**COM A LÍNGUA DES-LOCADA** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
Beatriz Escullaxo abriu a porta. Guido estava
deitado, rindo, mexendo com os dedos dos pés. Compreendeu ela que a razão de
haver voltado antes do esperado se fundamentava no fato de os sapatos estarem
apertando e muito. Mas não fora o que lhe chamara a atenção, assim que viu o
namorado deitado à cama – ria ele a bandeiras soltas.
- Por que está rindo tanto? – sentou-se à beira da
cama. Tocou-lhe o peito com carinho, deixando a mão um pouco sobre ele. Quem
sabe não estivesse pensando e sentindo, uma espécie de memória, que, na feira,
sentindo dores, a sua vontade era de rir das dores, pois que não acreditava
nelas, os homens criam as dores. Não pôde, ainda não sabia o porquê, rir, gargalhar
das dores que sentia nos pés. Tirado, deitado na cama, ria de sua
impossibilidade de ter rido.
- Não é por os sapatos haverem apertado os meus pés
– disse-o a título de uma explicação de seu retorno rápido – É que dona
Emereciana Lopes contou-me a última de seu garoto de serviços. O garoto faz
toda espécie de trabalho no centro, desde postar correspondências para o Rio de
Janeiro, a sua irmã Eulália mora lá, está passando certas dificuldades, o
marido está desempregado, até fazer depósitos no banco. Os pés doendo, dona
Emereciana contando a história. Imagine só a agonia e o desespero, não podia
nem pensar em tirar o sapato. Sabe como ela é. Em poucas horas, Lágrima dos
Insanos saberia que eu também tenho um problema de odor fétido, nos pés, claro.
Rodolfo estava saindo às pressas da casa de dona
Emereciana Lopes. Quando chegou ao segundo andar da casa, o último degrau fica
de frente para a sala onde ela costuma estar fazendo crochet, o garoto dirigiu
um olhar furtivo em direção ao quarto dela, sem se voltar de todo, e a viu
pregada no mesmo lugar, cheia de admiração, devorada pelo desejo e pela
curiosidade. Isto é como uma flor que todas as lacrimenses dos insanos aspiram
deliciadas. Algumas mulheres cumpridoras de seus deveres, lindas e virtuosas, voltam
para casa de mau humor quando não colhem um ramalhete de galanteios durante um
passeio.
- Rodolfo, onde você está indo? – não havia lhe
incumbido de qualquer serviço no centro – Não fique vagabundeando pelas ruas;
preciso de você, e onde está? Na rua.
- Vou ao puteiro, minha senhora! – respondeu
Rodolfo um tanto sem graça, mas era a verdade. Não poderia dizer outra coisa.
Não aprecia mentiras. Ademais, muitíssimo chata aquela situação de “Onde você
está indo?”, obtendo como resposta “Vou ali”. “Sim, vai ali... Ali é onde?” “Se
eu pudesse dizer onde é o ali, eu não teria dito ir ali, teria já dito onde
estaria indo”. Chegar a esse final é que écomplicado, os miolos já estão
exprimidos, e a língua deslocada.
- O quê?! – indignou-se dona Emereciana; tinha lá
as suas razões, explicara Guido Neves, um garoto dizer na “lata” que está indo
ao puteiro; isso, salvo as exceções, é falta de respeito. Dona Emereciana já
está com os seus cinqüenta e cinco anos – Moleque mal-educado! Esse não é jeito
de falar! Além do mais, você é menor e está em horário de serviço! Você fica
aqui!
- Tudo bem se a senhora mandar... – concordou
Rodolfo – Mas então, o seu marido vai ter que ir pegar ele mesmo o guarda-chuva
que esqueceu lá.
Não houve alternativa senão deixar o queixo cair.
Não por representações advindas de um garoto que naquela idade dizia estar indo
ao puteiro, mas que jamais poderia imaginar que as suas desconfianças de o
marido estar freqüentando o bordel da madame Yoko, japonesa que dirigia uma das
casas mais profanas de Lágrima dos Insanos, seriam confirmadas por seu garoto
de recado. Saiu às pressas. No quarto, só se ouvia as reprimendas sérias.
Sobre a questão dos sapatos apertados, inferiu
Guido Neves que a vida é o mais engenhoso dos fenômenos, porque só aguça a
fome, com o fim de deparar a ocasião de comer, e não inventou os calos, senão
porque eles aperfeiçoam a felicidade terrestre. Não saberia eu informar de quem
se trata, mas houve um filósofo, um dos mais importantes da modernidade que
dissera com todas as vírgulas e letras em seus devidos lugares que o homem tem
fome porque existe a comida, se não existisse a comida, o homem jamais teria
fome, o que para ele era um absurdo dos mais solenes possíveis. Em verdade,
saindo de perto da janela do quarto de Guido Neves, relinchei um pouco com a
idéia de que a sabedoria humana não vale um par de sapatos apertados, um
guarda-chuva deixado no puteiro.
Bem-aventurados os que não calçam sapatos
apertados, pois podem andar o quanto lhes aprouver, mesmo que não tenham comido
canela de cachorro. Bem-aventurados os que não deixam o guarda-chuva no
puteiro, pois não serão descobertos pela esposa, não sofrerão os revezes de ato
tão arbitrário e gratuito.
(**RIO DE JANEIRO**, 20 DE MARÇO DE 2017)
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