#INDULGÊNCIA CANHESTRA# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA ***
Epígrafe:
A
preguiça é a mestra legítima das atitudes e ações ociosas"(Manoel Ferreira
Neto)
***
Afianço -
se se quiser posso inclusive personalizar, colocando apenas o hífen e o
pronome, dizendo “afianço-vos”, mas neste momento não estou com desejos de isto
personalizar, colocando o pronome “vos”, dirigir-me a todos os homens, à
humanidade inteira, confessando-me, revelando-me - que por instante, mesmo que
efêmero, dá-me a vontade de ser poucochinho canhestro, fazer tudo às avessas,
sem estar o mínimo interesse de entendimento do que enfim esteja eu a dizer
presente, a confessar, a revelar. Pode ser que isto me agradasse vez por todas,
reiniciar outros caminhos, inspirado em ser canhestro com as atitudes, ações,
comportamentos, mas, no leito de morte, desculpem-me se começo de refletir
muito a este respeito, embora o que sinta não é medo de morrer, o que iria temer
após à morte.
***
Recordar-me-ia
de cada minuto em que agi em estilo canhestro, sabendo-o canhestro, onde
estaria a minha verdade, a minha alma, em nada, respondendo-o eu, e de repente
a culpa insofismável de em algum dia já perdido na memória, agora somente uma
imaginação, uma imagem que a posso criar de acordo com o sabor e gosto que
preferir eu, sem mais um segundo para poder vislumbrar a verdade, estarei morto
com a vida canhestra que poderia haver sido acanhada, desajeitada,
desengonçada, mas escolhi o caminho que não era o meu, as coisas feitas às
avessas.
***
É
justamente esta mistura abominável, entre o sim e o não, exigindo muita
destreza para descobrir o que é realmente sim, pois que nele pode estar um não
como uma sua dimensão, e tudo começa a girar outra vez; esta mistura intragável
e fria, quem sabe até saudosista, não o sendo, mas algo como uma falta que se
sente desde sempre, mas se é possível vislumbrá-la, e tudo na vida são buscas
desta falta, desta ausência; esta mistura de medo e de fé, de covardia e de
amor: é exatamente este sepultamento involuntário, ensaiado até como se deve
ler com a intuição, e esta existência de construída grade, um rostinho lindo e
chorando entre os seus ferros, este vazio e esta ausência, esta dor e este martírio,
nítidos e limpidamente contemplados, mas sempre misteriosos e enigmáticos,
duvidosos, de toda resolução e solução, é essa síntese de desejos
insatisfeitos, vontades encafurnadas, de decisões compulsivas e irresponsáveis,
tomadas para a imortalidade, para a eternidade, de imediato seguidos de culpas
e remorsos, não do que fiz e do que deixei de fazer, mas do que não tive
coragem de assumir; é isto precisamente o que segrega esta volúpia estranha de
que o título e função cabíveis e justos serão o de chamar-me “Preguiçoso”. A
preguiça é a mestra legítima das atitudes e ações ociosas.
***
Por
momentos, enquanto criava e elaborava o parágrafo de cima, pensei comigo que
esta escritura estaria sendo criada como uma imagem de meu epitáfio inscrito na
lápide de minha sepultura. Se investigasse mais profundamente, estaria pensando
comigo próprio que confessava as atitudes, e as mesmas de não, de modo que
recebesse a minha indulgência não por haver escrito as mazelas e achaques, não
por as ter confessado, mas simplesmente porque não estava tratando de uma
confissão, e sim uma investigação sobremodo profunda acerca da vida canhestra,
uma contemplação maior que rima os apelos de sussurros, murmúrios, oscilando
entre a natureza e o espírito, em tardes serenas de janeiro, os silêncios e
mudez de pensamentos ao longo de invernos.
***
Através
da vida canhestra posso eu modificar os sonhos que não passam de ilusões
[antes, e de maneira mais pura do que o poderia eu fazer, delineio esboços, o
sentido e a imagem de um olhar], entregar-me de corpo e alma aos desejos
iluminados em seus valores eternos como imagem e como visão fugaz da própria
divindade.
***
Quem sou,
que me esqueceu o amor que anda por um campo que desconheço, por uma grama
verde, mas desconheço se as folhas estão verdes, estão secas, como estão elas,
enfim?! Quem sou, que me esquece a alegria que anda silenciosa, caminhos em
passos lentos na areia fria, de por baixo dos pés, numa praia qualquer, aliás
não posso imaginar como seja, sei apenas ser areia, vislumbro o mar, perdido,
distante? Quem sou, que me lembra de enfiar as mãos em bolsos de calças,
buscando o conforto e o aconchego de uma intimidade, não por estarem vazios,
mas, às avessas, por estarem cheios de algo para doar, encontro neles o nada
que me espreita canhestramente.
***
Quem
estivesse lendo, ou mesmo ouvindo, se houvesse quem ouvisse, não estaria sendo
escrito, diria com toda a convicção de sua alma e espírito que sei com
engenhosidade e arte, isto para não dizer com genialidade, pois que seria muita
pretensão minha pensar que sou gênio, que sei trabalhar com as palavras, com os
seus sentidos, intenções, desejos, e nada está sendo em verdade escrito com
espírito de um indivíduo canhestro. Com esta observação tão percuciente, diria
então que não é mesmo a intenção de escrever algo que exploda a bomba do tempo,
aeiou, aeiou, feto, féretro, preciso afeto, desejo sim revelar algo que me
perpassa o espírito e que muitas vezes não consigo contemplar e vislumbrar,
algo efêmero, passageiro, tive tempo apenas de olhar de soslaio, pois que não
se apresentou diretamente.
***
Minha
alma, sem dúvida, continua a viver, porém inconsciente. Nada mais sinto. Sei
que um cacto no deserto é uma verdade natural, sem discussão. E que o meu
trabalho de colocar as palavras nos seus devidos lugares, a montanha e as
águas, saindo das entranhas, perpassando as reentrâncias do coração, é uma
verdade como a primeira, sem discussão. Do alto de minha lucidez, estou só.
***
Pergunto-me,
às vezes, o porquê de não emborcar a taça, bebendo a vinho desde o seu fim para
o início, desde o fundo da garrafa para o gargalo, a ponto de mostrar como
seria ela forçada a voltar-se para o espírito. Difícil o gole que passe
despercebido ao paladar, mesmo que não tenha gosto, o prazer renasce na idéia
de um sonho a realizar, de um desejo a ampliar o universo.
#RIO DE
JANEIRO(RJ), 28 DE MAIO DE 2020, 00:49 a.m.#
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