#RADÍCULAS IMPERTINENTES DO NADA# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA ***
Se algum
homem que tem problema sério de bílis, e isto haja, sem dúvida, exercido
acentuada influência nalgum distúrbio do caráter e da personalidade, o que é
rotineiro, comuníssimo, desejar dizer o que quer que seja, esteja imbuído com
todas as suas justificativas, explicações, argumentos e oratórias, de toda a
sua verborréia de convencimentos e persuasões, esteja desde este momento livre
para todas as considerações e comentários. A carta é branca, podendo deitar e
rolar à vontade. Pensando este homem que apenas dizer suas contradições não irá
de modo algum deixar as palavras conhecidas e reconhecidas, pode tomar de sua
pena escrevendo o que pensa e sente, fundamentando suas idéias e pensamentos,
lendo; boa leitura com todos os estilos de entonações, ênfases é demais, os
prazeres que lega são inestimáveis – assim, tudo está registrado e ficará por
todo o sempre. Memória e testemunho.
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Há quem
finque os pés no chão, dizendo que os problemas de fígado causam sérios
distúrbios psíquicos e emocionais no homem. Em verdade, digo deste modo, usando
o que ouço e algumas vezes li, mas não me preocupo com a veracidade da
informação, aliás, tudo isto é algo que semelha uma pequena raiz, ademais o que
isto me afetaria para entrar nos méritos da questão? A impertinência destas
radículas funda-se no desejo e vontade sentidos de encontrar uma idéia, um
pensamento sublime, destinado a aliviar as crises melancólicas, nostálgicas,
náuseas existenciais de nossa humanidade. Há quem afirme que o amor da glória
temporal é a perdição das almas. Outros ainda afirmam que o amor da glória é a
coisa mais verdadeiramente humana que há no homem. Assim com todas as coisas:
uns dizem algo, outros o desdizem, jamais se tem idéia do que elas sejam. Não o
sei responder com categoria e empáfia. Não me preocupo. Se me preocupasse, com
certeza, perderia a idéia original que é esta.
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Nem por
isto, por não haver preocupação com a veracidade da informação, quem quer que
seja terá o direito e o dever de contradizer as palavras que agora pronuncio
com todas as pompas e empáfias; não há o que não concordar, duvidar, terá num
estilo simples e comedido que assumir a doçura que é a existência, existir é
algo sobremodo doce, doce seco de laranja da terra não o é tanto, fazendo-me
até sentir o paladar de uma cocada baiana, destas que são compradas em latas
nas mercearias, acompanhada de um bom queijo mineiro – assim, não há paladar
que seja mais agradável. Viver é algo muito doce.
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Assim
registrando, no início dizendo da bílis e logo de imediato sobre a doçura que é
viver, é que estabeleço idéias contrárias: a bílis é amarga e a vida é doce.
Não sei onde li, título e nome do autor, que um estilo que visa sobremodo a
beleza é tecido através de idéias contrárias, o nada deles é o objetivo
primordial da obra, o paradoxo, a estética vista à luz do paradoxo. Sem esta
idéia, ser-me-ia de todo impossível qualquer criação, não apenas esta mas
qualquer outra. É que deste momento em diante quero viver serenamente,
metodicamente, ouvindo os soluços dos jograis nos salões de dança, os suspiros
das damas nos chás vespertinos, algazarra dos jovens no barzinho, acompanhados
dos amigos e namoradas, as conversas sussurradas dos doutos e celebridades, a
euforia e a diplomacia, no jogo de consinto ou censuro as premissas e conclusões,
no churrasco de domingo, após, uma partida séria e inteligente de pôquer,
tomando vinho francês, chuva que tamborila nas folhas da samambaia à soleira da
porta, e o som estrídulo de uma faca que o açougueiro está afiando ao lado de
minha residência, com quem de quando em vez brinco: "Quando sua faca
cortar de ambos os lados, quando só possui uma lâmina, aí acredito que seja
açougueiro."
***
A vida
rejubila-se-me no peito, com uns ímpetos de ventania no topo da serra,
esvanece-se-me a consciência, desço à imobilidade física e moral, e o corpo
faz-se-me planta, e terra, e pedra, e coisa nenhuma.
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È o que
penso comigo algum tempo antes de estar numa reunião de atores que vão encenar
uma peça de teatro, intitulada “Milagre em Pitibiriba”, para que fui convidado
a representar um Advogado de Defesa. Penso assim, imaginando um público que
assiste à peça no palco, e os atores que representam para uma platéia,
mostrando a triste condição de homens que estão diante de uma guerra, guerra
esta que faz lembrar uma fala de Cassandra na peça de Eurípedes, As Troianas,
“Todo homem sensato deve evitar a guerra”. É isso precisamente o que a peça
demonstra: os Gregos destruíram Tróia, mas não tiraram nenhum proveito da sua
vitória porque a vingança dos deuses provocou a sua perda total. A minha
participação é defender os gregos, a intenção da defesa é persuadir os deuses a
não destruírem a Grécia. Um país de cultura milenar, cultura que até os dias
hodiernos traz as suas reflexões e meditações, um bálsamo para as dores da alma
e do espírito, moléstias do psíquico e doenças dos instintos.
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Porque,
enfim, não levo em mira nenhuma recompensa ou virtude em pronunciar com todas
as letras prenhes de intenções e desejos mais ingênuos, isto de a existência
ser algo doce, viver é de uma doçura sem limites, existir é algo sobremodo
açucarado. Cedo-me a um impulso natural, ao temperamento, aos hábitos do ofício
de procurar despertar num simples mortal, se o conseguir com a metade dele, por
mais impossível que seja a idéia da metade de um homem, estarei a sentir-me
mais realizado do que se pudesse abarcar os sentidos completos da idéia e do
pensamento.
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Acresce
que a circunstância de estar, não aquém nem além, não do lado de cá dos
confins, à margem das cafuas, mas justamente no ponto de sentir o prazer de
estar comendo um doce de leite com fatias de queijo, até babando de tanta
alegria e contentamento. O mérito de estar degustando este alimento é
positivamente nenhum. Simples isto de um doce de leite com fatias de queijo ou
de queijão, valendo ressaltar que existe o requeijão e o queijão, este para o
meu finíssimo paladar é mais gostoso.
***
Fico
sobremodo desconsolado com isto, pois por momentos tive a sensação de que
poderia ir mais profundo na condição humana, dizendo desta doçura que é o
existir, haver um mergulho na busca de compreensão e entendimento disto que é
estar desfrutando alguns segredos e enigmas das criações que, desde o início da
manhã desta semana, estive pensando em abordar e procurar assim dar um outro sentido
às criações.
***
Chamo-me
pródigo por estar pensando em trabalhar com o gosto das letras que pronuncio
com empáfia e prepotência, lanço um cinismo diferente dos que até o momento
estava acostumado, precisando de haver uma mudança mais sutil, inclusive o
amadurecer e o crescer da idéia e das atitudes do mundo. E, enquanto isto, o
homem que tem sério problema de bílis amargura-se por não poder comer as
palavras; até que pode, mas comê-las com os olhos.
#RIO DE
JANEIRO(RJ), 31 DE MAIO DE 2020, 00:36 a.m.#
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