**RÉSTIA DE LUZ** - Manoel Ferreira
EPÍGRAFE:
"...somos chamados ao ser pleno, e não ao pedaço do ser."
Ao meu netinho JOAQUIM com muito amor e carinho.
A água é o grande poder da subtração. Por onde passa, limpa. Imaginei,
então, ritual para a celebração, não da duvidosa passagem de ano, mas para o
alegre acriançamento do corpo: o mergulho nas águas. As águas têm o poder de
subtrair do corpo e da alma as coisas pesadas a passagem do tempo foi neles
sedimentando. As águas nos reconduzem ao esquecimento. Lavam o corpo
envelhecido e ele volta a ser criança.
Torno-me linguagem aberta em que se me pode ler o interior. O mais
recôndito enche-se, enfim, de paz, que a solidão exaspera, o tempo afadiga, o
silêncio sublima. Sou palavras nítidas e nulas que se re-velam e escondem,
vontades e desejos elencam sonhos. Sinto isso absurdamente. É desejar ser
autêntico, atingir nível de originalidade e singularidade. Sirvo-me da espera
do belo futuro, e o caminho que a este conduz jamais se me afigura
interminável, e por ele me desloco a passos largos. Aproveito-me do campo que
se me coloca à vista, imaginando o verde da grama, branco dos lírios, vinho das
rosas.
Criança é mistério humano vestido de ternura. É o grandioso escondido no
pequeno. O consistente abrigado na fragilidade. O longo amanhã encolhido no
hoje. O original ainda não visto, dito, encontrado, re-presentado. O humano com
mais interrogações do que respostas. O núcleo de vida que vale mais do que todo
o universo físico.
A criança condensa a essencialidade humana. Não é apenas promessa de
homem. O que lhe falta é desenvolver-se, amadurecer. Toda a densidade do homem
está pulsando na criança. E, ontologicamente, ser pessoa. Não bastam visão
psicológica e percepção moral para compreender a criança. É precisa vê-la como
"clareira do ser". Há que reconhecê-la como pólo do mundo, centro da
história. Não pode ser reduzida a elemento cósmico, a filamento social, a
objeto lúdico. É "Parousia" antropológica. É a manifestação do ser
que está chegando, no ser que já chegou.
Se soubesse o significado e sentido do amor!... Se soubesse o signo,
metáfora, símbolo do ser que está chegando no ser que já chegou!... Nem seriam
somente lembranças e recordações, horas felizes e alegres, fontes de água
límpida, momentos de inteira realização. Seria a luz que brilha, trazendo na
retina o horizonte de além, na íris a metáfora da fonte originária.
O orvalho cai sobre a erva no momento de maior silêncio da noite,
ouve-se-lhe, o silêncio, ouve-se-lhe a noite! Numa re-presentação para melhor
esclarecer: é quando o ser e o ser do escritor são a solidão na sua
originalidade. Momento esplendoroso. A inspiração, quase que delirante de
prazer e volúpias, desliza leve e fácil, leve pluma. Tudo é silencioso. Até
onde se elevam os meus píncaros?! Há volúpia no deserto. Afigura-se-me haver
gosto suave no calar-me. Encho a boca de gosto de mel, de deliciosa amargura. A
solidão, nesta colina do paraíso, é bálsamo para o coração fremente, que
transborda ao frio exuberante do inverno.
A não ser que retorne para amar o amor que ficou... Esta imensa
extensão, este infinito, onde não há lugar para ninguém, bastam para me
estrangular a sede. Amar é desejar. O que sinto e digo de ser desejado não é o
ser, mas o ser bom. A mão para rebuçar nos bolsos o jogo de sonhos que sentimos
com o timbre inequívoco.
Ombros frágeis são os meus para adormecer no tempo a graça da Criação de
Deus. A réstia de luz que perpassa o tempo, espaço, envolve mistério de doação
escondido na Beleza, desejo do Sublime, busca do Sagrado, volúpia, quebra da
solidão, a-núncio da esperança, afastamento do medo, presença e re-velação do
silêncio.
Um mergulho nas águas: água do mar, chuva, cachoeira, rio, lagoa,
piscina, banheira, esguicho, qualquer água - ou, se por qualquer razão esses
mergulhos não forem possíveis, o mergulho na água da imaginação, nas lâminas de
água da inspiração.
É mergulhar no ser, captar a nossa sintonia com a totalidade, é sentir
que somos chamados ao ser pleno, e não ao pedaço do ser. Sentir que todas as
vivências, as contingências mais contundentes e pujantes, não são apenas
aprendizagem da vida, do ser da vida, mas a consciência do estar-sendo no
mundo, sempre aberto para a Vida.
Manoel Ferreira Neto.
(09 de junho de 2016)
Comentários
Postar um comentário