**ENTRE-VISTA COM ROBERTO FIGUEIREDO DOS SANTOS** - ENTREVISTADOR: Roberto Figueiredo dos Santos (Contabilista, Curvelo, Minas Gerais)/ENTREVISTADO: Manoel Ferreira Neto
POST-SCRIPTUM: Esta entrevista foi concedida e
publicada e comercializada no RAZÃO IN-VERSA - SUPLEMENTO-CADERNO
LITERÁRIO-FILOSÓFICO, 41 EDIÇÃO, MAIO DE 2011
R.F.S. - Quando foi despertado para as sátiras?
M.F.L. – Em verdade, é dificílimo dizer isto. A
obra de Machado de Assis foi-me despertando aos poucos, ao longo dos anos, de
minhas vivências, experiências, ao longo da minha obra. Tenho lembranças muito
queridas de duas obras lidas por mim, não tive condições de conter-me, ri à
beça, uma foi Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, a outra foi de João
Ubaldo Ribeiro, o protagonista da obra era um urubu. Amei estas duas obras. São
modos de haver o despertar para isto de me identificar tanto com a sátira. Deixando
de lado as obras literárias, filosóficas, o meu sangue circense, o que me
despertou para a sátira foram os homens, suas hipocrisias, seus comportamentos
ridículos, suas atitudes medíocres e mesquinhas, está para haver no mundo outra
espécie tão ridícula e imbecil, são eles sui generis; então em nossa
modernidade, especialmente em nossa atualidade, quando tudo é permitido, quando
se perderam todos os sensos e razões, os valores e virtudes servem aos
interesses e ideologias, quando não há mais qualquer problema, censura quanto
às hipocrisias, farsas e falsidades, aliás faz parte do cardápio da vida íntima
e social tais coisas, são da índole, da laia, da estirpe, são da essência
humana, os homens chegaram ao topo do Olimpo com todas as mediocridades e mesquinharias.
A nossa sociedade curvelana prima pela aparência, pela hipocrisia em todos os
seus naipes, é imbecil metido a intelectual, é pé-rapado metido a milionário, é
político corrupto metido a personalidade da cultura e das artes, um punhado de
gente metido a escritor, é canalha metido a moralista, etc., etc. É nesse
ambiente, nesta conjuntura, que nasce a sátira, que nascem as críticas
contundentes. Curvelo me fez sátiro. A sociedade fluminense fez Machado de
Assis. È preciso ter coragem, ter muito peito, ser ousado, não medir
conseqüências para ser sátiro. Trago em mim estas características todas, rasgo
mesmo os verbos com todas as suas conjugações nos seus devidos tempos.
Fui despertado, pus a mochila nas costas, é seguir
todas as veredas e caminhos.
R.F.S. – A sátira é mais excitante que outros
gêneros literários?
M.F.L. – Muito mais excitante. Não escondo leite
para dizer que sou tomado de todos os êxtases e volúpias quando me surgem as
inspirações, fico completamente transtornado, viro-me pelo avesso. A excitação
transpõe todos os limites do bom senso, é quando critico mesmo, não deixo
hipocrisia sobre hipocrisia, descasco todas as “manjocas” sem dó nem piedade.
Sinto prazeres inusitados. Nilzo Duarte já dissera com todas as letras que tenho
grandes prazeres em escarnecer dos homens e das criaturas. O que excita mais é
que me vejo livre de todos os preceitos, conceitos racionais. Não digo que
nestes instantes sou só instintos, porque isto é fantasia, quimera, mas
mergulho fundo neles. Quantas vezes, escrevendo o romance do jegue lamentei não
ser um jegue de pura raça para realizar a obra com perfeição. Todos os textos
satíricos que escrevi até hoje me deixaram extasiados, e a felicidade e alegria
mais contundentes aconteceram com a aceitação plena de meus leitores, arranquei
risos os mais altissonantes deles todos. Walderez, sua secretária, quando li
para ela um destes textos, sobre o jegue, rindo, gargalhando, dissera-me haver
muitos jegues em Curvelo, as carapuças iriam servir em muita gente. De todos os
textos por que tenho mais carinho é o do Cabo Rego, sua especialidade é fazer
discursos, convidado para discursar na tribuna da Câmara Municipal numa votação
de projeto de lei, depois de um excelente pé de porco na Casa Grande para todos
os vereadores e amigos, durante seu discurso deixou todos com as calças cheias,
o presidente pregado na cadeira. Neste texto, creio que deixei bem nítido e
transparente o que penso dos políticos, dos oradores, da política. Este é um
dos meus textos preferidos. O outro é Mistério da Meia-Noite, inspirado num
verbete publicado na coluna Urutu do tablóide Centro de Minas. Encontrei-me com
o Sargento Raimundo na lanchonete ao lado da Prefeitura e da Câmara Municipal,
lendo para ele. As pessoas que estavam presentes prestavam a maior atenção,
riam. Uma mocinha, quando eu terminei, estava ela saindo, disse-me: “Tem de
fazer uma lavagem cerebral em você. Falando de nosso Zé!”
R.F.S. – É mais ou menos fácil escrever sátiras?
M.F.L – Escrever é dificílimo, as dificuldades são
imensas. Escrever um bilhete para a governanta desligar a geladeira, tirar tudo
de dentro, fazer uma limpeza geral, é dificílimo, a governanta pode não
entender a ordem. Escrever uma carta de amor, quando a paixão está à flor da
pele, tudo sendo permitido, todos os exageros e todos os ridículos que a paixão
oferece de mão beijada, é dificílimo, pois a pessoa pode sentir-se
negligenciada, o amor ou a paixão não foi dita com veemência. Escrever gêneros
literários, então, é muitíssimo mais complicado e complexo, trata-se de arte, e
a arte exige, em primeira instância, o dom e o talento, em segunda, o ser de
quem escreve, experiências, vivências, visão-de-mundo, em terceira, muitas
leituras. Não há gênero literário mais fácil ou mais difícil, qualquer um deles
exige muito. De todos os gêneros os que são mais difíceis para mim são o conto
e a crônica, não sei lidar com a síntese, sou em demasia analítico, uma das
influências da filosofia. Tenho mais experiência com o romance, apesar de todas
as dificuldades que enfrento quando me ponho a escrever um. O romance mais
fácil de ser escrito, senti-me à vontade, pude explorar características que já
estavam presentes em minha obra, pude conhecer outras, dera-me a oportunidade
de ser mais flexível com as palavras, além disso tudo, o jogo das idéias,
sentimentos, emoções, o jogo dos sentidos. Apesar de que não sou autorizado,
não me sinto autorizado a dizer que fora fácil escrever este romance satírico,
não sou jegue, não sou apenas instinto – aliás, aquando estive escrevendo, era
de meu interesse conhecer a fundo os meus instintos todos -, não existe jegue
intelectual, o que dificultou muito; fora muito difícil, tive de arrancar-me de
dentro, colocar à luz do dia e do sol os meus instintos todos, no sentido ipsis
litteris do verbo “arrancar”, fui violento com as minhas pré-fundas, caso
contrário jamais teria escrito este romance.
A maior dificuldade em escrever sátiras reside no
riso. É unânime entre os atores a fala de que fazer as pessoas rirem, arrancar
risos delas, é a coisa mais difícil, fazê-lo só mesmo para quem tem o dom e o
talento, são poucos os que ousam tentar representar uma comédia ou ser um
imbecil de bengala e fraque, menos ainda os que realizam grandes papéis. Dou um
exemplo disso: depois de O gordo e o magro, Oliver Hardi e Stan Laurel,
houveram outros? Nunca, ninguém foi capaz de ser o gordo e o magro. O mesmo com
os Três Patetas. São únicos, e não haverá outros até a consumação dos tempos.
Se se colocar um trapezista para ser palhaço num espetáculo circense, o
ridículo será estabelecido, o público irá embora. Não é fácil fazer rir. Digo-o
mesmo: não houvesse em mim sangue de circense, não fosse neto de palhaço, não
amasse tanto o circo, jamais escreveria uma sátira, há um dom em mim para este
gênero literário. Mesmo assim, não habitasse em mim o paradoxo, não fosse uma
de minhas dimensões psíquicas, emocionais, sou um homem em demasia paradoxal,
resultante de minha sensibilidade aguçada, personalidade controversa, caráter
polêmico, rebelde, revoltado, bastante conflituoso, não escreveria sátira. Ser
paradoxal é que me abriu as portas e comportas da sátira, porque para que ela
seja real-izada a critério e rigor faz-se mister elevar a imagem ao extremo,
ultrapassar todos os seus limites, especialmente no que tange ao seu
denegrimento, escarnecimento, mostrar os seus ridículos e nonsenses, e para
isso é necessário saber jogar com as palavras e sentidos, ser flexível com
elas. Quer um exemplo de escarnecimento da imagem melhor que este: “... cara de
rato de esgoto e olhinhos de pulga amestrada dando pulinhos na imagem...”, que
está presente na sátira Joaquim foi ao ar? Não há quem se sinta satisfeito em
ser assim descrito; sente-se inferiorizado, sente-se objeto de mofa, gozação.
Quem olhar para esse homem, lembrando-se de minha descrição, inevitavelmente
vai sorrir, no íntimo a gargalhada mais que presente. Tendo lido para um
conhecido dentro do ônibus, viajávamos juntos, eu estava vindo a Curvelo, ele
seguiria viagem até Belo Horizonte, da última vez em que aqui estive,
dissera-me o conhecido: “Todas as vezes que me encontrar com este homem não vou
esquecer destes “olhinhos de pulga amestrada dando pulinhos na imagem”. Será
inevitável”.
Há quatro anos a escritora e poetisa
cordisburguense D. Ernestina Barbosa, de quem sou amigo, escreveu-me uma
cartinha dizendo-me que o que mais aprecio, sinto prazer, é mexer com o brio
das pessoas, não perdôo mesmo. Verdade inconteste. Hipocrisias, farsas,
falsidades, aparências, ostentação de valores, poder, sentimentos de importância
elevada, não engulo mesmo, e são estes homens com estas características à flor
da carne e dos instintos os meus objetos de crítica, de mofa, de gozação,
mostro-lhes com veemência qual é o habitat deles, jogo-lhes na sarjeta com
todos os orgulhos e lisonjas, com todas as imagens que criaram para si mesmos,
com todos os rótulos de sui generis que afixaram na testa. Você mesmo,
Robertinho, já dissera centenas de vezes que estou precisando de guarda-costas
e batedores, estou correndo sérios riscos. Sou um crítico dos costumes, dos
hábitos, da cultura, sou um crítico das mazelas e pitis humanos, ninguém está
livre de meus ácidos críticos, se as carapuças não servem em uns, servem em
outros. Já observei certos olhares de esguelha para mim nas ruas curvelanas,
aquelas insatisfações e ódios bem visíveis, mas nunca irão querer tirar
satisfações comigo, estarão se entregando de mão beijada, terão de engolir os
sapos secos a nu e cru. Quem já respondeu a critério e rigor às minhas
denúncias e críticas? Ninguém. E não foi por falta de vontade. Simplesmente
porque não têm palavras para fazê-lo, falta-lhes saber escrever.
Então, como é que sinto que realizei a sátira, que
consegui os meus objetivos, já que é tão complexo escrever sátira, é um dos
gêneros mais difíceis, diria mesmo ser o mais difícil de todos? Mais difícil de
todos porque este gênero, além das exigências que estou elencando aqui, o
conhecimento da filosofia é imprescindível, não se escreve sátira sem este
conhecimento. O filósofo que mais me influenciou na sátira foi Nietzsche, ele
traz em si o paradoxo, o exagero, o caráter polêmico, a personalidade
controversa, a sensibilidade aguçada – aliás, é só averiguar no romance UTOPIA
DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO que as epígrafes são dele -, o escritor que também me
influenciou, mais ainda que Nietzsche, foi Machado de Assis, conheço-lhe todas
as obras. De Machado de Assis dizem que ele deu à sociedade fluminense a
própria cicuta para tomar, que ela tomou com prazeres e êxtases, deliciou-se,
sentiu-se nas nuvens. E não é que esteja eu fazendo o mesmo com a sociedade
curvelana, dando-lhe cicuta para beber, destilada com suas próprias
hipocrisias, farsas, falsidades, poderes, seus orgulhos de raça, estirpe, laia?
Sempre tive nas pré-fundas de mim que “a alma curvelana tem galerias e
corredores dentro de si, esconderijos, masmorras”. Sinto que realizei a sátira,
quando a imagem denegrida, escarnecida está sentadinha no Olimpo, sendo objeto
de olhares de todos os linces, sendo objeto de risos e gargalhadas, de lá não
mais sairá, ficará para a posteridade, por todos os séculos com o
desenvolvimento do conhecimento as gargalhadas serão ainda mais altissonantes,
ouvir-se-ão o som delas nos confins e arribas do mundo. Também de outro modo
sinto que me realizei na sátira, no texto satírico, quando eu próprio não
consigo me conter e rio, gargalho. Se sou capaz de rir do que eu escrevo, não
há duvidar que os leitores também irão rir, até mais que eu, porque fazem suas
associações livremente, relacionam as coisas com muita facilidade. Inúmeras
vezes dei uma palhinha para você, Robertinho, lendo sátiras, e você é
testemunho que cai na gargalhada, tendo até dificuldades de continuar lendo.
Dependendo das circunstâncias, eu próprio identifico o objeto de minha sátira,
em quem me inspirei para escrevê-la, já identifiquei quem são as pessoas em que
me inspirei para escrever o romance do asno. Faço-o a viva voz, não o faço nos
textos.
É mais fácil escrever sátiras, quando tomo em
consideração que sou bem flexível com as palavras, sei jogar com todos os seus
naipes, sou sarcástico, irônico, cínico na construção das imagens,
escarneço-as, denigro-as, subestimo-as, mas é mais difícil porque tenho, sou
obrigado, é de minha missão fazer o leitor rir, fazer o leitor rir de si mesmo,
de suas mazelas e pitis, de suas hipocrisias e aparências, admitir
veementemente a sua natureza espúria e indecente.
(Maio de 2011)
(**RIO DE JANEIRO**, 29 DE MARÇO DE 2017)
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