**REFUTAM-SE SAUDAÇÕES HIPOTETICAMENTE CÍNICAS E HIPÓCRITAS** - TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis/CRÔNICA: Manoel Ferreira Neto
Epígrafe:
“Viver intensamente só se consegue
À custa do eu”
Hermann hesse
A finesse, aqui neste buraco de mundo, onde para sempre choverá a
cântaros, ou na cidade do México, é a chefe espiritual que governa os homens,
sejam eles analfas de pai e betos, sejam gênios consagrados no mundo inteiro,
tão espiritual quanto o jubileu.
Não entendo como vós, quando nos encontramos pelas ruas e avenidas do
centro e periferia da cidade, vendo que trago um violão dependurado no pescoço,
pergunta-me, alegre, satisfeito, sorriso de orelha a orelha, olhos faiscantes
de prazer: “como vai você? Boa sorte”, quando, em verdade, você nem sente as
palavras que a língua está emitindo, não sabe o que elas dizem, pouco lhe
interessa se estou bem, se estou naquela situação e circunstância em que alguém
me diz que estou muito bem, respondendo-lhe que assim diz porque não está
andando no meu sapato, a minha vida pouco lhe interessa. Também não entendo
como você ainda insiste com esta pergunta, mudando a tonalidade dela e a
musicalidade das palavras, ora terno, meigo, sincero, carinhoso, ora
circunspecto e casmurro, ora numa atitude de quem está refletindo sobre o nada
que habita as coisas obtusas, a obtusidade que habita o nada, e sempre faço um
movimento de cabeça, o mesmo, como quem cumprimenta com respeito e diplomacia?
Quem sabe se não espera de mim a emissão, pronúncia de palavras, fantasiar na
cachola que sou homem palrador, falo mais que pobre na chuva, completamente
pelado? Vai fazer a mesma pergunta e obterá o mesmo cumprimento, esta é a sina
de nossos encontros?
Sua finesse é, sem sombra de qualquer dúvida e desconfiança,
perdoando-me o nonsense de minha linguagem, está acima dos juízos humanos, está
acima de todos os valores e virtudes idôneos, está acima de qualquer apreciação
racional e sensível; quero dizer que sua finesse é divina – não sei como não
interrompi a minha caminhada, perguntando-lhe em que escola estudou, quem foram
seus professores, que princípios éticos e morais professavam os seus
funcionários, corpo docente e dicente, quem são os entes queridos social e
religiosamente, só porque desejo que os meus filhos saibam com conhecimento de
causa que todas as coisas deste mundo se anunciam negativamente, tudo se
fundamenta na metafísica do não. Para ser feliz, é preciso que antes tenha sido
infeliz ou desgraçado. Para se real-izar, mister é que antes tenha conhecido os
fracassos que habitam a alma e o espírito, para rir, necessário foi chorar
lágrimas doídas no passado. Para que o bem seja, o mal se apresentou antes.
Haveria quem pudesse dizer o contrário? Para existir o contrário, foi preciso
que um gênio tenha sentido o contrário do contrário, o in-verso do inverso. Até
para dormir depois de questionamentos profundos como este, tivemos que estar
acordados para a mente funcionar com primor e engenhosidade.
Deixemos o nonsense de lado, e vamos con-versar de modo sincero e sério.
Não entendo mesmo porque me cumprimenta, por que me dirige palavras, se a minha
pessoa não lhe diz qualquer respeito. Seria para eu perceber, inteligente que
sou, a hipocrisia reinante nos nossos dias, a falsidade e farsa, estupidez e
despautério que rolam em todos os encontros entre os homens? Por que haveria de
perceber? Para destilar os ácidos críticos, descascar os pepinos, criticar? Se
eu abrir a boca neste sentido, não haverá quem não vá desejar passar a noite pensando
e re-fletindo sobre a vida e suas circunstâncias, situações, levantar-se outro
homem, por inteiro modificado e transformado? Se eu disser única palavra será
motivo e razão para pensar? Para que eu veja a estirpe, laia, o grau específico
de sua farsa, aparência? Alguém que diz exatamente o que não sente ou pensa, e
jamais o fará? Ou é para ouvir de mim uma resposta neste mesmo nível, dando-lhe
margem para dizer que ninguém tem coragem de dar dez passos no meu sapato, e eu
dizendo que atravesso a cidade de lado a outro com a minha bota de caipira? Não
tenho qualquer palavra, meu amigo, para lhe dizer. Vai sempre perguntar: “Como
vai? Boa sorte?”, e eu fazendo o movimento de cabeça como quem ouviu e
considerou somente as palavras, a profundidade delas, e a farsa de sua pessoa.
Se eu disser que está tudo azul, que está tudo beleza, magiclick, para
elevar o nível de minhas elucubrações, o que isto vai lhe parecer? Que, ao
contrário, as coisas estão bem pretas, faltam-me o feijão e o arroz na mesa,
estou comendo fubá com água, que a minha mulher é adúltera, sem qualquer
finesse, neurótica, tem colesterol altíssimo. e não entendo como fui casar-me
com ela, é frígida, não me ama, que não tenho um tostão furado no bolso, que as
pessoas estão virando a cara para mim assim que me encontram, e eu dizendo que
tudo está azul como as nuvens do céu, estou tão bem que se melhorar vai é
desgraçar tudo vez por todas, e qualquer esforço será em vão. Nada disso lhe
interessa. Nem irá dizer a alguém haver-me encontrado na rua. Assim que eu
acabar de passar, após o seu cumprimento, será como se nada houvesse
acontecido.
Tem algum sentido responder-lhe ao cumprimento? Creio que haverá, não um
sentido, resposta adequada. Se eu lhe disser que a sua interpretação de minha
resposta deve ser fundamentada num princípio que me habita desde toda a
eternidade, considerar que para mim tudo começa no in-verso para atingir o
verdadeiro verso, ou seja, minhas palavras serão ao in-verso, dizendo que estou
bem, há-de se entender que estou muito mal, isto porque não admito as coisas
que me estão acontecendo, vivo no mundo de minhas fantasias e quimeras; dizendo
que estou mal, há-de se entender que estou mui bién, feliz, contente,
satisfeito, realizado, dinheiro no bolso, um casamento que nem Deus sabia que
seria tão feliz, ele que colocou a minha esposa no mundo para vivermos felizes
e saltitantes por toda a nossa vida, até que a morte nos una espiritualmente,
isentos desse corpo, dessa matéria, livre de carne e ossos, que esperava que
mudássemos os caminhos conjugais do mundo, com o nosso exemplo de fidelidade e
lealdade.
Ah, sim, com estas palavras que lhe estou dirigindo nesta missiva, você
está perguntando que parte do Apocalipse eu li para lhe responder desse modo,
com tanta nitidez e transparência, como se estivesse predizendo os caminhos da
humanidade, as veredas que os homens irão trilhar depois desta nossa egrégia
modernidade, estivesse lendo o futuro de nosso mundo e vida, dando o meu
cachaprão absoluto, nada haverá que questione e negue o que estou dizendo, será
a verdade plena e sublime. Os homens que se segurem bem firmes: os tempos
vindouros serão de fato terríveis, horríveis. Não sei de onde foi tirar este
pensamento de que li o Apocalipse antes de escrever-lhe esta missiva. Ainda não
atinei com a profundidade de sua análise ou interpretação. Só se me disser com
propriedade quais são os fundamentos para isto afirmar com tanta firmeza e
prepotência, aí sim quem sabe particularmente o procure para trocarmos alguns
longos dedos de prosa a respeito da teologia do cumprimento no Apocalipse.
Aliás, vou até pedir-lhe que me ensine os seus métodos de mergulhar assim nas
entrelinhas e além-linhas de minhas palavras, quero aprender com dignidade e
senso de conhecimento as suas lições de crítico; irá isto ajudar-me muitíssimo
para entender a finesse de seu cumprimento, de seu riso de orelha a orelha, de
seu olhar brilhante e faiscante, todas as vezes que nos encontramos nalgum
lugar da cidade, sempre no centro, pois que a periferia da cidade é muito
distante e qualquer caminhada além de dez minutos deixa-me colocando o coração
pela boca.
Não, meu amigo... Não li a Bíblia, não li o Apocalipse. Respondo-lhe,
deixando a pena deslizar na folha de papel livremente, seguida de meu espírito
galhofeiro e cínico, aproveitando a minha habilidade de brincar com as
palavras, jogar com os seus sentidos inúmeros que suscitam depois de lidas
pelos homens análises as mais di-versas e “di-[versi]-ficadas”, e todas as
risadas podem ser ouvidas nos quatro cantos do mundo, se as perspectivas e
ângulos foram voltados exclusivamente para o in-verso das coisas...
Ah, você não está entendendo bulhufas de minhas intenções e objetivos,
de minhas idéias e conceitos, pensamentos e “acha-ques”, simplesmente uma
miscelânea de palavras e sentidos, de nonsense e vazio, nada estou lhe dizendo,
não me interessa dizer-lhe coisa alguma, explicar-me vez por todas o porquê de
apenas fazer um movimento com a cabeça, abaixando-a e levantando-a, quando me
diz com as orelhas abanando, por causa do ventinho que o riso provoca. Estou
querendo mesmo é aparecer, dizer assim “vejam bem como sei brincar com as
palavras; vejam bem como sei jogar com os sentidos delas; vejam bem os meus
dons e talentos, e me res-pondam se há modo de negligenciar-lhes, podem não
lhes aceitar, admitir, mas negar o que me habita de divino e gracioso, isto
ninguém pode”.
Se nem eu estou entendendo esta barafunda em que me meti desde o
instante em que tomei da pena para lhe responder ao cumprimento: “Como vai? Boa
sorte?”, como pode você querer fazê-lo? Estou apenas curtindo o tempo de estar
lhe dirigindo as palavras, ouvindo um blues no último volume, sentado numa
poltrona, emborcado na mesa, escrevendo-lhe, e tudo o que desejo realizar é o
nonsense, mas um nonsense re-formador, já que dizem sou re-formista e
subversivo, o que concordo em certos níveis de análise e interpretação, isto é,
o que nas entrelinhas há de profundo, o que estou dizendo, enunciando e
anunciando a todos os ventos, até ad-vertindo para tomarem muito cuidado com os
gestos e atitudes em certas circunstâncias e situações do quotidiano, isto está
sendo escrito no livro fúnebre em que me baseio para botar o cachaprão de modo
e estilo meus, dizem que ele é lindo, ninguém será capaz de imitar a minha
caligrafia, só eu mesmo, o que agradeço sempre dizendo que é delicioso quando
se é o que se é, sem fingimento, falsidade, como soam as suas palavras todas as
vezes em que nos encontramos pelas ruas, e se alguém tivesse câmara filmadora
para nos filmar, e fosse feita uma grande produção, poderia ser intitulada: “O
mesmo nas respostas e perguntas”, ganharia o Oscar porque a mesmíssima coisa
pode ser vista a olhos nus por um varrido de pedra.
O que mais poderia dizer num instante e momento deste senão estas mesmas
palavras com todos os ornamentos e arrebiques da forma e do estilo nela, alguém
já dissera ser bastante barroca, mas com os toques bem sutis de impressionismo,
revelando o meu estado de alma e espírito todas as vezes que tomo da pena para
escrever qualquer coisa, simples bilhete para o leiteiro não deixar de trazer
leite diretamente da vaca, sem qualquer sombra de água límpida e cristalina. É
de rir? Pode rir à vontade, se quiser sentir mais prazer e rir mais, posso
fazer-lhe cócegas com destreza e perspicácia, tocando nos pontos sensíveis sem
pestanejar ou dizer “meu Deus, me ilumine”. È este o nível em que estou lhe
escrevendo, e que no futuro os especialistas, críticos, vão debruçar nele para
arrancar-lhe a mensagem de que os tempos vindouros serão cruéis, tempos jamais
havidos em toda a história da humanidade, desde tempos imemoriais, e somente
terão algumas idéias a respeito, mas a continuidade é o Ser, para sempre esta
missiva será in-vestigada pelos doutos e pelos analfas de mãe e betos.
Dizendo-lhe a verdade, já estou mais do que ciente de que isto é sim
profundo, profundíssimo, seria preciso que eu estudasse muito, que mergulhasse
nestas palavras com dignidade e percuciência, para poder emitir única palavra
sobre ele. Mas antes eu deveria dizer a todos não haver de minha parte qualquer
instante de reflexão em estando escrevendo, deixando a pena deslizar suave e
tranqüila na folha branca de papel, deixando nela os caracteres impressos.
Estou brincando com as palavras, jogando, tripudiando com o tempo, antes de
subir os degraus da escada e jantar. Não o fiz ainda porque estou muito
empolgado, feliz, louco por saber até onde sou capaz de ser profundo, que Deus
me advirta quando tudo começar a ser superficial, banal, ridículo, já nada mais
diz, já nada mais anuncia, algo assim insosso em todos os ângulos da percepção
humana. Deixo tudo e vou descansar, pois amanhã farei uma viagem e devo só
retornar em três ou quatro dias.
Mas antes de dar fim a isto, quero dizer-lhe, meu caríssimo amigo, que
entendo bem a sua mensagem com o seu cumprimento, espera que lhe diga: “Deixe
de ser hipócrita”. Isto é o que deseja ouvir com todas as letras. E, abaixando
e levantando a cabeça, digo-lhe simplesmente que se deixar de sê-lo, não irá
conseguir sobreviver ao vazio, ao nada que ad-virão, no livro fúnebre não
estará o meu cachaprão, mas o cachaprão de alguém que sabe e conhece que no
regaço do coração humano não deverá haver berço de flores viçosas e frescas, e
isto no Juízo Final será lido por São Pedro, e a pergunta será: “Você deixou de
ser hipócrita! Compreendo. Mas a hipocrisia é o único valor que o homem pode
alimentar na terra, o resto já era com todas as letras em riste e a pena
simplesmente inerte sobre a mesa."
No mais, desejo-lhe a hipocrisia nua e crua, é assim mesmo que iremos
encontrar o reino do nada, do vazio. Os tempos são outros, houve um que ela foi
extinta de fio a pavio, e todos viveram felizes e radiantes, esperançosos de
recomeçarem o entendimento humano, como dizia um grande filósofo, a quem estimo
muito, mas aqui não é lugar de ficar falando dessas coisas, carta é carta, e
tratado filosófico é tratado filosófico, ainda mais que você iria entender
justamente pelo in-verso, como é próprio da natureza e condição de alguém que
se contenta apenas com o gesto da cabeça. Bem, não seria ocasião supimpa para
refletir sobre a solidão em que tu e eu vivemos no mundo, o mesmo nos satisfaz
e realiza?
(**RIO DE JANEIRO**, 14 DE JANEIRO DE 2017)
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