Maria Isabel Cunha ESCRITORA E POETISA COMENTA O CONTO /**A SINCRONIZAÇÃO AMBÍGUA PALAVRA/VIDA NO SOCIOCULTURAL CARACTERIZA SER/CONHECIMENTO**/
O gatinho à espera de comida simboliza o ser pensante à espera da
palavra, da atenção de alguém para o que pretende transmitir, para a sua
necessidade de diálogo, conforto que espera do outro. Deseja ser compreendido,
respeitado e espera por alguém com quem se sincronize e lhe " dê de
comer" alguns restos, mas será este gesto que o irá confortar, animar em
seguir em frente, adiante. Precisa da palavra, alimento de vida que o exortará
a prosseguir. É a palavra o alimento que anima o Homem na sua caminhada. Parabéns,
escritor amigo, Manoel Ferreira Neto. Um abraço.
Maria Isabel Cunha
A SINCRONIZAÇÃO AMBÍGUA PALAVRA/VIDA NO SOCIOCULTURAL CARACTERIZA
SER/CONHECIMENTO**
TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis
CONTO: Manoel Ferreira Neto
Luzes... Vida... Sin-estesias...
Palavras... Verbos... Semânticas...
O gatinho esperava-me à soleira da porta, pedaço de carne, resto de
comida do almoço, bolachinha, quando abrisse a porta. "Nadinha para você
agora, gatinho. Quem sabe, amanhã?!" A palavra "amanhã" ressoou
no ouvido em consonância com "Desde quando gato tem noção de dimensões do
tempo, ontem, hoje, amanhã?!" Tranquei a porta a cadeado. Desci a rampa
pensando nisto. Segui o itinerário rumo ao Restaurante do Robson - fica sempre
aberto até as quatro e meia da manhã -, tomaria uma cerveja, ficaria ouvindo
músicas.
Pela manhã, depois do almoço, espera-me sentadinho à soleira da porta,
dou-lhe resto de comida, alimenta-se, vai embora, só no outro dia. Não retorna
à noite. Dá pena ver um animal com fome.
A palavra... Porque emiti o termo "amanhã", dirigindo-me ao
Quinzinho - nome que dei a este gatinho de rua - surpreendi-me por nada ele
saber do tempo, não sabe da vida, está no mundo, frequenta a terra, tão pouco
que vai morrer, por velhice, maldade humana, por alguma doença, outro gato não
estará ao seu lado assistindo ao seu des-enlace.
Mas a fome humana não é apenas de alimentos, garantir-lhe a saúde, a
sobrevivência. Há a fome de conhecimento, garantir os horizontes da vida,
orientar os caminhos para a realização dos sonhos, harmonia, sin-cronia e
sin-tonia entre o vivido e o sentido. O que alimenta esta fome é a palavra,
come-se palavras nos livros, na digestão outras dimensões da vida se revelam, e
elas abrem as memórias, afloram o que há de mais inconsciente, tornam-se verbos,
tornam-se luzes, espiritualizam, evangelizam, levam à sabedoria. Palavras matam
a fome de conhecimento, mas não esclarecem mistérios, enigmas. No interdito
delas, estão latentes, só in-vestigar-lhes com percuciência, comer-lhes com os
olhos. Não se lhes solucionam, mas se lhes tornam manifestas, conscientes.
Irrita-me quando presencio pais chamando a atenção de filhos por comerem
lendo: "Hora de comer é hora de comer. Hora de ler é hora de ler. Comida é
sagrada". E a palavra não é sagrada? Não o fosse, não existiria a Bíblia.
São pais sem quaisquer sensos das coisas. Ademais, comer e ler, alimenta-se o
corpo, alimenta-se a alma em uníssono.
Felizmente, não vivi esta situação na vida, minha mãe não falou no meu
ouvido por comer e ler. Se não lesse na hora da comida: "Cadê o livro, meu
filho?" Isto desde a infância, fazia as tarefas de casa comendo. Hoje, se
não leio e como, escrevo e como, vice-versa, não me sinto.
Palavras... Verbo... Vida...
Vida sem palavras, trevas, sombras, brumas, puro e perfeito abismo.
Palavras sem vida, ausência completa de conhecimento do ser, da ec-sistência do
trans-cendente.
Agregados à família, cunhados, a grande maioria sem quaisquer
esclarecimentos de alguns valores, em relação à cultura sem quaisquer, o
importante é o material, já tiveram a pachorra de perguntar o para quê tantos
livros, não os levarei para a sepultura, vendesse-os para um "sebo de
livros", receberia uma quantia razoável. Respondi: "E por que não
vende seu guarda-roupa para um "brechó"?" Está entupigaitado de
roupas. Pura aparência social!". Pleno silêncio à mesa de almoço.
O interessante é que nesta noite, após o almoço, ficara a indagar,
questionar o que esta família significa para mim, se tem alguma importância.
Chegara à conclusão de que nada é. E, quando dormi, sonhei que estava indo em
direção ao subterrâneo, estive afastado, olhando, e desapareceram. Acordei
sentindo-me feliz, felicidade sem precedentes. Veio-me à mente frase sui
generis que ex-mulher dissera: "Quando você se separar da família, ser-lhe
indiferente, não sabendo se realmente existe, será muito feliz." Para tudo
na vida, há o tempo devido.
(**RIO DE JANEIRO**, 18 DE JANEIRO DE 2017)
Comentários
Postar um comentário