(TESE) - EFÊMERO E O NADA - ENSAIO POIÉTICO DOS CAMINHOS DA LUZ - Manoel Ferreira
IV CAPÍTULO - O NADA E A ARTE LITERÁRIA
4.16
- SILÊNCIO E A CALADA DOS DISCURSOS
Antes, todavia uma pergunta: para que
incomodar-me com o silêncio e a calada dos discursos? Não me incomodam, eles
que se incomodam comigo porque me querem des-velá-los, des-vendá-los, me querem
conhecê-los, sabê-los.
O silêncio não é algo positivo. É uma
simples ausência que nega qualquer coisa. Esta contestação não contesta nada. É
um tiro pela culatra. É um murro em ponta de faca. É que, ao determinar num
dis-curso negativo o silêncio da fala, admito implicitamente o seu vigor e
concedo indiretamente a sua vigência nas línguas. O modo de uma língua falar do silêncio é não
rompê-lo e, para isso, calar-se. Contudo, noutra instância, para calar, sem
fala não posso impor silêncio.
Assim, com a Linguagem, estamos imersos
numa tensão de ser e realizar-se que não se deixa amainar mas somente
aprofundar. Sempre que uma língua busca,
tenta falar de suas possibilidades extremas de ser e não ser, é levada, forçada
a recorrer ao silêncio e a calar. Pois o discurso, que, no e com o exercício,
recusa o silêncio, dele se vale para poder vir a ser o discurso que é na fala.
Nestas condições, admite-se o silêncio
implicitamente no exercício, mas se rejeita explicitamente no dito do discurso,
assegurando-se que o silêncio é um nada meramente negativo, a simples omissão
ou ausência da fala. Esquisitíssimo: uma negação torna possível uma afirmação,
um negativo possibilita um positivo! Mas como isto é possível? Será mesmo que o
silêncio só se dá porque se dá a negação, o não e o negativo? Ou será, ao
contrário, que só se pode negar, dizer não e ser negativo porque o silêncio se
dá, acontece e se impõe às falas?
Somos sempre a propriedade do silêncio,
embora só de quando em vez lhe pressintamos o vigor misterioso, sem nem saber
ao certo o que nos acontece. Assim, num grande desespero, quando todo o peso
parece desaparecer da existência e se obscurece todo sentido, surge o silêncio
Numa grande esperança do coração, quando tudo se trans-figura e parece nos
rodear pela primeira vez, sufoca-nos o silêncio, a ponto de perdermos a fala.
Numa indiferença, quando distamos igualmente da esperança e do desespero, e a
monotonia das repetições estende um vazio, onde se nos afigura dar no mesmo
tanto a presença como a ausência das coisas, impõe-se de novo o silêncio.
Desta uni-versal-idade do silêncio dá
testemunho toda experiência criadora da condição humana. O vigor do silêncio é
deixar ser o nada da realidade, em toda realização de qualquer real. A fala
encontra o viço mais originário deste deixar ser no pensamento dos pensadores,
na poesia dos poetas, na convivência dos homens. Lao-Tsé nos reconduziu ao
coração de nossas linguas, ao insinuar a vigência do silêncio em todo discurso:
"Falam-se palavras e se apalavram falas/Mas é no silêncio que mora a linguagem."
No discurso mora sempre uma esperança,
a esperança de ser uma ponte entre os dois mundos. Toda ponte realiza em seu
ser um convite de travessia. Uma atração para passar num sentido e no outro
encoraja os passos das passagens. Não se trata de levar os passageiros do tempo
a mudar de mundo. Trata-se apenas de animá-los, encorajá-los a não cessar de
passar. E este movimento incessante não pretende chegar a parte alguma.
Nietzsche em "Assim Falava Zaratustra", diz-nos: "O grande no
homem é ser uma transição e uma passagem".
Por realizar-se no silêncio o homem é sempre um viajante. Não é para
chegar que se caminha pelos caminhos do silêncio nas falas. É simplesmente pela
alegria de saber o sabor da diferença entre o "ser e o nada" na
aventura criadora do sem-fim.
Na escolástica medieval, sempre se
discerniu entre tempus e aeternum, entre o tempo e a eternidade. O tempo é a
duração que começa, se descobre em sucessões e finda. É segundo o tempo que
dura o ser material. A eternidade realiza um outro modo de duração. O que é
eterno, nem começa, nem tem sucessão, nem finda. Sem começo, meio e fim, é um
puro agora concentrado. É o modo de duração do absoluto.
O homem fala por não suportar o
silêncio da realidade nas realizações. O senso comum diz: "Falo para não ficar
calado" É por isso que o silêncio constitui a diferença entre ruído e
fala, entre ruído e música. Um conjunto de sons, um conjuntos de traços, um
conjunto de gestos compacto e saturado, sem as pausas nem os interstícios do
silêncio, eis o ruído, sempre opaco, maciço e trancado para dentro e para fora.
Trancado para dentro e para fora! Não há saída.
A recompensa, por se existir na ponte
do tempo entre o silêncio e a fala, é avançar sempre e nunca parar.
Referimo-nos na Parte anterior a este Capítulo, Capítulo XV, que ninguém tem a
verdade, a verdade não é ab-soluta: ela se faz, re-faz, cria-se, recria-se,
inventa-se, re-inventa-se no tempo; então é estar sempre em busca da Verdade ao
longo do tempo. Ec-stir é a preregrinação do silêncio nas falas das realizções
de um tempo originário. Não há duvidar, sempre temos uma meta, sempre estamos
no tempo, sempre seguimos uma dirção. Mas, porque está em jogo o "ser e o
nada", cada passo de nossa passagem pela ponte dos mundos atinge a meta,
se dá no tempo e mantém a direção. é a própria caminhada que constitui a meta,
é o próprio caminho que se faz direção, é o proprio limite que instala o tempo.
Existência, caminho e ponte tornam, no
silêncio, uma mesma unidade, a unidade da diferença entre realidade e realização.
Trata-se de uma unidade na diferença porque não pode ser ou acontecer nem uma
existência sozinha, nem um caminho único, nem uma ponte só. Cada existência
co-existe na construção de sua ponte e na caminhada de seu caminho. Se fosse possível uma existência única, não
haveria silêncio na fala das realizações nem fidelidade nas caminhdas das
diferenças. A diferença das identificações é a coisa mais importante no
silêncio da fala.
Na perspectiva da lingua, todo
pensamento é um texto. Um texto é um sistema de signos em que alguns sempre de
novo recorrem numa cadência regular. Pela regularidade os signos recursivos
parecem desempenhar uma função hipotática e por isso mesmo se nos afiguram
palavras-chave de todo o sistema.
Uma leitura poética reuncia de bom
grando a "explicar" as poesias. Espera apenas in-troduzir nas
condições possíves de um encontro originário com a trans-cendência de seu
pensamento. Neste encontro a densidade da palavra poética nos leva a superar o
desnível e dualidade entre ouvido externo e ouvido interno. A cada passo da passagem desta leitura
fazemos sempre a experiência do silêncio da fala. Nas poesias, toda palavra só fala por já não
poder calar-se. Silêncio da fala não diz, porém, ausência de palavras. Ao contrário, diz vigência, tanto no falar
como no calar, da diferença essencial entre lingua e Linguagem. Ler
poeticamente a poesia significa também a-colher nas peregrinações dos versos o
vigor dessa diferença. Significa propiciar o diálogo entre a escuta do autor e
a escuta do leitor a propósito da realidade no advento de trans-formações
históricas. Trans-formações históricas
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