**ENGENHOSIDADE METAFÓRICA "OUVE-SE O GALO CANTAR/NÃO SE SABE ONDE" RETUMBA NO SILÊNCIO DA MADRUGADA** - TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis/ SÁTIRA: Manoel Ferreira
TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis
SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
Uma e meia da manhã. Pelo que me conste, observei algumas vezes, horário
de galo cantar é quatro e meia. Este imbecil me acorda cantando. Não se pode
dormir mais tranqüilo e sossegado, o galo não deixa. Nossa modernidade está
deixando todos os séculos passados com o queixo caído. Cachorro dorme em
silêncio, galo canta em horário incomum. Diabo!
Assim que acordei, murmurara: “Nossa! Dormi mesmo profundamente. Já são
quatro e meia, respondendo-me a mulher: “Meu amor, é uma e meia”. Disse um
pouco aturdido: “Mas por que este galo está cantando?”. Embora irritado, estava
com vontade de fazer xixi. Fui dormir às onze e meia da noite, fora um dia
cansativo, se se for pensar mesmo comi no desjejum “canela de cachorro”, o que
significa que andei pelas ruas da cidade o dia inteiro, resolvendo algumas
responsabilidades sérias, felizmente que tudo fora feito como manda o figurino.
Pensava dormir a noite inteira. Levantar-me dis-posto, sereno, sentir-me pronto
para os afazeres, um dia com efeito compensador. Não, o galo me vem cantar ao
pé do ouvido a uma hora da manhã. Só queria saber que dera na teia da vizinha
para comprar logo este galo. Não poderia ter sido outro?
Saí do banheiro, tomei um gole de café, sentado na poltrona da cozinha,
ainda um pouco grogue por haver sido acordado sem esperar. O que me faz dormir
sempre que acordo de madrugada é tomar leite, mas havia acabado.
Alguma coisa está acontecendo de muito séria neste galinheiro. Talvez a
galinha tenha ficado com o ovo atravessado, está sofrendo muito com esta
situação inusitada, também não consegue dormir – que galinha iria conseguir
dormir com o ovo atravessado? Creio que nenhuma. O galo está fazendo a sua
parte: canta para acordar alguém da casa e correr ao galinheiro para socorrer a
galinha. Aí, mais uma cantada. O que está de fato acontecendo? Isto não é
normal. Alguma outra franga está deprimida ou angustiada, ficou o dia inteiro
no puleiro, sorumbática, taciturna. De soslaio, o galo olhou, esperou que
descesse, começasse a ciscar. Não, permaneceu no puleiro. Talvez até mesmo as
outras galinhas, pintos, galos hajam percebido, mas não deram tanta confiança
assim, hoje é comum até os galiformes estarem tendo crises, pois que as pessoas
só comem ovos de granja; para que estão botando? Para nada. Os ovos estão
perdendo no ninho. Antigamente, pela manhãzinha, clima suave e sereno, alguém
corria ao galinheiro, apanhava os ovos que acabavam de ser botados, cozinhavam.
Ouvia-se dizer: “Que ovo gostoso” ou “Nossa!... Quê delícia de ovo!”. Não se
houve mais estas palavras, estas alegrias e felicidades; com o ovo de granja
impossível externar tanta satisfação, alegria.
O estado emocional dela a cada momento se agrava mais. Durante o dia
ainda dera umas cochiladas rápidas, tirara uma soneca não menos que rápida, mas
agora não consegue dormir, os olhos permanecem arregalados, as dores de não
mais estar servindo os seus donos pela manhã com seus ovos deliciosos. Melhor
morrer. Com efeito, não tem graça a vida de uma galinha, se os seus ovos não
servem para mais nada. Galinha inútil. Cachorro que não late é aceitável,
papagaio que não fala é inteligível. Mas galinha cujos ovos – será mesmo este o
pronome relativo para a situação? – não servem mais, não tem mais qualquer
sentido. Os galináceos têm apenas duas funções na vida: botar ovos ou ser
almoço no prato dominical, como se diz “no prato dos mineiros”. Nem isto mais.
Galinha caipira aumenta o colesterol que é uma beleza. Come-se apenas frango de
granja. Agora só a morte natural por doença ou velhice. Mas passar a vida inutilmente
ciscando, trepando no puleiro, correndo do galo, isso é deprimente.
E se esta galinha mesma terá vida longa, que tédio ficar no galinheiro
inutilmente ciscando? Com efeito, tem suas razões mais que plausíveis para
sentir-se deprimida, não é para menos. O que fazer? O galo não entende de
veterinária, não tem a mínima noção de que medicamento pode ajudá-la. Mas isso
nem é caso para um farmacêutico, é caso para um psiquiatra, psicólogo. Só eles
entendem dessas crises existenciais. Se pudesse dizer alguma coisa, mas não,
calada, sorumbática. Aliás, seria até uma contribuição à psiquiatria,
psicologia, uma galinha deprimida, iriam cair na gargalhada, no reino animal
também tudo se tornou possível em nossa modernidade. Terapia de galinha. Uma
coisa inusitada no menu da modernidade.
Tem mais é que cantar a uma hora da manhã, acordando a vizinhança toda,
e todos aturdidos, pensando até estão sonhando, um galo cantando
insistentemente a uma hora da manhã. Pensa que acordou, mas continua dormindo,
aliás sonhando com um galo frenético, desesperado, cantando neste horário.
Precisa pedir socorro. Alguém que atine com alguma coisa estar acontecendo
muito séria. Ninguém atina com isto, o galo vai continuar cantando até a aurora
deste novo dia. Aí a vizinha vai perceber alguma coisa de errada. Com efeito,
está doente, vai morrer logo, é uma galinha mais velha. Normal isto. Não
pensara nas dores contundentes que se lhe perpassa o corpo inteiro, as penas se
eriçam, calafrios ininteligíveis, devido ao fato de que os seus ovos não servem
para mais nada, não será comida dominical de mineiro.
Chamar um veterinário para uma galinha? De forma alguma. Servirá de
chacota do veterinário, os vizinhos irão comentar o resto do dia, no quintal só
há um galinheiro, não há cachorro, gato, papagaio, só galinhas, a presença de
um veterinário não teria outra razão. E se a vizinha descobre que não está
doente, mas deprimida, angustiada, entristecida, desesperada com a sua
situação, com a situação dos galináceos na modernidade, chamando um psiquiatra?
Aí não é sandice apenas superficial, mas loucura das bravas. Ir até a farmácia
veterinária para comprar calmantes para galinha em crise existencial, uma baita
depressão. Loucura. O que as pessoas não vão dizer? Não tem mesmo cabimento
isto.
Aí, o galo continua cantando. Diabo! Será que a vizinha tomou algum
comprimido para dormir, simplesmente apagou, nada se lhe pode interferir no
sono, nada se lhe acorda. Fosse assim apenas, mas o marido, algum dos dois
filhos. Não. Ninguém está ouvindo a cantação do galo. Não vou ao portão da
casa, tocando a campainha com insistência para dizer ao proprietário da casa ou
mesmo à vizinha, que alguma coisa de muito séria está acontecendo no
galinheiro, o galo começou a cantar a uma da manhã, porque me vão escorraçar,
sujeito mais inconseqüente, acordar todo mundo para dizer que alguma coisa
errada está havendo no galinheiro, o galo começou a cantar a uma e meia da
manhã. Quanto mais que a vizinha é muitíssimo fofoqueira, Deus me livre! Tudo é
motivo para fofocar. Dependendo do que for, vasculha a rua de cima abaixo para
dizer o que acontecera, o que sucedera. Antes de o dia clarear, estará
comentando, começando na padaria. De forma alguma.
O galo continuará cantando. Sinceramente, não fosse minha mulher também
se assustar com um galo cantando àquela hora, diria que, ou estou sonhando
comigo sentado na poltrona da cozinha, fumando, encafifado com um galo que
começa a cantar a uma e meia e continua cantando hora e meia depois, ou estou
ficando mesmo senil, e a a-nunciação da senilidade é um galo cantando num
horário indevido à espécie.
Talvez estivesse criando uma crônica, uma sátira à modernidade, e não
ficando senil, e a mais interessante seria a galinha estar deprimida no
puleiro, sofrendo dores ininteligíveis com a inutilidade da espécie, e um galo
pedindo socorro, e não propriamente ficando senil. Impossível ficar senil aos
sessenta e dois anos. Sinceramente, em todos esses anos de vida jamais pensei
que fosse possível um galo cantar desse jeito pela madrugada a fora. Talvez nem
seja isso, não seja que a galinha entrou em depressão, e sim que o galo
ensandecera, engoliu uma cigarra lírica. Aí também é ridículo: galinha engolir
cigarra lírica. E por que teria ensandecido? No seu ponto de vista, na sua
visão da vida galinácea, o que anda in-vertido, de ponta-cabeça no mundo, para
ficar louco? Alguma coisa. Terá sido que todas as galinhas chegaram à mesma
conclusão da inutilidade de suas vidas, os ovos já não serviam as mesas em
todos os horários do dia, galinha caipira, hoje os homens só comem ovos de
granja e comem também frangos de granja, isto re-sultando em abstinência
sexual, os galos já não têm quaisquer chances, e isto para a espécie não é nada
agradável, ensandece mesmo. A minha inspiração para a crônica nascera neste
dito popular, diria mais interrogação popular: “levantou com as galinhas?”,
dizendo que levantou muito cedo, e, em contrapartida, com outro dito: “levantou
com os galos e dormiu com as galinhas”. É o galo que acorda primeiro. E são as
galinhas que se re-colhem ao puleiro mais cedo.
Não estou criando nenhuma crônica. Estou simplesmente incomodado com a
insistência deste galo. Como pode! Não vejo nenhuma luz acesa, só as do poste.
Se estivesse incomodando alguém, com certeza já teria levantado, acendido a
luz, começado a xingar, alguns de modo chinfrim com palavrões do arco da velha.
Ninguém. E o galo continua cantando pela madrugada a fora, querendo chamar a
atenção. Está louco. Pede que o socorram, levem-no para longe de galinhas,
galos, internem numa veterinária especializada em galo louco. Quer morrer
tranqüilo, longe de galinhas, só na companhia dos galos que também são loucos,
sente-se em casa ao lado de todos.
Não deve haver solidariedade apenas entre os homens – retificando sem
excluir, é o que não há entre eles, nem esperanças e sonhos -, solidariedade é
praticada ilimitadamente, ainda mais no que diz respeito aos animais. Um galo
ensandecido e ninguém dá a mínima, é como se nada estivesse acontecendo.
Vou até ao quarto, acordo minha mulher e pergunto se o galo para ela
continua cantando ou isso está acontecendo apenas comigo, quem está ficando
despirocado sou eu. Acordo a uma e meia da manhã com idéia fixa de um galo
cantando, pensando estar havendo alguma coisa de errada no galinheiro da
vizinha, a galinha entrou em depressão devido ao fato de que os seus ovos não
têm mais quaisquer serventias no prato dos homens, são ovos caipiras, é a
primeira indagação, o intróito da sandice absoluta, a anunciação, seguido da
loucura do galo, enfim com a crise galinácea dos ovos inúteis resultara na
sandice do galo.
Vou descer. Não é possível. O bicho está precisando de ajuda, a coisa
não está nada boa para ele. Cabe-me chamar a vizinha, dizer-lhe que investigue
o que está acontecendo, o galo está cantando muito, sem me importar que antes
do dia amanhecer estará fofocando que enfia o dedo na campainha para dizer
alguma coisa estar errada no galinheiro, a galinha está deprimida e ele pede
ajuda ou o galo ensandeceu.
Pensando bem, não. Deixe o galo cantar à vontade. Há certas coisas que
são boas de evitar. É constrangedor acordar alguém numa situação desta. Terá
todas as razões do mundo para se irritar. Tirar uma pessoa da cama, depois de
um dia de muitos problemas, trabalho, dificuldades quotidianas, preocupações,
para dizer uma coisa desta é realmente brincar com a paciência do outro. Merece
o seu sono, embora não importe se seja profundo ou não, se para que acontecesse
calmantes foram tomados. Precisam descansar um pouco, fugir de tudo que
acontece, sentir-se mais dis-posto. Não há corpo que agüente tudo em cima dele.
Canta, galo! Aliás, já estou me acostumando com isso, uma coisa
inusitada, excêntrica serve para espairecer as coisas. Há quando acordo de
madrugada, não consigo dormir, venho para esta poltrona, fumo, um silêncio
sepulcral. Nem cachorro late. Impressionante isto: é uma cachorrada pelas ruas
durante o dia. Outro dia mesmo contei dez cachorros deitados. Em tom de
cinismo: “também a cachorrada merece a sesta”, “a cachorrada está tirando uma
soneca após os restos de comida no lixo”. Penso em tantas coisas, lembra-me
isto, recorda-me aquilo. Passo a noite no silêncio de início da terceira idade.
Nem grilo ouço. Silêncio absoluto. Esta é a” madrugada do galo”. Enquanto ele
canta e eu aqui fico a elucubrar as razões de um galo acordar a uma e meia da
manhã, quando o horário de práxis é às quatro e meia, não pára um segundo de
cantar, alguma coisa está errada no métier galináceo, ou o galo ensandeceu, ou
a galinha entrou em depressão, e ele sendo o companheiro está pedindo socorro:
“o galo pede socorro!”. Numa manchete de tablóide seria interessantíssimo, eu
mesmo leria, embora não leia jornal de forma alguma, isto não de agora, devido
aos sensacionalismos, corrupções, drogas, assassinatos, etc., etc., mas desde
sempre, nunca apreciei ler jornal ou revista. Matéria desta iria chamar-me
atenção.
Um galo me diverte numa madrugada insone. Já são quatro e trinta e dois.
Durante três horas o galo da vizinha canta e canta e canta. Talvez nada disso
que antes haja imaginado como razões seja real, em verdade o galo quer se
mostrar, quer tornar-se o galo mais importante senão deste bairro apenas, mas
de toda a nossa cidade pacata, a pacatice é tanta que ninguém dá a mínima para
o galo cantando, quer ser personalidade da espécie. A sua intenção é executar
uma peça dramática, a ópera do galo. Numa madrugada mais do que pacata, galo
acorda a uma hora da manhã, a inspiração baixou enquanto dormia, e, sendo muito
presente e forte, acordou de imediato e começou a compor a sua “opera do galo”.
O galo está com idéia fixa de artista, empreende todos os esforços para que a
componha com engenhosidade e arte, torne-se a primeira ópera do galo neste
mundo velho sem cancela e porteira.
Felizmente que alguém ouve, caso contrário seria trabalho perdido, sua
ópera nunca existiu, não é artista coisa nenhuma, galo nenhum canta com
constância. Ouço-lhe a ópera, intuo-lhe os sentimentos e emoções, os instintos,
percebo-lhe o desejo de se extravasar todo, mostrar aos homens o que é isto de
re-nunciar os ovos caipiras em detrimento dos de frango de granja, os
sentimentos deprimentes que todas as galinhas sofrem, as dores que sentem com a
vida inútil que levam, não são comidas mais nos pratos dominicais, têm de viver
muito mais, se antes a morte não vier devido a alguma doença da espécie.
Enquanto botam ovos, são pratos, a vida segue em harmonia, enfim os galináceos
servem é para isto mesmo, mas sem isso, que sentido tem o reino galináceo?
Nenhum.
O galo quer mesmo exteriorizar todas estas questões que os galináceos
sofrem e ninguém dá a menor atenção. Quer que a sua ópera seja ouvida por todos
os homens, por toda a comunidade, quer que os homens sintam que a vida num
galinheiro também tem sua realidade difícil de ser ciscada, que também sofrem e
sentem dor. Galo nenhum fizera isto em toda a história da humanidade, coube-lhe
o dom de fazê-lo numa madrugada em que acorda, sentiu forte e presente a
inspiração, felizmente que acordou de imediato, e pôs-se a compor a sua peça
com garra e determinação, com instinto mesmo de conseguir realizar o para quê
viera ao mundo, mostrar e identificar a vida dos galináceos no tempo moderno,
diante da injustiça de deixá-las abandonadas, já não servem para mais nada,
enfim os ovos, a carne aumentam bastante o colesterol, os riscos de enfarto são
inúmeros, de outras doenças também. O que não acontece com as galinhas de
granja, fazem bem, rejuvenescem as pessoas, fá-las sentir mais serenas e
calmas.
Enquanto a ópera não for executada com primor, nada for esquecido dos
sofrimentos dos galináceos, continuará cantando. Quando isto acontecer, nada
mais irá lhe interessar, os ovos das galinhas não servem mais, a carne de galo
caipira tampouco, mas a ópera de um galo que precisava mostrar ser ainda mais
útil do que todos os outros de hoje e de ontem serve e muito para os homens,
enfim a música tem uma dimensão espiritual elevadíssima, além de suprema e
divina. Uma ópera do galo, então, coisa que jamais ouve, nem mesmo na
literatura, nas artes, é coisa inédita. Num mundo tão pacato como este, pelo
menos na cidade em que vivo, música assim irá despertar sentimentos os mais
recônditos.
Continuarei aqui sentado, ouvindo o galo cantar numa madrugada qualquer
de minha vida.
(**RIO DE JANEIRO**, 12 DE JANEIRO DE 2017)
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