JANEIRO DE IN-VERSOS E QUIMERAS DO RIO SUBLIME# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
Será morrer retornar à vida
De antes da vida?
Será viver regressar à morte
Aquém da morte,
Da consciência de sua realidade,
O real de si?
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Não vos estou a implorar que me respondais, isto me
faria a felicidade, prazer. Rogo-vos um único instante, e vida plena, em que
vida e morte, tempo e eternidade, ajustem-se, sin-cronizem-se, sin-tonizem-se,
harmonizem-se. Rogo-vos amor, que, sendo desejo, é fome de comunhão.
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Enquanto a harmoniosa lira, a lira sagrada faz
ressoar as sacras melodias que vão unir-se aos meus solenes arrebatamentos,
compraz-me rejeitar as leis humanas que, in-versos e esperanças, sejam a alma
delirante e o espírito insensato.
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Feliz o homem que procura longe dos homens as
delícias da solidão e o verde das árvores que ornamentam algumas ruas e praças
da cidade. Chamo feliz ao homem cuja vida é afagada, dia após dia, na sabedoria
e inteligência.
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A linguagem altiva não convém aos débeis. Evito a
prolixidade: não há quem a suporte mais, até parece que impinjo todos a ouvi-la
até não mais poderem. A minha voz deve afetar a ousadia e o desplante deve
ler-se no meu rosto: a fronte modesta, os olhos tranqüilos.
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Prefiro, para me salvar, de uma reflexão profunda e
de um olhar penetrante que nenhuma embriaguez possa turvar e mergulhe nos
abismos, até negligenciando as súplicas de janeiro, estas que logo se esvaecem
na poeira nítida e nula dos dias, estas que ditam a minha felicidade, a vida
nova que se anuncia transparente aos olhos sensíveis de outras paisagens e
cenários. Não me parece que bem necessito de uma idéia que me salve, que me
eleve além desta atmosfera que se me revela a todo tempo, quer na alcova, quer
nas tabernas sombrias de alguns becos.
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Ergo os olhos solícitos às estrelas que velam, lá
em cima, e que protege os infelizes mortais que, dirigindo-se aos seus
semelhantes, deles não obtêm a mínima graça que aos olhos sensíveis desperta os
corações.
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O Criador concedeu a todas as criaturas o sonho
natural de Ser, o desejo de ouvir-se Ser, na mais sublime harmonia de Ser que
existe em sin-tonia com a natureza particular de cada uma.
Há apenas uma imagem sem jaça refletida no espelho,
a verdade é a melhor medida de todas as faces. É seguir novos caminhos, jeito
novo de caminhar, encontrando novas linguagens; à semelhança de todos os
criadores, enfastiei-me das línguas antigas, das línguas românticas que olvidam
a con-tingência
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Em direção ao infinito, águas re-colhem de vida o
húmus de recordações simples que preencheram os vazios esplendorosos do olhar
ensimesmado e triste por cima dos acontecimentos inenarráveis, indescritíveis,
ineludíveis. Rumo ao eterno, águas acolhem dos prazeres a alegria de instantes,
a paz de entregas e mortes, desejando a felicidade que afago no íntimo.
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Resta-me erguer uma taça ao som de silêncios e
vozes que percorrem o espírito, desejando o paladar da alegria. Música do fim,
a alegria sutil desde o fundo do dia, o abismo do século, desde o silêncio do
nascimento, um silêncio longo, feito de chuva de perto e ao longe, da cidade
esquecida em solidões, do cerco à volta do espaço para além.
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De onde me é tão familiar converter imagens em
verdades originais das coisas, com a cristalina eternidade a envolver-me, e com
a fria alegria, eterno riso divino, sentir ao redor rumor de vozes e risos, de
compassos de dança, de resplendor de todos os olhos acesos. A verdade singela,
pura, inocente, no entanto, tem sempre a aparência ambígua – um assobio, um
murmúrio de águas vivas, ruído de fonte ou de cascata.
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A vida toda está aqui, na linha inexistente da
separação que une, da união que se projeta. Um projeto de visa isola-se-me
nítido na memória, por isso desencadeio o combate, sereno e destemido, á dureza
solar da verdade nítida. Recupero a felicidade simples, fria de estar, alegria
intensa e nula.
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Daí, no deserto inóspito de mim ter eu a glória de
perder-me em pensamentos felizes por as imagens haverem criado raízes.
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Quero viver, não sei viver, por isso, anônimo e
encantado, escrevo para me pertencer, o que soube o perdi, o que senti já o
foi.
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O coração de um homem digno, de conduta ilibada, é
uma tumba feliz onde cumpre a caminhada, onde vou desenvolvendo os passos em
direção ao longínquo sem-tempo, onde cumpre o destino com êxtase e euforia.
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Se de onde sinto os in-versos e esperanças de
janeiro, desato a observar todas as coisas que me rodeiam, todas as nuanças e
veredas, que, felizmente, me pude furtar à coragem e esperança, de novo a
vibração guarda um sabor úmido a carne que não esquece, a humanidade que não
finda, a compaixão que não se esvaece.
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Há um silêncio profundo. Calmo... tudo calmo...
silêncio fundo como um abismo. É noite, não custou muito a chegar como é da
natureza das tardes de janeiro. Do lado de lá da janela, nem mesmo os pequenos
vaga-lumes enfeitam estas noites. Nada de brilho. As forças da natureza: o vento
parece não mais existir. Nem chove. Poderia ouvir a chuva caindo no telhado.
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O que fazer? Esta é a pergunta de meu coração.
Corrói-me a fome por dentro – quer a todo custo sair para fora, habitar o
mundo, onde se anunciou ainda pequena, crescendo ao passar dos segundos e
minutos, não lhe parece nada agradável continuar. Às vezes, tenho de segurar o
ímpeto de não pensar na emoção e na expectativa quando deixar os dias passarem
solenemente.
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O silêncio sucumbe à resistência heróica dos
murmúrios, lamentos. Quem dera pudesse ora responder a alguns questionamentos
que foram sendo elaborados no espírito, questionamentos percucientes! Quem dera
pudesse responder a algum discernimento entre o que antes estivera com tanto
êxtase desejando expressar, a felicidade que me habitava, e o que ora estou com
tanta decepção dizendo, os murmúrios, lamentos que me perpassam desde que não
mais pude reter nas mãos feita concha a volúpia da felicidade, enovelaram-se em
inversos e esperanças.
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Nalgum janeiro outro, já distante desta realidade,
livre, possa responder a todos os questionamentos, sentir presente o que hoje é
apenas quimera, fantasia.
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Ser o não-ser que sou, se for o caso, a angústia
diante do absurdo. À medida que esta se dissipa também o malefício desvela o
segredo de uma fascinação diante do sentido; fascinação relativa ao fato de uma
natureza ser dada aparentemente, isto é, ser um modelo de inteligibilidade,
sabedoria, contra o qual virão bater e dissolver-se todas as representações
humanas de intenção e de finalidade.
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Efetivamente, se é mentira ou verdade que a
filosofia, literatura, tradição o cânone sejam inicialmente medicina, meio
dentre outros de se curar a angústia, também é verdade que a catarse possa ser
concebida conforme duas grandes desordens de interpretações ou intenções:
acalmar devolvendo o sentido, ou acalmar retirando-o completamente.
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Viver só, como se pudesse viver não o vivido, mas o
não vivido, o não escrito. Viver só, lembrando-me de que ainda não é hora de
in-versos e esperanças, porque se os registro para não serem lidos, sem me
arriscar à morte derradeira, para fazer-me na impossibilidade, uma vez que tudo
é impossível, a começar da vida.
#riodejaneiro, 29 de janeiro de 2020#
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