#TRESANDADA DESOLADA II PARTE# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
Brás Cubas
mexe-se e
remexe-se na sepultura, irritadíssimo, os carros de propagandas comerciais, som
no último volume, que passam à porta do Campo Santo estão lhe tirando a atenção
na escritura de seu memorial póstumo.
Macunaíma,
deitado na
rede, com sua eterna preguiça, ouve na emissora de rádio "Eu não sou
cachorro não", com Waldick Soriano, olhando disperso para o casal de
maritacas na galha do abacateiro, quietinho, quietinho.
Reitor da
Faculdade de Administração,
na sua
Biblioteca particular, prato com restos de comida à frente, ao lado de um livro
de Contabilidade Comercial, gira e gira o revólver no dedo indicador da mão
direita. Abre uma gaveta, tira uma bala, coloca no revólver, dá um tiro em
direção à porta. Cruza os braços sobre a mesa, esconde a cabeça neles.
Cinderela,
no tanque de
lavar roupas, enche um balde com água, põe sabão em pó, mergulha seu vestido
longo branco, ouve as galinhas alvoroçadas no galinheiro, o galo está
desvairado. Sai de perto do tanque, senta-se na rampa, fica olhando os garotos
jogando bola na rua.
Professor de
Física,
na hora do
recreio dos alunos, está em pé no meio do pátio, caneta nos lábios,
perscrutando na mente uma fórmula de Gravitação Universal. Einstein na sala de
pesquisas da universidade toma um suco de maracujá sem açúcar, disperso no
quatro-negro entupigaitado de cálculos. Há um erro crasso num dos cálculos que
ele não identifica, perdido que está com o sabor do suco de maracujá.
Presidente
da República,
em sua cela
presidiária, lê um gibi de piadas picantes, vertendo lágrimas de tanto rir, a
garrafa de whisky escocês está pela metade, só há dois pedaços de frango à
passarinha no prato. Sairá da cadeia, seus bens restituídos, rirá na cara do
povão. A justiça política é digna e honrada.
O vendedor
de fumo de rolo,
com sua
banquinha frente à igreja, cotovelos sobre o joelho, pernas abertas, gira o
chapéu de feltro puro, lembrando-se da pescaria com os amigos no final de
semana, comeram carne assada e beberam conhaque, regados a causos de adultério,
falências empresariais.
Aposentados,
sentados na
porta do cine-teatro, conversam alegres e saltitantes sobre as mazelas e pitis
humanos, a humanidade está no fim do abismo. Trabalharam honestamente,
adquiriram seus bens, a família está criada, podem morrer tranquilos e serenos.
A jovem
estudante,
acompanhada
de seus amigos na lanchonete frente à prefeitura, toma sorvete de chocolate.
Com a boca cheia, responde a pergunta da amiga, cuspindo chocolate. As mochilas
de livros e cadernos debaixo da mesa, sobre as cadeiras.
Simão
Bacamarte,
na sala de
estar da Casa Verde, nega peremptoriamente todas as suas teorias sobre a
alienação, ouvindo no aparelho de som As Quatro Estações do Legião Urbana.
Perscruta silenciosamente um quadro de Van Gogh, o par de botinas velhas,
suspenso na parede.
Graça Fontis,
na sua mesa
de artes, lê Santo Agostinho, Luís Costa Lima, Clarice Lispector, fecha um
livro, abre o outro, toma da caneta começa de registrar uns pensamentos que se
revelaram na mente, será um texto, e depois iniciará uma nova pintura, a
madrugada está repleta de afazeres.
Ana Júlia
Machado,
à janela de
seu leito, tem um ovo na mão estendida à noite, lua minguante, estrelas
incidindo, deste ovo
ela
artificiará os pelos para o novo poema, clara e gema serão as palavras nuas e
crus - seria que os leitores perceberiam o inter-dito dos pelos de ovo?
Padre
Cavalhaes,
na sua sesta
do almoço, bem à vontade na cama, de cueca, lê Elogio à Loucura, lembrando-se
de Padre Argel sendo levado em camisa-de-força para o manicômio. A fiel, Amélia
dos Santos, totalmente pudica, com ela se preocupava, no confessionário
disse-lhe que ainda usava cinto de castidade, seria enterrada com ele. Outro
fiel, Pedro Quatro Olhos, confessou-lhe que em treze anos de casado, nunca
tocou um dedo em sua mulher. Não compreende como pôde ter tantos filhos, e a
mulher está grávida. Deixa o livro sobre o criado-mundo, vira-se para o canto,
dorme.
Sonia
Gonçalves Son
grava música
no CD, embrulha numa folha de caderno, no sentido de transferir os sons para os
interstícios da página, assim sarrasbicando o poema inspirado nessa fantasia,
os leitores ao começarem a ler ouvem o som, ficam alucinados, varridos de
pedra, de onde vem a música? - alegre, satisfeita , dando saltinhos e dançando
com seu sapato novo de salto de agulha - que dádiva dos deuses esta idéia!
Breve, mui breve deixará Tresandada ainda mais alucinada.
A primeira
dama de Tresandada,
conhecida
como "A Bonequinha", por se vestir elegantemente, está com os braços
cheios de sacolas, voltando para a cobertura do Edifício Pioneiro, o mais
suntuoso de Tresandada, após uma tarde de compras, o vereador, Ratúlio
Bustamonte, entregou-lhe em mão o cartão sem limites, comprasse até a loja se
quisesse. Vai passar um mês na Suíça com o marido.
E o
professor de Literatura Brasileira
con-templa
na página do livro de Guimarães Roa uma frase: "O que tem de ser, tem
muita força". A filha de nove anos, deitada na poltrona, lê Ilusões
Perdidas, de Stendhal. A esposa prepara os pães de queijo do lanche da tarde,
ouvindo 'Coração de estudante", de Milton Nascimento.
#RIODEJANEIRO#,
13 DE MARÇO DE 2019#
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