*AS ESTRELINHAS PASSAM, O NADA PERMANECE BRILHANDO** - Manoel Ferreira
Nada. Tornou-se palavra única no meu vernáculo de erudições. Abri a
cadernetinha e cachaprei a palavra, olhei-a de cima a baixo. Não se rasga,
ateia fogo em palavra, seria o meu insofismável desejo. Poderia arrancar a
folha, picá-la em pedacinhos, mas não tem culpa alguma das asnadas minhas.
Graciliano Ramos tinha os seus ódios clássicos e eruditos das palavras,
tinha sérias crises por causa delas, mas não conseguiu se libertar. Inspiração
tenho-a para dar, vender, alugar, emprestar, jogar fora, restando muita, sou
inspirado vinte e quatro horas, coisa que Gradiciliano não tinha, viveu
reclamando não tê-la.
Nada de Inspiração. A Fênix renasceu das cinzas. Os escritores renascem
do nada, cachapram obras-primas. Fosse hoje, a Fênix soltaria os cães em nós,
tomamos o lugar dela, somos o mito agora, ela está sendo esquecida.
Renasci do nada, nadifiquei a vida, arrasto-me de nada, prolongo-me no
nada, e só cachapro os nadas nas páginas, nos papéis. Serve-me para justificar
as asnadas cometidas, não mergulho de cabeça e pés juntos no abismo, faço lá
meu casebre e olho para o céu pleno de estrelas, a lua mais que brilhando,
circundando-me as muitas "m..." que espalhei por todas as trilhas
percorridas.
Vou-me homenagear: pedir a alguém que escreva na minha cripta: "Nada",
não inscrever o nome, data de nascimento e de despedida deste covil de
hipocrisias e invejas. Tais palavras amanhã serão contestadas: "Você
estará sempre presente no mundo. É eterno, é imortal..." Dirão que estou
deprimido, compreendem, e isto passa. "As estrelinhas passam e o nada
permanece brilhando, como dizia o meu amigo e ator Antônio Pônzio"
Disse-me isto porque nas depressões via estrelinhas em pleno e causticante sol
de meio-dia.
Encontros de artistas são o protótipo das profecias: conversam sobre o
que serão, nunca o que foram, o que são. Se me encontrasse com Ponzio, diria
ele: "Não disse, Manoel, que as estrelinhas passam e o nada permanece
brilhando. Você hoje brilha, e com todos os méritos..." Dando uma bola no
baseado, mandaria Antônio Ponzio catar coquinhos como o Saci-pererê, com uma
perna só. Brilhandos no mundo, mas na vida mesma procuramos uma sombra para
fugirmos do nada.
Certa vez, amigo chegou na Cantina D´Lucas, ficou atrás de nós dois,
ouvindo a conversa, deu as caras dizendo: "Vocês dois são perfeitos
imbecis."
Referia-se aos nossos cinismos com a vida. Se o leitor quiser saber o
nível, é só imaginar Sartre e Nietzsche num "cafe parisiense", na
margem esqueda do Senna, até o capeta poria a mochila nas costas e escafederia,
nós éramos o inferno.
Ponzio era uma figura sem precedentes. Hoje sinto na pele e nos ossos
"as estrelinhas passam e o nada permanece brilhando...", dito por ele
após um substancioso baseado, mais grosso que o cigarro clássico e erudito, no
meu quarto de pensão na Savassi, Belo Horizonte, sobre a cama A NÁUSEA, de
Sartre. Malucos, saímos para uma porção de peixe, regado a Campari, ele, Gim,
eu, com todos os direitos às epifanias do Nada brilhando. De todos os amigos do
passado, Ponzio era o que habitava as prefundas de minha alma. Conhecia o meu
presente, nada sabia de meu passado, profetizava o meu futuro.
Amigo, digo-lhe ao contrário: "O nada passa, as estrelinhas
permanecem brilhando. Vão sempre brilhar..." Estou sozinho num bar,
bebendo e escrevendo, ouvindo música, um verso da lírica diz: "Precido te
esquecer..." Preciso esquecer-me de estrelinhas, do nada que permanece
brilhando, e retornar ao Avant-Premier de mim anônimo, perfeitamente
desconhecido, simplesmente nada, e figurar no picadeiro de circo como objeto de
todas as gargalhadas. "Hoje, meu amigo querido, reconheço-me um palhaço,
faço rir e volto ao camarim do Nada." E para terminar , lembra-me fala
sua: "Se a humanidade soubesse quem os artistas somos, rezaria de joelhos,
debulhando as contas do terço, pedindo a Deus a terra nos seja leve".
O meu grande abraço, amigo Antônio Ponzio e obrigado por suas lições de
vida e das artes. Tivemos pouco tempo de relação, partiu para o Rio de Janeiro,
mas estará para sempre na memória. O único que deixou lembranças verdadeiras, o
resto foram apenas luzes foscas.
Manoel Ferreira Neto.
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