero nos arrebiques, mister acuidade nas demonstrações do
ser de mim, conhecer-me um pouco é sim fundamental para me expressar, os sonhos
e utopias do “ser” são imensos, preciso arrancar-me de dentro, e é com as
palavras, com a última flor do Lácio, a minha querida e estimada amante de
todos os instantes, com os seus sentimentos de amor, carinho, ternura que por
mim nutre, o que, às vezes me deixa sensivelmente ad-mirado, como fora se me
entregar tanto, des-confio dos méritos, de que me sirvo para as minhas
empreitadas em busca da vida, das verdades que me habitam, que vou seguindo a
minha jornada, trilhando as “Veredas de Pitibiriba”, que me levarão aos
caminhos do campo abertos a todos e horizontes e uni-versos da vida e da
eternidade, da plen-itude e sublim-idade.
Aquém. Além. No peito, a etern-itude sem letras,
não queria a vida deste jeito. No âmago de mim, as palavras sem plen-itude, não
desejava os sonhos neste estilo e linguagem. In-vestigar o que fiz da vida,
chegando à verdade de que a joguei fora, isto é hipocrisia deslavada. Nada fiz
da vida, não a joguei fora, simplesmente arrastei pelos terrenos baldios das
contingências, puxei pela coleira os lácios da última flor, deram-lhe húmus e
seiva as cretinices e embófias de seus re-presentantes da escrita, perfeitas
mulas do templo.
Nalgumas situações e momentos, isto quando os cães
se encontram estafados de tantas caçadas, de tantos esforços para agarrarem as
caças, monto no meu jegue, de botina, espora, chapéu de palha, jaquetão de
couro, todos os apetrechos de um perfeito sertanejo de nossas terras, sem
vergonha ou quaisquer sensos de ridículo, e vou caçar hipocrisias e farsas pela
floresta das civilidades das estirpes e laias, o que é ainda mais difícil de
ser realizado, entra em cena os jogos de sentidos, entram os naipes da condição
e natureza humanas, entram as acuidades dos olhos e das mãos, o que está mais
do que trancado a sete chaves no mais profundo.
Nas letras posso pôr o preto-no-branco, o preto não
ficará branco, o branco não ficará preto, a cor do preto será preta, a cor do
branco será branca, não ficarão preto e branco desbotados, branco e preto
ininteligíveis, é isto que as letras podem proporcionar, é isto que a última
flor do Lácio, flexível que é, pode ser nas palavras, pode ser nos sentimentos
que afloram na tentativa de ser expressão.
Nas letras posso pôr o cavalo-na-chuva, o cavalo não
vai ficar molhado, não se constipará, não pegará uma turbeculose, a chuva não
se tornará mais importante ou adquirirá maiores ou menores poderes poder não
molhar o cavalo, não deixar-lhe respingado. Isto é que é poder, o poder das
letras é inestimável, qualquer coisa que for colocada na chuva é inevitável que
se molhe. Seria que com a última flor do Lácio pudesse eu tirar o
cavalo-da-chuva, e ela molhar apenas a sua sombra? Poderia sim, ela é tão
flexível a nossa última flor do Lácio que desenhará no solo a sombra do cavalo
depois que ele for retirado da chuva, e os pingos que nela caírem mergulharão
profundo na sua alma, são os únicos que não seguirão a trajetória da enxurrada.
Nas letras posso pôr as manguinhas-de-fora, será
até mais interessante de serem lidas, re-colhidas e a-colhidas, pois sem as
minhas manguinhas colocadas para fora não serão letras minhas, não serão
palavras da última flor do Lácio, serão apenas caracteres registrados na página
branca de papel, sem quaisquer valores. As manguinhas-de-fora é que mostrarão
os valores insofismáveis das palavras que a flexibilidade da última flor do
Lácio tornou possível, são o cerne para o entendimento e compreensão dos
sentimentos, desejos, sonhos e utopias que me habitam, e com eles torno-me o
artífice inalienável de outros horizontes e uni-versos, de novas realidades, do
ser que é o maior sonho a ser realizado, a ser vivido e vivenciado, e são os
verbos que nascem e re-nascem do íntimo da flor do Lácio que se transformam na
carne da arte de pôr as manguinhas de fora.
Nas letras posso por os jegues-nas-corsias devidas,
comendo com os olhos os peões tomando a cachacinha, sentados no banco de
madeira, contando "causos", enquanto trituram o feno, com as fuças
abertas e resfolegando de tanto prazer, e não seria isto metáfora do
despautério e disparate das razões puras e práticas, os jegues são superiores
nas críticas aos pitis e mazelas humanas porque seus instintos fluem à mercê
daqueles estremeliques na pele e na carne quando o dono lhe tira a sela e os apetrechos
de animal de carga.
Nas letras posso pôr os poderes-para-fora, poder de
desejar a verdade, poder de ser a eternidade, poder de contemplar a
imortalidade, numa atitude de fazer tramóia com o senso e ridículo do re-verso,
não lhe tirando o “re”, ficaria estranho, ao contrário, faria dele um biboque à
cata de algo para se bater, criticar as instituições e entidades, o juízo que
faço das ações, gestos e atitudes dos políticos, do sistema judiciário,
fazendo-lhes tirar o chapéu para me venerar, lembro-lhes a mandioca e o pepino,
as bananas e os vencedores, lembro-lhes de que a obra mesma é que tem seus
valores, merece os seus encômios ou as costas como cínica. Os poderes de fora
ficam bem mais fácil de se entender o caráter. Seria que a vida imita a arte ou
a arte imita a vida nisto de flexibilidade da “última flor do Lácio, inculta e
bela" ou seriam os poderes, interesses e objetivos do risível e do belo, a
busca da arte, a busca da vida.
(**RIO DE JANEIRO**, 29 DE MARÇO DE 2017)
Comentários
Postar um comentário