**SURDA AFLIÇÃO DAS ORIGENS** - Manoel Ferreira
Êxtases
portáteis poderiam ser engarrafados, e não por pouco tempo os clímax de
conveniências expostos em galerias, e a paz de espírito poderia ser remetida em
galões pela diligência do correio. Expressando-me neste estilo, e se houver
intrujice e galhofa, ficam a piedade e lástima,
a comiseração e a caridade, o leitor e ouvinte poderão pensar que estou
brincando, experimentando o risível, sem deixar de figurar sutilmente a sátira
e o sarcasmo, ironizando, e sinceramente é um dos poucos instantes em vida que
me encontro bem instalado no mundo, ouvindo músicas, com o cigarro no canto
esquerdo da boca, sem camisa, descalço, de shorts, à vontade, em derradeira
instância, digitando no computador, cuidando de minha espiritualidade e
redenção, de minha contingência e vasconços, alfim o mundo inteiro precisa
saber que estou "de bem com a vida". O néctar dos deuses não é tão
saboroso quanto isto de cuidar dos vasconços. Posso assegurar, entretanto, que
ninguém brinca muito tempo quando estiver sem qualquer intenção ou interesse,
aí há uma originalidade sem limites e fronteiras, o que é em demasia perigoso,
não se sabe de onde sairão as oportunidades e favores. Saídos, o que poderá
interferir no sentido de suas compulsões?
Tenho
o costume de gracejar, fazer pilhéria, ironizar, de vez em quando em meio à
minha própria consciência da miséria humana, mantendo um caráter grave e solene
e, a menos que seja atingido por sentimentos mais poderosos, temo ser culpado
da prática indecente até nestes anais de sofrimento e prazer.
Não
irei negar que algumas verdades são enviadas para o mundo a respeito de estado
tão insolente, desumano, insolicitado, acerca da miséria humana, assim como o
eruditos afirmaram repetidamente que se
me entrego inteiramente a eles provavelmente morrerei com os olhos esbugalhados, a boca cheia de
dentes, o que é particularmente desagradável para qualquer homem de hábitos
singulares e regulares. Todas estas difíceis e intragáveis observações e
afirmações de dores, culpas, remorsos, que preenchem os espaços vazios, e
constituem singularmente a miséria, são realmente verdadeiras, isto queira ou
não, pense em injustiça ou perseguição, sou obrigado a endossar, pendendo um
pouco a cabeça para o lado esquerdo, semi-fechando os olhos, uma atitude tão
trigueira de indiferença e pouco caso, sou obrigado a assumir que são
verdadeiras, Não posso negá-las a menos que esteja sim ficando demente. A
verdade sempre foi e será recomendável.
A
verdade é que, mesmo vinho, até uma certa medida, e em determinados homens, geralmente
tende a exaltar e sustentar o intelecto: eu mesmo, que nunca fui um grande
bebedor de vinho, costumo achar que meia dúzia de copos de vinho afeta
vantajosamente as minhas faculdades, deixa a consciência mais brilhante e
intensa, a sensibilidade aguçada. O
vinho costuma levar um homem ao extremo do absurdo e da extravagância, e depois
de um certo ponto, ele com certeza evapora e dispersa as energias intelectuais.
Resumindo, um homem que está bêbado é, e sente que é, um indivíduo cuja
condição apresenta a supremacia do simplesmente humano, freqüentemente a parte
ridícula de sua natureza. Sente que está sob o domínio da parte mais divina de
seu ser; isto é, as afeições estão em completa serenidade e acima de tudo
brilha a luz do majestoso intelecto.
Procuro,
naturalmente, a solidão e o silêncio, condições indispensáveis para meus
transes, ou sonhos profundos, que são o coroamento e a consumação de tudo o que
a consciência da miséria humana pode fazer pela passagem do tempo. Desde
milênios imensuráveis, a miséria humana é terreno fértil para encontros divinos
e trans-cendentais.
Eu,
cuja miséria é meditar demais e observar muito pouco, e que estou praticamente
caindo numa profunda melancolia por pensar em demasia nos sofrimentos humanos,
conheço claramente as tendências de meus próprios pensamentos para fazer tudo o
que seja possível para combatê-los.
Parece-me
que pela primeira vez me coloco à distância das desventuras da vida; como se o
tumulto, a febre e a luta fossem suspensos, um prêmio para as secretas chamas
do coração, um relance de repouso, um descanso das ocupações humanas. Aqui estão as esperanças que florescem no
caminho da vida, reconciliadas com a paz que está nas sepulturas. Os movimentos
da mente tão serenos quanto os do céu, e no lugar de todas as ansiedades uma
calma e tranqüilidade reparadoras, uma moleza que não parece fruto da inércia,
mas do equilíbrio entre os extremos e antagonismos; atividades infinitas,
repousos infinitos.
A
miséria e o sofrimento estão, por assim dizer, em estado latente. Raro poder
contar com minhas faculdades mentais para escrever uma carta; uma resposta em
poucas palavras é o máximo que posso executar, e assim mesmo só depois de a
carta ficar semanas ou meses sobre minha mesa de trabalho. Você pode ver que todo
o escrito se parece um pouco com uma resignação ininteligível com tudo o que
diz respeito aos homens e a mim, sem dúvida, um gradil pintado de forma a dar
uma impressão de relevo real e seguindo, naturalmente, a curva do teto. Todos
os interstícios entre o estilo, caligrafia, estão recobertos de uma indignação
e ressentimento com alguma coisa que não posso precisar, mas algo parecido como
estar preso em uma elegante e belíssima gaiola para mim apenas. Devo
acrescentar que a noite está muito bela, lindíssima, muito transparente, a lua
muito viva, a ponto de, mesmo após ter apagado a luz, toda a decoração continua
visível, não iluminada pelo olho de meu espírito, como você, ingênua e
inocentemente poderia assim induzir ou
deduzir, concluir ou interpretar, como você, em última instância poderia crer,
mas clareada por esta bela noite, cujos brilhos embaraçam-se a todo este
bordado de ouro, espelhos e cores mosqueadas.
A
noção do tempo ou, antes, a medida do tempo é abolida e a noite inteira é bem
mensurável para mim apenas pela profusão de meus pensamentos. Ainda que, deste
ponto de vista, tenha eu parecido muito longo em escrever-lhe, aliás sem
intenção alguma de dizer algo que se possa levar em conta ou relevar pelo
absurdo e indiferença de todas as coisas, tenho a impressão de que levei apenas
alguns segundos ou então que não havia tomado lugar algum na eternidade. A dor e a idéia do tempo esvanecem-se ou, se
às vezes ousam produzir-se, são transformadas e transfiguradas pela sensação
dominante e estão, assim, em relação à sua forma habitual, como a melancolia
poética está para imaginação fértil e re-criadora.
Não
havia, afirmo, qualquer intenção de escrever-lhe algo, informar-lhe de como
estou a viver os meus dias, inteirar-lhe dos últimos acontecimentos. Sentei-me
com o propósito de exercitar os dedos escrevendo algo endereçado a alguém, mas
não imaginei que fosse tomar outro rumo, e assim estaria eu revelando o que
muito intimamente tenho pensado e refletido acerca de um coração, terno,
fatigado pela infelicidade e decepção, mas ainda pronto a seguir esta procissão
da imaginação humana até sob seu último e mais esplêndido repositório, até a
crença do indivíduo em sua própria divindade.
Manoel
Ferreira Neto
(30
de agosto de 2016)
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