**FORMOSURA CRISTALINA DO SENTIR** - Manoel Ferreira


Ao nascer da madrugada frágil, passadas as primeiras vagas ainda invisíveis, ainda ensombrecidas e descontentes, é um novo ser o que fende a água da noite, tão longe de suportar, tão perto de aprazerar. As lembranças dessas alegrias não são uma saudade triste, tampouco são nostalgias felizes e prazerosas. Tantos anos após, ainda persistem em algum recanto de meu coração, quiçá também nalgum recôndito sítio da inconsciência e do espírito, de onde os próprios deuses enviam-me a sabedoria e o destino de pedra, saga de cinzas, sina de revezes à antemão do renascer, o mesmo céu continuará derramando sobre mim sua carga de suspiros e estrelas. Porque aqui estão as terras da inocência, os sítios da pureza.
O espírito se une aos apóstolos adormecidos e os aprova, os crepúsculos dão-me a impressão de serem os últimos, agonias solenes anunciadas ao pôr-do-sol através de uma derradeira luz que escurece todos os matizes.
Saio em passos largos. Largura efêmera.
Caminho em direção ao ponto de ônibus. Não estou só cansado. Ressacado de sono. Dormi às cinco da manhã. São sete e dois quartos. Numa ressaca de sono, os olhos não só ardem, fora das órbitas. Na boca, gosto desenxabido. A saliva é água dentro de um vidro, contendo flores. O corpo não dói. Repuxa-se. O desenxabido da saliva é a água, após as flores terem sido jogadas fora. Os sentimentos, entre o sono e a vigília de um indivíduo que não consegue deixar de pensar. Numa ressaca de sono, pensa-se pela saliva, pelos olhos que ardem. O estômago, o opaco, o vazio abismado – como se tem costume de dizer, no momento da fome? ‘Meu estômago está lá nas costas”. Estou lá nas costas.
Fome ininteligível. Capaz de comer três ovos quentes, quatro pães com manteiga na chapa, duas vitaminas em copo grande, dois salgados, de preferência enroladinho de salsicha. Em menos de hora e meia, sou ainda capaz de comer três esfihas, dois copos grandes de vitamina, dois pães na chapa, uma tapioca deliciosa com requeijão e queijo. Nada há que consiga satisfazer o meu estômago. Na hora do almoço, posso tranqüilo comer uma feijoada bem substanciosa ou um quibão com requeijão.
Flor de ruínas... A casa, pouco recuada, de frente para a rua. A pintura azul está queimada de sol, e a parede, em conseqüência da chuva e do sol, bem estragada. Há lugares escavoucados. Entre a grade e casa, jardim, grama. Quase todas as espécies de rosas estão ali plantadas.
A suntuosidade do esplêndido ápice do prazer a manifestar os espectros eternos e perenes da ternura, tornando o viver um simples ato de credulidade. A formosura cristalina do sentir a presença do clímax imortal a revelar as suas plenas imagens de júbilo, os seus dons de perseverança. A pomposidade efêmera do gozo de sensações da contingência a derramar os risos solenes da esperança, os escárnios polidos da espera, a ironia nobre da intuição. Nobre desejo de sentir as profundezas do coração, em seu segundo mais sublime, ascendendo ao mais longínquo cume da paz o sentimento nítido do alvorecer para o viver. O homem re-cria para dar sentido ao seu instante-já, enquanto Deus cria para se orgulhar de quem re-cria para intuir a Verdade da Vida.
Digna vontade essa de lançar-me nítido e consciente ao fundo de prazeres reais. A fugacidade do olhar inscrita nas atitudes sérias e sinceras faz-me recrudescer o sonho de futuro. Sinto permanecer num sítio de mim e, através de sua percepção e veracidade, envio à superfície as sensações buriladas e polidas.
O instante apresenta-me a impertinência para a longevidade nesta vida. Ouço a nitidez de sons quase que ininteligíveis ao ouvido e sinto emanações exóticas de um paladar subliminar. As ondas vivas de sentimentos sutis vêm tocar as docas de caros pensamentos de ternura e generosidade. O silêncio inaudível do sibilo na caminhada do vento rumo ao precipício do infinito traz-me esta sutil alegria no olhar. Vou deambular fácil e espontâneo nos recônditos sítios do sensível, sentindo as nuanças nítidas do clímax.
A emoção é o cristal onde se espelha toda a beleza, todo o esplendor, maravilha e inutilidade do mundo. As flores de seu carinho são aparições fugidias. De sorte que a consciência delas serem apenas aparições fugidias. As palavras sinceras e verdadeiras, humanas e profundas são as flores de amor profundo, sujeito à ardente inspiração de um peito mais aconchegante. No vazio do silêncio, destaca-se o respirar cadenciado de um velho.
A carne do mundo abre uma fissura, um corte de gordura, sebo, de gelatina e manteiga, o sangue jorra quente e espumoso. Redescubro a luz dourada que brilha e reluz suave, meiga, serena sobre os altares do nada no fundo da penumbra. Re-acho o brilho cinzento que reluz e brilha dócil, incandescente no mistério do cenário do cheiro frio de lama, quente da poeira e do vazio que reina e impera sob as arcadas sombrias do mundo, visto através da retina dos olhos. A eternidade invadida por uma tenra e pueril melodia do silêncio, da in-existência completa e absoluta do som.
O desejo leva-me longe demais, muito além, para o alto por entre riso; eu, então, voo estremecendo como uma flecha através dos arrebatamentos ébrios e sedentos de sol: voo para futuros remotos que nenhum sonho presenciou, para meios-dias mais quentes dos que jamais pode imaginar a fantasia, a ilusão, a quimera – para além onde os deuses se envergonham de qualquer traje – a fim de falar em parábolas, elipses, anacolutos, hipérbatos, hipérboles, balbuciar e coxear como os poetas
Amo este eloqüente silêncio que soa para mim como uma doce ópera, melodia cantando a grandeza e o poder de um coração que espera ajuda só da Senhora ou de Deus, mas creio que vá dizer a mim que não a coloque antes de Deus, que diga mesmo: “Espero ajuda só de Deus e da Senhora”. Desculpe-me a sinceridade, mas prefiro mesmo pedir à Senhora em primeira instância, esperando que transmita a Deus o meu pedido. Será mais fácil para Ele ouvir-me, será mais fácil para Ele realizar o de que tanto necessito. Não é assim que as crianças fazem? Pedem à mãe para pedir ao pai?
Impetuosa paixão pelo sentimento de viver os resultados contingentes do prazer vem surgindo saltitante pelos interstícios de olhar, buscando as sensações alegres do peito.
Ah, angústias, tristezas, solidão e desprezo desterrando as derradeiras quimeras, ilusões, idílios, lançando-lhes aos antes de quaisquer inspirações e intuições do perpétuo, do nada nas fronteiras de nulidades obtusas do uni-verso, da náusea nas bordas do deserto perspectivado de luzes do ponto longínquo, à distância, vislumbrado na superfície, ao longo dela, do mar processando pequenas ondas, metáforas do sublime, símbolos da pureza, signos da simplicidade, que deslizarão ao longo da praia de arreias ardentes, gaivotas ciscando o alimento ad-vindo de alhures. Meiguices oceânicas do sem-limite, o mundo não encontra obstáculos para perpetuar as contingências.
Mente vazia de pensamentos, idéias. Alma silenciosa de sorrelfas. A vida, nada. A ec-sistência, pura nonada. O ser, verbo de passamentos do subjuntivo ao gerúndio infinitivo de particípios. O não-ser, radical temático do sujeito à mercê de predicativar o eidos da prosa sob o proscênio de luzes pequenas e breves, lumiando o picadeiro onde o silêncio e a solidão, vazio e nada re-representam o "pane circenses" dos solipsismos da imortalidade.
Eis que nada sou, no verbo de ser do nada, reergo os desejos.
Comportamentos. Gestos. Atitudes. Ações. Constituem angústia por estarem sendo gratuitos, indecentes, imorais. Só a mudança deles não irá proporcionar a harmonia de que tanto necessito. Algo superficial. Harmonia, a união das manifestações sensíveis e emocionais com os desejos de construção. O mergulho deverá ser feito no emocional. Nele, é que toda a problemática está. Encontrar-me em quem sou. Não tombarei em colapso senão quando me fuja a consciência. Somente a morte fará surgir a água esmorecida e depenada. Tornar-me digno de estar existindo. Existir com dignidade. Antes, necessito de Ter fé. Não acredito que em mim existe outro Romualdo, de ser possível o encontro de valores.
As flores, as lágrimas (quando contidas), as partidas e as lutas são para amanhã. No âmago do dia, quando o ceu abre suas fontes de luz no espaço imenso e sonoro, todos os promontórios da costa se assemelham a uma frota que parte.
Extasiado em alguma abstração fascinante, de que não tenho consciência. Erro pelas ruas e pela cidade em redor, fixando tudo e, contudo, sem nada ver. Falo raras vezes, quase não tenho relações com os habitantes da terra; nem sou pessoa para meditar; consumo-me numa orgulhosa tensão de hostilidade, como o polo negativo.






Manoel Ferreira Neto.
(Rio de Janeiro, 28 de agosto de 2016)


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