Maria Isabel Cunha ESCRITORA E POETISA COMENTA A SÁTIRA /**AO VISIONÁRIO DISTINÇÃO E DETERMINAÇÃO TEXTIFICAM VERDADE E SABER**/
Quanta sabedoria nas palavras do autor deste texto. Louco manso é todo
aquele que pugna por algo inatingível, mas mesmo assim não desiste. Aqui, o
autor ao comparar-se a um louco manso traduz a completa consciência de que não
alcançará quaisquer lucros ou benefícios com a sua arte de escrita e amor às
letras, não obstante continua dedicado e não esmorece. Excelente argumentação e
parabéns pela sua louvável obstinação em amor às Letras. Bem haja, escritor,
Manoel Ferreira Neto. Um abraço.
Maria Isabel Cunha
Estando dis-posto a morrer em nome de um projeto, de uma verdade, eis a
vida, eis o homem. Um dia as letras foram um projeto. São hoje a minha verdade.
São a minha "mochila" que tenho e terei nas costas por toda a jornada
existencial, por toda a eternidade.
Manoel Ferreira Neto
**AO VISIONÁRIO DISTINÇÃO E DETERMINAÇÃO TEXTIFICAM VERDADE E SABER**
TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis
SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
O grande Erasmo, crítico de mão cheia, sátiro de alma, coração
arregaçados às hipocrisias humanas, inspiradíssimo que estava, registrara nas
linhas do papel em que escrevia que andar atrás da fortuna e das distinções é
uma espécie de loucura mansa.
Não sei o que quis dizer com “loucura mansa”. Por mais tenham os
críticos e especialistas mergulhado em sua obra, explicado e esclarecido as
dimensões de suas idéias e pensamentos, ideais e utopias, os fundamentos da
moral e ética que professava, as suas críticas ao tempo em que vivia, e tenham
os críticos sido sérios e responsáveis com as exposições feitas, jamais a
verdade será revelada, por todos os séculos haverá interpretações e análises
mais profundas e percucientes, também imbecis e idiotas; as novas idéias
contribuem para novas visões, refiro-me às cientificas, literárias,
filosóficas, psicológicas, sociológicas e teológicas, não me esquecendo do
momento político, econômico, social, das situações existenciais e espirituais
dos homens. Tudo são elucubrações, interpretações, análises, leituras de uma
obra, seja imensa, seja mais que pequena, menor ainda que a imaginação fértil
possa conceber, esta não interessa a ninguém, foi lida por alguns íntimos,
amigos e familiares do autor, não chegou ao conhecimento público nem em sua
terra-natal, satisfez apenas a vaidade do autor de deixar uma obra publicada,
de tornar real o que sempre se diz sobre para ser homem: plantar uma árvore,
escrever um livro, ter filhos. Já fiz tudo isso, escrevi inúmeras obras, tive
dois filhos, plantei algumas árvores, e não me julgava homem senão quando me
dispus a morrer pelos sonhos, projetos que me habitavam.
Suponho, imagino, fantasio que Erasmo, ao dizer que andar atrás da
fortuna e das distinções seja uma espécie de loucura mansa, porque não ferirá
os orgulhos da esperança e da fé, não ferirá os ideais de encontro com a verdade,
o louco não jogará pedras em ninguém, em nenhum sistema, princípio, dogma, não
mostrará a ninguém que fortuna e distinções neste mundo não são possíveis, tudo
são vaidades de por baixo do sol; poderia até ser profundas, a fortuna e
distinções, se estivessem acima das nuvens, das estrelas, do sol, próximas, bem
próximas do paraíso celestial, ou já nele.
Analiso e interpreto isto à luz de uma loucura simples, de uma loucura
inofensiva, de uma loucura desde sempre determinada por Deus, ou seja, como destino,
uma loucura hereditária, fisiológica, saga, sina, determinada pelo pecado
original – meu Deus! isto me inferniza a todo momento – pela natureza humana
que me habita, pela condição existencial que me perpassa o corpo, a carne, os
ossos, e tudo o mais.
Sempre ouvi dizer “louco de pedra”, referindo-se aos maiores disparates
e despautérios de um homem, às maiores arbitrariedades, é aquele que está mais
do que ensandecido, a sua loucura transcende todos os sensos e realidade, vai
além de todos os ridículos. Este joga pedra, acerta a cabeça de todos, mata
mesmo se for atingido algum ponto sensível. Mas “louco manso”, em termos do que
posso entender e compreender das palavras de Erasmo é aquele que simplesmente
está com as idéias desvirtuadas, confundindo alhos com bugalhos, não sabendo
discernir o trigo do joio, fantasiando coisas sérias com coisas espirituais e
verdadeiras, quimeriando desejos de lucidez com realidades espúrias e
chinfrins.
Apesar de todas as confusões, equívocos, não faz mal, não prejudica
ninguém, vive seus distúrbios mentais de modo tranqüilo, consigo mesmo, não
espera a morte para se ver livre, libertar-se dos sofrimentos e dores de seus
distúrbios, porque louco não morre, transfere a loucura para o além. Estou
dizendo uma coisa inusitada, excêntrica, creio seja algo inédito, mas aqui não
é lugar e hora de fundamentar esta idéia que com certeza iria ser bastante
discutida nos manuais de loucura.
Andar atrás da fortuna e das distinções é loucura mansa, não vai
denegrir os brios de ninguém, não vai prejudicar os princípios e preceitos
morais de quem quer que seja, não vai tomar o santo nome de Deus em vão, não
vai subestimar a inteligência alheia. Estará apenas interessado no seu
conforto, regalias, despreocupações com a sobrevivência, tranqüilidade, porque
o dinheiro proporciona tudo isto, no reconhecimento, nos aplausos, nos olhares
de inveja e despeito, superioridade social e individual, enfim ser distinto
reclama dons e talentos, exige feitos e obras que respondem pela distinção, merecer
distinção é dificílimo, quanto mais num mundo em que imperam grandes valores,
enormes inteligências, pode não haver dois gênios em cada área do conhecimento,
mas é impossível não encontrar um em todas elas, jamais houve na história um
século tão rico em distinções e méritos.
Creio que até agora esteja andando de modo distinto no concernente à
interpretação e análise das idéias de Erasmo, serão respeitadas e reconhecidas,
serão leitmotivs de aplausos, quiça seja a última palavra sobre as idéias do
grande filósofo e sátiro, fiquem na história, sejam objetos de análises e
interpretações por todos os séculos dos milênios sem fronteiras e cancelas,
enfim será necessário compreender como é que fui abarcar com tanta categoria e
propriedade as idéias de Erasmo; estão mais do que elucidadas, justificadas,
coisa que nenhum douto fizera, às vezes a doutice deixa muito a desejar por
baixar num templo e persistir a ficar só nele, rezando as mesmas orações sem
mudar única vírgula de lugar, não por limites, mas sim por bitolação.
Ficarei decepcionado, com sentimentos de fracasso, mexerei os ossos na
sepultura, se alguém chegar a provar por alhos e bugalhos que a minha tão
grande façanha foi alcançada num instante de transpiração e não de inspiração
pura, apesar de haver sido iluminado por forças transcendentes, por Deus. Aí,
se estivesse vivo, soltaria as frangas, piolhos, pulgas e carrapatos, rasgaria
os pepinos da serra até à medula, destilaria os ácidos da química e da
fisiologia, pois que isto de haver mais transpiração que inspiração é
blasfêmia, é dizer que Deus não doa méritos, dons e talentos aos homens, quem
aprendeu só técnicas tem mesmo é de transpirar muito – transpirar significa que
muito esforço foi feito, além de todas as expectativas e realidades, muito suor
deslizou pelo corpo, nem calor de quarenta e cinco graus provocaria tanto suor.
Isto me deixaria entristecido, angustiado.
Mas para me ver livre desta interpretação dos doutos, possível só em
8888, penso que Erasmo, dizendo que andar atrás da fortuna e das distinções
mandou outro recado aos homens de todos os séculos, já passados, ainda
presentes, vindouros, por virem. É preciso ser portador de olhos de lince, ser
gênio para decifrar um recado na filosofia, na literatura, pois que ele se
revela ao in-verso da mensagem.
Num mundo de só desonestidades, corrupções, canalhices, de apenas
tragédias, problemas, frustrações, fracassos, violências, neuroses e psicoses,
decepções, é loucura desejar o contrário, querer a pureza, sonhar. Estas coisas
são piores que ácido sulfúrico para corroerem o espírito da vida. Em primeva
instância, quiçá estância, qualquer desejo ou aspiração no espírito humano
surgiu para não ser realizado – Schopenhauer prova e comprova isto com
distinção, propriedade e conhecimento de causa e efeito. A vida mesma, real e
insofismável são problemas, sofrimentos, dores até a morte, o homem é besta
jumentada em nível da contingência, imanência, correndo ou andando atrás dos
contrários, despautérios ou disparates, é jumento classificado em nível espiritual,
transcendente, andando atrás da fortuna e distinções.
Para que servem as distinções? Para mostrar os orgulhos, vaidades da
laia e estirpe? Orgulhos e vaidades não vão, nem por milagre de Mefistófeles,
extinguir a natureza humana, acabar vez por todas com as mazelas, pitis. Para
ser admirado, reconhecido pelas obras? Sentir-se recompensado pelas lutas?
Declarar pureza de espírito diante do inimigo que tem as provas contrárias é
verdadeiramente um idílio... Declarar sabedoria frente ao analfabeto é ser
pernóstico de carteirinha. Quem correu atrás da distinção, não sei a razão, ama
de paixão mirar-se no espelho, pois ele solta gargalhadas diante da imagem que
está diante, coisa que os homens não conseguem, sempre haverá uma fisionomia
casmurra diante do distinto, creio que por inveja, ciúme e despeito. O
travesseiro do distinto lambe as suas mágoas, como uma mulher nas noites de
criações, na esperança de esquecer o tempo. O lençol nunca esquece de
protegê-lo das euforias e êxtases por ser apontado pelas ruas da cidade como
homem que alcançou méritos nunca dantes alcançados, recebeu medalhas de honra
ao mérito que ostenta por todos os lugares por onde anda. Bebe cachaça feito
água, fuma que nem torre de indústria, come lambiscando pelos bares e restaurantes
de grife. Faz da cela a sua calçada deserta, a sua noite clara e solitária. A
cela sabe que o distinto está dentro dela injustamente, mas a lei da sociedade
humana exige provas para provar inocência ou sabedoria, para acusar, e o
distinto tem provas para provar a sua distinção.
A única distinção por que andei atrás foi escrever com a melancolia que
a natureza, para realçar a alegria do século, colocou na minha alma, o parecer
não compreende a vida das letras e as belas e eruditas linguagens não justificam
os espinhos de antanho. Isso quanto aos interesses jocosos. Pelo que toca aos
obscenos, é preciso admitir que, assim como há bocas recatadas, também as há
lúbricas. A alegria tem todas as formas, não se há de excluir uma, por não ser
igual às outras. A monotonia é a morte. A vida está na variedade.
Quando tomei conhecimento das palavras de Erasmo, levantei-me vivo e
perspicaz, pois que por longos anos me questionei sobre a vaidade de escrever
com a melancolia, não com a pena dela, pois que não voa daqui para ali, de lá
para acolá; queria ser distinto nas letras, e sabia que isto não tem sentido e
finalidade alguma, estava era sendo imbecil, distinção não iria saciar a minha
fome e sede de sublimidade, imortalidade, eternidade, mesmo na idade bem avançada
das letras e da vida. Mas Erasmo mostrou-me com eficiência, sabedoria, que não
estava sendo imbecil, correndo atrás da distinção nas letras, estava sim sendo
um “louco manso”. Ser reconhecido como “louco” é elogio dos mais sublimes,
quase o mesmo de ser chamado de subversivo, que causa frenesis, êxtases,
alegrias e felicidades inomináveis aos homens de letras.
Ora, cada um ri com a boca que tem, ninguém ri com a boca alheia. Mas a
prova de que a obscenidade de escrever com a melancolia, como com a jocosidade,
formas de distinção divina e pura, são de origem legítima e autêntica. Quando a
alegria das distinções entra nas repartições públicas, nas alcovas de todos os
lares, é que a tristeza foge inteiramente deste mundo.
Se pudesse, mesmo que transgredindo a melancolia da escrita, dar um
conselho a quem anda atrás da fortuna e das distinções, proporia: “Gloria a Deus
nas alturas”, deve permanecer; mas completaria com outras palavras bem sutis:
“e, na terra, paz aos distintos”.
(**RIO DE JANEIRO**, 04 DE JANEIRO DE 2017)
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