**RECANTO AFASTADO DA SABEDORIA** - Manoel Ferreira
Despojando de significado todas as coisas do mundo,
o silêncio, os elfos, os gnomos, a idéia de uma águia sobrevoando as serras, a
idéia de uma vela colocada do lado de fora da janela consolam-me prematuramente
das dores merecidas e absolvem-me de tristezas e desilusões. Não possuo nenhuma
das idéias que tivera a ingenuidade, a inocência de atribuir ao silêncio e
solidão deste quarto onde me encontro, a minha arte do cinismo e do sarcasmo,
da ironia e da galhofa, revela-se, com o tempo, tristemente monótona.
Mas apenas metade de minha inteligência consegue
acreditar a alegria e exultação de, à noite, enfiar-me debaixo da coberta, do
edredom. Se há algo que ansiara permanentemente em todos os anos fora por uma
intimidade completa comigo, uma intimidade de compreensão e conhecimento. Se a
compreensão e o entendimento afastam-se, resta um espaço vazio, e toda a luta e
desejo profundos são de preencher este vazio, resta um espaço cheio de sombras.
Se pudesse ser frio, de não dar a mínima para o espaço vazio com a ausência da
compreensão e o entendimento, ao ponto de imaginar-me rindo tanto do vazio como
das sombras, riria sem dúvida de me imaginar vivo. Não me afasto dos desejos
mais percucientes de uma intimidade completa comigo, mexendo-se-me,
remexendo-se-me, pelas fadas do silêncio e pelos elfos da sombra e pelos gnomos
do esquecimento...
Com que alegria, com que exultação, enfio-me à
noite debaixo da coberta, do cobertor, do edredom! O importuno rumor da vida, o
importuno sussurro dos questionamentos muitos, dos desejos de sobrevoar os
campos, os rios, os mares, seguindo os horizontes à frente, o importuno rumor
da vida quotidiana, o seu dia a dia, sofre uma trégua e no silêncio noturno a
minha imaginação, a minha criativa inteligência segue o seu curso à vontade.
Todos os homens têm, assim o creio desde há muito,
desde tempos imemoriais, como tenho costume de dizer, aprecio muito esta
imagem, todos os homens têm o direito de expandir suas opiniões e seus
conceitos ao vento que sopra. Se, então, seguindo este pensamento, aliás, uma
convicção que dentro trago em mim, deveria expandir, deveria permitir que com o
soprar do vento de sombras a reflexão da vida seja algo que mude vez por todas
a vida.
Observo de repente, como quem repara que é
vocacionado à felicidade, como quem repara que é vocacionado ao seu
conhecimento íntimo, como quem repara que vive e sonha a vida, sonha o sentido
da vida, sonha a união da vida e do sentido da vida, o quarto está cheio de
vozes que comigo dialogam, mas termina por ser um monólogo porque só se ouve a
minha voz trespassada de tantas vozes. Nenhuma ânsia teria razão de ser.
Sombras se projetam por todos os cantos do quarto
onde estou. Caminhando sempre e sem o saber ou querer, parece ainda assim que
me demoro á beira de alguns rios. Sombras que são relíquias de outroras
felizes. Um vento de sombras, a janela está aberta de fio a pavio, e o dia
estivera ensimesmado devido à chuva que caiu por quase três dias continuamente,
sopra as cinzas que foram sendo armazenadas no íntimo, cinzas sobre o que sou
de vigília, sobre quem sou no sono. O espírito vagueia sem limites e sem
fronteiras, sinto a profundidade das águas que seguem o trajeto rumo ao mar, à
amplitude, e a profundeza do olhar que a acolhe e recolhe de um desejo, de uma
vontade.
Aqui a paisagem tem os olhos rasos da fonte
originária do rio de águas límpidas, olhos parados cheios de tédio inconcebível
de ser quem sou, de revelar a profundidade de meu espírito, os sonhos e
esperanças que me habitam a alma, o espírito. Cheio sim do tédio de ser
qualquer coisa, de não me importar nem um pouco se não conseguir mais
reconhecer-me, se decidir vez por todas tirar as máscaras com que fui envelando
a minha realidade até não mais reconhece-la em lugar algum, mesmo no recanto
afastado da sabedoria.
Afasto-me da janela, sentando-me à cadeira de sofá.
Olho em todas as direções do quarto em que estou, em silêncio, esperando ver
algo, não sei que algo é este que espero, mas espero. A grande lâmpada
eléctrica sobre minha cabeça lança uma luz amarelada e intensa, fazendo-me
parecer mais claro e pálido do que habitualmente, tirando até a cor dos olhos,
de um castanho claro. A luz amarelada e intensa que me traz a grande lâmpada
parece vir-me de dentro. Aqui me detenho e começo de pensar que há tempo que
vivo instante cheio de um outro senti-la, instante de uma perfeição vazia,
instante de um nada-sublime, tão adversos às certezas inversas da vida.
Instantes caídos nessas verdades de verdades outras cheias de orgulho de ter
inconcebíveis angústias.
Instante de perfeição vazia,
Perfeição de falhas,
Perfeição de desmembramentos,
Perfeição de atos falhos,
Olhar disperso na imensidão do mundo
Instante de um nada-sublime
Nada-sublime de re-versos ideais da beleza
Nada-sublime de in-versas razões do eterno
Nada-sublime de ad-versas idéias dialécticas
Recanto afastado da sabedoria.
Instantes caídos nessas verdades
De verdades outras cheias
De orgulho de ter inconcebíveis angústias,
De vaidades de haverem in-auditas náuseas,
De lisonjas de serem as cintilâncias das estrelas
Ad-versas às certezas in-versas da vida.
O sossego inquieto da fonte originária do rio de
águas límpidas parece vir-me de dentro, sim é de dentro que me vem, encontro-me
encostado ao parapeito da janela de minha residência, no terceiro andar,
dando-me as mãos de concordância espiritual ao entristecer longínquo.
São horas de cinza de espírito, não tenho a
ousadia, não sou um espírito aventureiro, pudera sê-lo, não me pergunto para
que é isto que não é para coisa alguma, para nada, estaria apenas tentando
preencher o vazio das horas com algo sem sentido, não há resposta, nem posso
entender que, não tendo resposta, como uma pergunta fora criada, fora feita,
fora pres-ent-ificada. Tenho-me esquecido do tempo, em verdade. Vivo um tempo
que não sei decorrer, um espaço para que não há pensar, um decorrer fora do
tempo, uma extensão que desconhece as emoções e sentimentos, conhece o saber
como é suave saber que a espiritualidade, o conhecimento, a contemplação, na
clepsidra deste imenso desejo, sonho, vontade do sublime, entregar a vida a
esta busca, esperançoso de vir a sentir o gosto do sublime, gotas regulares de
esperança, de fé, marcam horas irreais.
Lá fora, a noite tão longínqua! Sonho e de por trás
da minha atenção sonha comigo alguém... E eu, que pela manhã da distância, da
lonjura que vai o dia quase a esqueço, é ao lembrar-me dela que sinto em mim
desejos os mais excêntricos, os mais inusitados de num recanto afastado da
sabedoria o ritmo íntimo das vozes que ouço a dizer-me próximo à alma do alto
silêncio; sinto em mim o espanto que as horas de desassossego, para além da
linha externa das montanhas são hábitos de estilo, costume de formas, e para
além dessa não há nada...
Os olhos não são escuros, mas claros, e é apenas a
sombra das longas pestanas que os escurece. Penso poderia estar alhures. De mim
já se afastou a última esperança. Acaso a natureza ou nobre alma agora um
bálsamo não têm, que me traga bonança? Por vezes, não sinto limites no corpo.
Con-templo ora o sorriso cínico e irônico, revelando rebeldia e meditação
acerca de o cristianismo com-templar a morte e não a vida, dizendo-me da
melancolia e nostalgia. Ponho em nível de suas sensações as extremidades algo
longínquas das mais nobres emoções. Imagino estar algures.
Hesito, agora, em continuar a idéia que se me
revelou na mente. Não há muito que, encostando-me ao parapeito da janela, após
a estiada da chuva, olhando à distância a neblina, e agora, tudo se me afigura
um sonho. O coração bate descompassado, não estou nem um pouco consciente da
emoção que se me revelou a ponto de o coração bater descompassado, para isto,
para o fazer bater descompassadamente, há-de ser algo emocionante, inusitado.
Em princípio, ouço com um sorriso calmo e paciente, que raras vezes me
abandona; mas, pouco a pouco, uma expressão de espanto e, em seguida, de medo
transparecem e se fixa no meu olhar. O sorriso não desaparece de todo; mas, por
momentos, parece vacilar.
Na neblina da montanha, chovera por quase três dias
seguidos, pela manhã de hoje estava toda encoberta, já vislumbro e vejo as
musas passarem dançando, e, em que depois, descansando quieto no equilíbrio da
alma matinal de por baixo de alguma árvore, encostado ao seu tronco, dessas
copas e ramagens me sejam lançadas coisas novas, inusitadas, excêntricas e
claras, dádivas de espíritos livres que moram na montanha, no bosque e na
solidão...
Manoel Ferreira Neto
(31 de agosto de 2016)
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