**BAKHTIN: CONVERGÊNCIA DE MÚLTIPLOS DISCURSOS DIACRONICAMENTE REFERENCIADOS** - Manoel Ferreira Neto: ESPIRITO DO SUBTERRÂNEO, TESE EM DOSTOIÉVSKI
Um estudo mais criterioso da obra de Bakhtin, agora
sem a interferência da abordagem estruturalista, coloca em destaque não apenas
um glossário de operadores tópicos de leitura, mas uma concepção metodológica,
invisível até então aos olhos ainda viciados em uma abordagem imanentista.
Quando, em Problemas da poética de Dostoïévski (1981), Bakhtin estabelece um
recorte cronológico tão ampliado, que faz o longo percurso entre a sátira
Menipéia e o romance burguês, passando pela Idade Média e o Renascimento,
certamente deveria ter provocado estranheza em seus leitores ocidentais.
Uma leitura contemporânea e mais atenta coloca a nu
esse recurso de invisibilidade utilizado pelo estruturalismo, ainda cioso de
manter o estatuto da crítica literária enquanto área independente do
conhecimento. Os preceitos metodológicos de Bakhtin estão em “Os Estudos
Literários Hoje”, de 1971. Nele, ganha destaque o conceito de “grande
temporalidade”, que nos obriga a reler e reinterpretar as obras anteriores.
Para Bakhtin, o texto apresenta-se como uma convergência de múltiplos discursos
diacronicamente referenciados, e, portanto, deve ser estudado a parte de um
recorte temporal mais amplo. A este recorte denomina grande temporalidade. Como
superfície onde se atualizam e se organizam elementos de uma tradição
lingüística e literária, a obra só pode ser compreendida ao ser libertada de sua
contemporaneidade.
Diz-nos Gerard Genette, referindo-se à função
literária:
A esta história das divisões interiores (grifo do
autor), cujo programa já é muito rico (pense-se simplesmente no que seria uma
história universal da oposição entre prosa e poesia: oposição fundamental,
elementar, constante, imutável na sua função, incessantemente renovada nos seus
meios), seria necessário acrescentar a da divisão muito vasta, entre a
literatura e tudo o que ela não é; isto seria então, não já a história literária,
mas a história das relações entre a literatura e o conjunto da vida social: a
história da função literária .
Em Dostoïévski quase não há discurso sem uma tensa
mirada para o discurso do outro. Ao mesmo tempo, nele quase não se verificam
palavras objetificadas, pois os discursos das personagens são revestidos de uma
forma tal que os priva de qualquer objetificação. Impressiona, ainda, a
alternância constante e acentuada dos mais diversos tipos de discurso.
Em sua primeira obra, Dostoïévski elabora um estilo
de discurso sumamente característico de toda a sua criação e determinado pela
intensa antecipação do discurso do outro. A importância desse estilo em sua
obra posterior é imensa: as auto-enunciações confessionais mais importantes dos
heróis estão dominadas pela mais tensa atitude face à palavra antecipável do
outro sobre esses heróis, à reação do outro diante do discurso confessional
destes.
Não só o tom e estilo, mas também a estrutura
semântica interna dessas enunciações são determinados pela antecipação da
palavra do outro, que atinge das ressalvas e evasivas melindrosas de Goliádkin
às evasivas éticas e metafísicas de Ivan Karamazov.
Em Pobre gente começa a elaborar-se uma variedade
“rebaixada” desse estilo, representada pelo discurso torcido como uma mirada
tímida e acanhada e com uma provocação abafada.
Essa mirada se manifesta acima de tudo na inibição
do discurso, característica desse estilo, e em sua interrupção com evasivas.
Eu vivo na cozinha, ou, para melhor dizer... já
deve calcular: contíguo à cozinha há um quarto (a cozinha é muito limpa, muito
clara e ajeitadinha) – um quartinho muito pequeno, um cantinho muito
discreto... ou, para melhor dizer, deve sê-lo; a cozinha é grande e tem três
janelas. Paralelamente ao tabique colocaram-me um biombo, de maneira que assim
se faz um quartinho, um número supranumerário, como costuma dizer-se. Tudo
muito espaçoso e cômodo, até tenho uma janela, e o mais importante é que, como
lhe digo, está tudo muito bem e muito confortável. Esse é o meu cantinho. Mas
não vá imaginar, minha filha, que lhe digo isto com segunda intenção, porque ao
fim e ao cabo, isso não passa de uma cozinha! Quero dizer, para falar com
precisão: eu vivo na própria cozinha, mas separado por um biombo, o que não
quer dizer nada. Acho-me aqui muito satisfeito e a meu gosto, muito modesta e
calmamente!
Coloquei neste cantinho a minha cama, uma mesa, uma
cômoda, duas cadeiras, nada menos que um par de cadeiras! E até pendurei na
parede uma imagem piedosa! Certamente que há casas melhores e até muito
melhores, porém o mais importante neste mundo é a comodidade; é somente por
isto que eu vivo aqui, porque me encontro a viver mais à vontade. Não, não vá
pensar que o faço por outra razão... .
Dostoïévski partiu da palavra refrativa, da forma
epistolar. Por razões de Pobre gente, escreve a Mikhail:
Eles (o público e a crítica – M. B.) estão
habituados a ver em tudo a cara do autor; a minha eu não mostrei. Nem conseguem
atinar que quem está falando é Diévuchkin e não eu, e que Diévuchkin não pode
falar de outra maneira. Acham o romance prolixo, mas nele não há palavra
supérflua .
(**RIO DE JANEIRO**, 11 DE ABRIL DE 2017)
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