**INOCÊNCIA DO BELO A OLHOS NUS** - Manoel Ferreira
O céu, de um azul profundo, está manchado aqui e
ali por nuvens de um escuro acinzentado que penetra muito mais ao olhar e ao
íntimo que o azul fundamental de um cobalto intenso; e por outras nuvens, ainda
que menores, de um azul mais claro como a brancura de fraldinhas de criança, a
brancura azulada das vias lácteas. No fundo azul cintilam estrelas claras,
esverdeadas, amarelas, brancas, rosas guarnecidas de ouro e de riso, de
diamantes e pedras preciosas ou talvez mais como as nossas pedras preciosas, opalas,
esmeraldas, safiras.
As imagens sucedem-se a um ritmo extraordinário,
fantástico, similares a um verso ou a um poema - refiro-me a poema, não a
escroque de palavras como a modernidade tem produzido -, a distribuição de sons
de modo que estes se repitam a intervalos regulares, ou a espaços sensíveis
quanto à duração e à acentuação, rigor voluntário no sentido de ir unindo-as,
sem deixar perder uma característica muito singular, a sua singeleza na sedução
e na conquista, a simplicidade de formas não destoa de harmonias discretas e
requintadas, a ingenuidade da beleza imprime nelas o esplendor do estilo, a
inocência do belo a olhos nus realça o resplendor dos desejos e dos sonhos.
O que mais assusta nisto de contemplar todas as
situações e circunstâncias da vida, recriá-las, tornando-as atitude e
generosidade, amor e compaixão, é que tudo se cala diante das revelações, reduz
a imensa massa de silêncio, que ouço sem cessar; contudo, dizer somente de
"doces" e "chocolates" não fazem o estilo de alguém que busca
e trabalha sua realidade no sentido de atingir a Vida, e não somente o sentido
dela. Quem disse que a modernidade quer atingir a Vida? Nem o sentido ela
deseja. Se houvesse o tão esplendoroso e digníssimo senso, muitos largariam a
pena - nem sabem o que é uma palavra -, iriam capinar terrenos baldios,
A pura hipocrisia é uma boneca que se afaga todos
os dias, sim, e ninguém pode negar esta sua dimensão, pois que assim perde a
poesia de seguir uma alameda tranqüilo e sereno com suas atitudes, com seus pensamentos,
idéias, com desejos e sonhos de poder compreender os enigmas abençoados,
ajudando a compreender o sentido de todas as coisas, pois que assim deixa
suspenso as milhares de vozes que lhe anunciam o que descobriu e, no entanto,
sabe que ainda não mergulhou fundo nas alegrias e felicidades do mundo.
Ruminando ouro e riso, construo com as mãos, são
elas o objeto do intelecto, a vida que desejo viver. Dir-se-ia que agora há em
tudo ouro velho, bronze, cobre, e isto com o azul acinzentado, excessivamente
harmonioso, com tons de reflexos.
Respiro ar puro a plenos pulmões e sinto-me feliz.
Aqui vivo livre, não sou oprimido pelo desinteresse e preguiça e espero seja o
meu último porto. Com efeito, o que corre são a preguiça e o desinteresse de as
pessoas serem sinceras, autênticas, tem-se a impressão de que se está na
arquibancada de um circo de quinta categoria; ao terminar o espetáculo,
rumina-se ouro e riso. É a vida que escrevo de memória na própria imagem que
delineio e burilo.
De que adiantam então as palavras, os sentidos, os
significados? De nada adiantam. Com certeza. Servem para brincar - bem, para
mim é para brincar, passar o tempo até daqui a pouco, quando já imaginar que
não sobrou mais nada a registrar, quando houver adquirido a sabedoria de que as
últimas possibilidades são do tempo e da eternidade.
Sinto-me sorrir com os cantos da boca. A alma olha
as coisas de esguelha.
A única coisa que o relógio simboliza ou significa,
enchendo, com sua presença, as horas, é a curiosa e insípida sensação de encher
o dia e a noite com a presença das horas. Todo o alpendre estala de uma
presença intensa, alguém mais ali, flagrante sinto-o, não vejo ninguém. Uma
vaga passa, invisível e grande, ao balancear dos meus olhos pelo horizonte,
sinto-me bem, experimento uma canção que me aparece nos ouvidos. De qualquer
modo que sinta o inverno - agradável, porque é frio; esplendoroso, por ser
sereno e suave, não havendo letras que não desejem ser expressas com alegria e
júbilo - assim, porque assim o sinto, é que é meu dever senti-lo. Coloque estes
momentos nas mãos dos que se dizem poetas, sentem-se orgulhosos e lisonjeados,
faltando a melancia no pescoço para aparecerem ainda melhor, para ver que
"xangana" eles escrevem. Claro. As palavras se escondem no mais fundo
do abismo para não serem objetos de galhofas de leitores.
Espírito de sacrifício? Abnegação levada ao
extremo. Ou ingenuidade incurável daquele cuja escolha se fixa nas atitudes que
julga as mais simples e verdadeiras. Inteligível e conveniente não é ruminar
ouro e riso, mas o ruminante sejam o desejo e a vontade do ouro e do riso. Esta
simplicidade apareça aos olhos de todos como o intrépido, como o paradoxo, de
uma posição e decisão na vida.
É preciso desejar ser autêntico numa luta e que a
maioria demonstra uma indiferença total; quando nos atrevemos a isso, é preciso
sentir a força de sermos alguma coisa em nosso tempo, é preciso ser ativo, para
ousarmos dizer se não agüentarmos; vou para onde outros foram, os que ousaram.
Não se fala senão nas horas em que não se quer
perceber a presença dos homens e quando se se sente uma enorme distância da
realidade. E ao imediato que se emite as palavras qualquer coisa adverte de que
as janelas divinas se abrem algures, as portas infernais estão sempre fechadas.
Os homens são absurdamente avaros do silêncio, por
isto de inconseqüência sem limite; entre eles não se calam diante do
desconhecido. O instinto das verdades sobre-humanas previne de que é
comprometedor calar-se diante de alguém a quem não se intenciona conhecer ou de
quem não se gosta; as palavras passam entre os homens, mas o silêncio, se teve
a oportunidade de se tornar dinâmico, não há como negar sua dimensão
inconsciente, não se esvai, esvaece-se nunca, e a Verdade-vida, a única que
inscreve seus passos e traços, é feita de silêncio.
Só mesmo homens que não desenvolveram a perspicácia
de ler as palavras com cuidado, sem preconceitos e discriminações, não podem
ver que a intenção é de mostrar que posso trabalhar uma frase em muitos textos,
e em cada um deles ela terá um outro sentido e significado. Há que estas
palavras, chamadas de Vida, nascem num instante inusitado, não se percebe a sua
proximidade, e há-de ser bem atento para registrá-las como surgem.
Manoel Ferreira Neto
(19 de agosto de 2016)
Comentários
Postar um comentário