**ESCREVER SEM VERBOS - O QUE É ISTO?** - Manoel Ferreira
Este sol dói-me os olhos. Acho-me em cima da ponte.
Olho a água. Enfio a mão direita no bolso esquerdo da camisa, procurando
cigarro. Tiro o maço vazio. Jogo na água. Passa por debaixo da ponte.
Por momento, vi-me encostado ao corrimão da ponte
no Parque Municipal, tendo as mãos a amparar o queixo, vendo a água passar.
Estava muito distante, pensando em não sei o quê. Perpassara-me a mente alguém
haver dito que irá escrever sem verbos, estes são frutos das vaidades da raça e
da estirpe; se lhe convier descer a pua, descascar os pepinos, no momento da
inspiração, fá-lo-á com a língua dos adjetivos simples. Compreendi que escreve
por ser um homem sem quaisquer verbos ou regências. Venhamos e convenhamos, se
este digníssimo e conceituadíssimo indivíduo e homem, conseguisse regenciar
seus sentimentos e emoções, sem os verbos, o que seria de sua ec-sistência à
luz dos baldios da alma?
Tirei um cigarro do maço e joguei este na água.
Senti o ricochet e logo após começou de ser levado pela água, passar debaixo da
ponte. Não fui ao outro lado para ver o maço passar e sumir na distância.
Apenas imaginei.
A minha palavra ainda não transpôs nenhum
obstáculo, não ultrapassou nenhum limite, não transcendeu qualquer instante-já,
não trans-grediu nenhum princípio, e o que digo não chega até aos homens,
ficando apenas diante de mim, de meus olhos, de minha ânsia e esperança de isto
compreender. É verdade que caminhei muito entre os homens, andei muito entre as
coisas, porém não os alcancei.
No vazio, um corpo estranho. Dilata, quando o sol está
amareliçado e brilhando, deixando pingar no chão as gotículas do amarelo, de
sua tinta. Comprime, quando é sombra violácea ou chanfrada. Nos olhos
envidraçados, envoltos no tênue e irreversível nada, envelados no duro e
espesso fio do tempo extinto, a dor viva, "estribuchante",
tremulante, exposta, espontânea e livre. A dor nos olhos. O vazio vai furando
feridas, como um punhal. Mexe e remexe. A dor em todos os sítios, em sítio
algum. O translúcido de ponta a ponta. A claridade até ao fim.
Estou suspenso no tênue fio do tempo. Meus olhos
tergiversam-se. Sou-me inerente. Fixo as vistas num monte de papéis rasgados e
amassados. Uma lágrima insiste em deslizar-se em meu rosto, mas nada permite
este ato. Meu corpo jaz em cima desta ponte. Está inerte. Fixo-me no dedo
mínimo. A princípio, consigo delinear a sua forma, o seu comprimento. Tudo
escapa. Um mosquito voa, emitindo um som angustiante. Pudesse, iria acabar com
sua vida, cortar-lhe em pedacinhos ínfimos. O máximo: suportar este barulhinho
infernal.
Uma presença de nebulosas brumas. Um frio
envolvente e espesso, transformando tudo, infiltrando-se no gosto agridoce e
pastoso, iluminando uma presença que aparece ausente, nas suas circunstâncias
de medo e pavor. Demônios cinzentos, adocicados. Um inferno frio, estupidamente
gélido, vai até os ossos. Os antes foram excluídos e, no íntimo, uma presença
forte, compacta, decisiva. Na absolutez e totalidade, uma sensação livre. A
existência é absoluta. No prosseguimento, a luta constante dos absolutos. A
morte é absoluta. O tempo a matar cada absoluto. O absoluto maior,
aproximando-se.
Tudo em mim pesa. Nem mesmo um guindaste seria
capaz de levantar-me a cinco centímetros do chão.
Caminho. Olho para trás a todo instante.
Acho-me sentado a uma mesa na calçada. Algumas
pessoas bebem, enquanto conversam, dialogam, comunicam-se com espontaneidade.
Outras estão caladas, comendo. “A comida antecipa a minha morte. Por que estou
agradecendo?” Inicia o seu almoço. Uns rapazes cabeludos, cabelos grudados de
sujeira e óleo, sandálias, calças desbotadas e remendadas, camisa larga ou
colada na pele, barba grande, olhos brilhentos e reluziosos, mascam goma.
Algumas mocinhas estão sentadas, conversando, enquanto bebem. Os cabelos em
desalinho, sujos, rosto todo pintado, com os braços cheios de pulseiras. Vê-se
algumas tatuagens. Vejo uma tartaruga tatuada no peito de uma. Está sem
soutien. Uma está com as pernas cruzadas, sentada sobre os pés. Está sem
calcinha. O vulto negro dos cabelos de seu sexo. Mascam chiclets. Uma está com
os olhos fixos em mim. Estão parados.
Olho o Campari dentro do copo. É um líquido
pegajoso, de um gosto a comprimir o paladar, fazendo a língua estralar; a
dilatar a garganta, a fim de não se comprimir, impedindo o pulmão de continuar
o seu trabalho diário, que vai dilatando tudo até chegar ao estômago. A boca
fica por uns instantes com um gosto pegajoso e adocicado, e que vai sumindo aos
poucos até ficar completamente seco. A saliva é eliminada. Pedacinhos de limão
dentro: alguns no fundo mesmo, outros boiando junto com o gelo. O gelo vai-se
dissolvendo, eliminando um pouco a pegajosidade do gosto e o denso líquido.
Antes mesmo de o gelo derreter-se, o Campari vai sugando o seu azedume, o que
permite ao Campari conservar um pouco o seu gosto pegajoso. O oxigênio e
hidrogênio da água do gelo são sugados pelo azedume do limão. A água
praticamente inexiste. Existem pingos que ficam na parede do copo, que vão
embaciando o corpo por fora.
Fico encabulado com a pobreza das palavras. Azedume
do limão. O azedume é algo dado (ou existe no paladar?) pelo paladar. O gosto é
azedo. Não tenho dúvidas. Agora, antes de o limão ser levado à boca, o que há
nele? Não sei. Gostaria de encontrar uma palavra para definir esta coisa.
Limitaram-se a definir a coisa pelos sentidos. As palavras são pobres. Não
penetram nas coisas. Talvez se virasse o termo “azedume” de cabeça para baixo,
achasse o que há no limão.
Encubro o rosto com a mão esquerda, abaixando o
rosto. Ainda não me recuperei. Os meus pensamentos roçagam na consciência. As
palavras giram em redor de mim.
Olho furtivamente o local em que me encontro. A
garota continua a fixar-me. Está a ponto de chegar perto de mim e dizer tudo o
que está sentindo por mim. Não ousa dar o passo decisivo. Está com medo. O que
os meus olhos causam... O que causo às pessoas...
Será que esses indivíduos não se sentem aborrecidos
com a falta de uma roupa limpa, de um banho? Na fisionomia, um lodo. O verde
musguento entre pela boca, pelos olhos, pelas narinas, pelos ouvidos, pelos
poros, remexendo tudo o que há dentro. Fico num estado deplorável: a
consciência quer sair. Luta por ficar no devido lugar. O corpo estremece. Um
calafrio na espinha. O sexo frio incomoda a cueca, a calça.
O teto está bastante sujo. A tinta está por de
baixo da espessa e densa sujeira. Está pintado de sujeira. Nas paredes, há
propagandas de cigarros, algumas rasgadas, outras sujas; de pilhas, de aparelho
barbeador, tabuletas de preços de bebidas e salgados, sucos e sanduíches. Entre
uma propaganda e outra, o sujo da parede. Tirando todas, a parede fica
completamente desequilibrada de sujo e limpeza. As mesas são de madeira, tendo
por cima um forro escuro, com um cinzeiro, vidro de pimenta, catchup,
paliteiro, encostados na parede ou no canto. É um botequim bastante pequeno, de
uma densidade e tensão incomensuráveis. O teto parece querer descer sobre a
cabeça. Há cheiro de todas as qualidades de comida, de bebida, de cigarros. Um
sujeito até transparente de tanta magreza, fisionomia opalescente, olhos
cinza-escuro no fundo das órbitas, lê uma revistinha em quadrinhos. Larga-a
somente quando o trabalho cega. Todo o tempo fica sentado.
Tomo um gole de campari.
Ai... Ai.. Sinto uma dor incrível
Não estou conseguindo concentrar-me. Devo parar. Há
algo a roçagar minha consciência.
A angústia... Nada a pode solucionar. Nada existe
capaz de aniquilá-la. Antes de nascer, estava no infinito. Era nada. Vindo ao
mundo, deparo-me com toda sorte de arbitrariedade, gratuidade. Sou um absurdo.
Quero o meu espaço para realizar a experiência do vazio, realizada no infinito,
enquanto era o vazio. Desejo realizar este vazio no mundo. Toda a sorte de
impecilhos, de limites. Luto, contudo. Nada pode barrar a minha luta. Acredito
que não é a mesma experiência, mas pode ser semelhante. A angústia cerca-me de
todos os lados. Desejo de superação de minha condição. Vou-me superando aos
poucos. A angústia não termina. Cansei de ouvir que a fé em Deus salva a
angústia. Como? Não há possibilidade. A fé, kierkegaard mesmo explica, é um
passo no escuro. A angústia continua. A existência é angústia. Nada no mundo
pode aniquilá-la. Não acredito em Deus, com efeito. De que iria adiantar? De
Nada. Devo assumir a minha angústia. Torná-la mais fácil para mim. Não tê-la,
impossível. Seria aniquilar a própria existência. Agarro-me ao meu pensamento
sobre o vazio. Ajuda-me. Mesmo sabendo que tudo não passa de uma fuga, sigo com
meus pensamentos. Ninguém pode proibir-me de meus pensamentos. Se me realizo ou
não no vazio, o problema é unicamente meu.
Há algo a roçagar a minha consciência. Trata-se do
caso do Fred. Enquanto me dirigia para cá, pensei imensas vezes nele, mas
procurava afastar a idéia. Que diabos quero explicar a mim? Que inferno
pretendo elucidar? Que demônio intento conscientizar-me?
Fecho o livro. Olho ao redor. A Biblioteca está
lotada.
Enquanto eu existir, a angústia será uma constante.
Nada pode ajudar-me.
Fui o responsável pela morte da esperança. Matei-a
com os meus pensamentos. Aniquilo e destruo tudo que se apresenta aos meus olhos.
Quero ir ao profundo, ao núcleo principal. Vou sempre ao núcleo principal. Não
me interessam as superfícies. Vou ao profundo à busca de algo possa aniquilar a
minha angústia. Nada encontro. Tudo é simplesmente um mito. Nada.
Manoel Ferreira Neto.
(29 de agosto de 2016)
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