**DOSTOIÉVSKI E A SÁTIRA DA VAIDADE** - Manoel Ferreira Neto: ESPÍRITO DO SUBTERRÂNEO, TESE EM DOSTOIÉVSKI
O capítulo II da segunda parte de Memórias do
subterrâneo coloca em relevo, finalmente o verdadeiro alvo da sátira de
Dostoievski. Afinal descobrimos – é claro que na forma de uma caricatura
cuidadosamente distorcida – o que o homem do subterrâneo esteve lendo nos
livros que julga tão importantes. Aqui ele assume os traços do “sonhador”
romântico que Dostoievski retratara em suas primeiras obras e cujas fantasias
literárias haviam sido comparadas com as exigências morais e sociais da “vida
real” da qual tentara refugiar-se.
Observamos o que acontece, quando, esgotado pelos
vaivéns da dialética da vaidade, o homem do subterrâneo recorre “a um meio de
fugir que conciliou tudo”, ou seja, quando descobre “um refúgio ´no sublime e
no belo´, em devaneios.
A dialética da vaidade se compara à dialética do
determinismo na primeira parte e tem o mesmo efeito de emparedar o ego num
mundo alienado de todo contato humano. Assim como o determinsimo dissolve a
possibilidade de reação humana na primeira parte, do mesmo modo, na segunda, a
vida bloqueia toda fraternidade social.
Vez por outra, Dostoievski enfatiza as conexões
entre a dialética da vaidade na qual o homem do subterrâneo está preso e sua
cultura intelectual.
Um homem culto e decente não pode ser vaidoso sem
estabelecer um padrão excessivamente alto para si mesmo e se se desprezar, em
determinados instantes, a ponto de odiar-se .
Impregnado como estava da cultura européia popular
na Rússia nos anos 1840, fica claro que o homem do subterrâneo perdeu qualquer
capacidade de mostrar um sentimento humano simples e direto para com os outros.
Ao invés disso, sua vaidade e senso de importância ficaram inchados a tal ponto
que perderam a proporção com sua verdadeira situação social; e “os conflitos
gerados por essa discrepância fornecem um equivalente cômico da guerra
fratricida de todos contra todos’ (aspas nossas”), que, na sociedade da Europa
ocidental, tem origem na predominância do princípio do individualismo egoísta.
O “Homem do Subsolo” não só absorve todos os
possíveis traços estáveis da sua imagem, tornando-os objeto de reflexão (a
interveniência reflexiva tem também o sentido de sustentar a arquitetônica da
narração, mantendo a unidade da diversidade e indicando que a significação de
cada parte e de cada evento depende da totalidade descrita de forma temporal);
nele esses traços desaparecem, não há definições sólidas, dele nada se tem a
dizer, ele não figura como homem inserido na vida, mas como sujeito da
consciência e do sonho.
Para o próprio autor, ele não é agente de
qualidades e propriedades que podem ser neutras em relação à autoconsciência e
coroá-la; a visão do autor está voltada precisamente para a autoconsciência e
para a irremediável inconclusibilidade, a precária infinitude dessa
autoconsciência. Por isto, a definição caracterológica-vital do “homem do
subsolo” e o dominante artístico do seu modelo fundem-se num todo único.
(**RIO DE JANEIRO**, 11 DE ABRIL DE 2017)
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