D`UMA DUALIDADE DE LINGUAGEM INTENCIONAL À DELAÇÃO DAS VERDADES DÚBIAS DA REUNIÃO - TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
Com efeito - confesso não ser assim um estilo de início, pois que o
desejo é de convencer e persuadir, quando a intenção é apenas a de chamar a
atenção para a existência de uma dúvida, desconfiança, indefinição até, e não a
de fechar um conceito, uma definição -, posso dizer, a partir de uma
experiência pessoal e íntima, que a coisa mais certa e verídica deste mundo,
perdoe-me, senhores, se quero mostrar que ela é o afeto, somente o afeto torna
o homem necessário e insubstituível.
Convidado a professar as mesmas idéias ou visar um mesmo fim, nesta
reunião de indivíduos que em nada deixam a desejar, tudo é perfeitamente
sublime, divino, todos somos homens dignos de merecimentos, louvores, mas, em
verdade, sinto que todos ficariam tristes se me perdesse em considerações
acerca dos merecimentos e louvores, analisando, perscrutando a condição
existencial e íntima de cada um, incluindo-me sem nenhum pejo, sem nenhuma
vergonha. Em tomando em relação o afeto, não me cabe em hipótese alguma
analisar, considerar os pontos de vista, e sim demonstrar este afeto que torna
o homem necessário, o afeto que alimento e nutro por cada um de vocês. Riem
todos vocês, quando usando de uma linguagem ao mesmo tempo convencional,
tradicional, clássica, e, de imediato, parecendo até inerente á vontade,
deixo-me resvalar num cacófato, este de “por cada um de vocês”, a reunião,
então, é de porcos; onde se encontra o afeto, quando os chamo de porcos?
Desculpem-me, se introduzo esta demonstração de conhecimento das figuras
de linguagem, o cacófato é uma delas, apenas uma digressão no sentido de dar
continuidade às idéias e pensamentos que perpassam a alma e o espírito, mas é
verdade que não desejo afinar o cravo de quem quer que esteja aqui, não
pretendo retratar-me, demonstrando que não havia possibilidade de não deixar
surgir o cacófato, não os chamo de porcos, de porqueiras. Pedem-me que
considere a linguagem, que cuide para não deixar nela uma ambigüidade e
duplicidade de sentido e significado, enfim estou aqui para destilar os meus afetos
e considerações, centre-me neles, mostre o espírito elevado e sensível que sou,
a alma misericordiosa e solidária que revelo em cada gesto e atitude meus.
Pedem um conto de fadas, e, por fim, sou eu mesmo quem lhes roga e clama que
atendam ao pedido do conto de fadas, conte-me um para que me sinta de novo em
absoluto em harmonia e paz com todo o mundo, com a vida.
De algum modo, é como se eu me tornasse um Deus pela plenitude de
emoções que transbordam de mim, pela imensidão de sentimentos de agradecimento,
de louvor e glória das atitudes mais dignas e gloriosas que cada um de vocês
são capazes de sentir com o mais profundo do espírito e da alma. As magníficas
imagens do mundo infinito, da existência eterna, agitando-me na alma, enchem-me
de uma nova vida, de um ponto de vista outro que deixam os meus olhos castanhos
claros rasos dágua. Por muito pouco, não consigo dizer o que sinto sem haver
terminado a pronúncia da palavra, deixando-a pela metade, “met” e “ade”, a
sensibilidade mostra que são três letras miúdas em cada divisão, consigo
revelar o ápice de minha consideração e reconhecimento pela virtude e valor de
cada um de vocês.
Vejo-me cercado de montanhas gigantescas, aquela sensação e sentimento
reais de que me encontro de todo separado do mundo, o resto do mundo
encontra-se além das montanhas, de onde os meus olhos apenas contemplam e
sonham; diante de mim abrem-se abismos onde se precipitam as torrentes formadas
pelas chuvas das tempestades, pela garoa provocada pelo frio montanhoso.
Não sei se vocês podem e conseguem mergulhar nas minhas palavras,
percebendo e intuindo com facilidade e conhecimento o que venho desejando
expressar em todo este tempo, vinte minutos em que me encontro aqui à frente,
lendo o que escrevera antes, pois não conseguiria improvisar um discurso sem
nada haver escrito ou ao menos garatujado. Caso contrário, não podendo
mergulhar nelas, o estilo, às vezes, torna-se muito subjetivo e apaixonado,
prejudicando a análise e contemplação das realidades nele contidas, mas o desejo
é simplesmente o de fazer ver todas forças insondáveis que habitam nossas
almas, nossos espíritos; desejando, podemos com toda a certeza modificar toda a
paisagem e quadro de nossas vidas quotidianas. As forças agem sobre as outras,
e juntas se fecundam na profundeza da terra, do solo.
A vida serena e a sabedoria conservam-se ao abrigo dos desgastes e
garantem a sua duração. Por muito distante que os deuses celestes habitem no
éter, eles conhecem e vêem as obras e feitos dos mortais e simples mortais. A
vida passa breve, e disto sou quem não tem qualquer dúvida. Só não consigo
compreender o porquê o dia presente necessita ser vivido com grandes ambições e
voluptuosidades? São assim, no meu ponto de vista, e o ponto de vista é visto
apenas de um ponto, os insensatos e os homens de condutas duvidosas e
mesquinhas.
Os olhos enchem-se de lágrimas – perdoe-me, senhores, se sou um homem
sobremodo sentimental, apaixonado, subjetivo, ao mesmo tempo em que cínico,
irônico, debochado. Contudo, há-de se considerar que estar aqui, a convite dos
digníssimos cidadãos, para uma homenagem e consideração pelos grandes feitos,
os trabalhos mais sublimes e divinos, vindos das mãos vazias de vocês todos,
não me deixa à vontade, mantendo a tranqüilidade de espírito, a serenidade,
senão deixando as lágrimas correrem na face, símbolo eterno de uma revelação
profunda da alma. Pego um lenço de seda, cubro o rosto com ele e dentro em
pouco o tecido delicado fica todo úmido. Permaneço um longo tempo com a cabeça
jogada para frente, como se estivesse encarando a cada um, apertando os dentes
alvos o belo lábio inferior, como se houvesse sentido de repente a picada de
uma serpente venenosa, conservando sempre o lenço sobre os olhos para que não
veja a imensa dor. Guardo silêncio e permaneço imóvel, sempre com os olhos
ocultos pelo lenço.
Desde as montanhas inacessíveis, para além do deserto que nenhum pé
humano calcou, até a extremidade do oceano desconhecido, sopra o espírito
daquele que cria, incessantemente, e rejubila-se a cada porção de cinza
vivificada graças às palavras.
De que me serve poder dizer hoje, a todos vocês, com carinho e afeição,
reconhecimento e ternura, que poucas palavras bastam para revelar ao homem a
sua felicidade, contentamento, menor número ainda delas é preciso para que
todos se sintam merecedores de glórias e júbilos.
Esta homenagem a tão egrégios senhores não é destituída de sentimento
artístico, verdadeiro, mas esse sentimento seria ainda mais pronunciado se o
não entravasse o hábito detestável do pedido e do rogo de méritos consagrados.
(**RIO DE JANEIRO**, 14 DE JANEIRO DE 2017)
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