#NÓDOA ESCURA AO LÉU DE VAIDADES# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA SATÍRICA
A minha
alma, talvez, não é tão pura,
Como era
pura nos primeiros dias;
Sei-o, e tão
bem; tive choradas agonias
De que
conservo alguma nódoa escura...
Em épocas
longínquas, que a memória não consegue vislumbrar, e muito remotas da
humanidade, havia uma espécie de remorso muito diferente do existente hoje.
Atualmente, as pessoas só se sentem responsáveis por aquilo que querem e por
aquilo que fazem, e a altivez deriva apenas daquilo que cada um traz consigo:
os nossos juristas fazem partir tudo deste amor próprio individual, deste
prazer consigo mesmo, como se a fonte do direito daí tivesse jorrado deste
sempre.
Entretanto,
durante o mais longo período da humanidade, não houve nada tão terrível como
sentir-se isolado. Estar só, sentir-se como um isolado, não obedecer nem
mandar, significar um indivíduo, não era de modo algum prazer, mas punição;
estava-se condenado a ser “indivíduo”. Graças aos sonhos, somos mais ricos ou
mais pobres...
Quem há
duvidar o universo é um composto de maldade e invejas, não há talento, por mais
prodigioso, que não seja ferido, não seja objeto de escárnio, pela seta da
calúnia e do desdém dos egoístas. Como fugir a esta triste situação? Participar
mudança para os quintos dos infernos? Seria um paliativo? Seria uma solução?
Seria, com efeito, a consolidação da lei do menor esforço. Só se pode fugir a
isto de único modo. Que cada um começando a viver deve logo compenetrar-se de que
nada há acima de si, e desta convicção própria nascerá a convicção alheia. Quem
há de contestar o talento a um homem que inicia por senti-lo em si e diz que o
tem.
Dirão que
isso é a mais pura vaidade; mas se compreenderem a minha natureza e a natureza
dos outros deverão saber que isso que lá embaixo se chama vaidade não é entre
nós outra coisa mais do que a verdadeira tensão do espírito, a consciência da
nossa elevação moral. Quero até crer insolentemente que nada dirão, pois que o
juízo da vaidade consolida-se se com a vaidade do juízo, e que juízo é este
cujo eidos é a vaidade, mas o súpero valor da Justiça, o Juiz, se convidado a
decidir, ao enfrentar a realidade e os perigos, adquirirá, no meu parco ponto
de vista, o bom senso, a lei que está acima de nós os homens obriga-nos a
sermos estranhos, estrangeiros, e mesmo por isto/isso devemos nos tornar mais
dignos, entendendo verbis e litteris ipsis o que ocupa altos lugares se chama
não "poder", mas a vertigem ao olhar para baixo, uma linguagem patética
e acanhada demais para a enfatização da lei, a pena com que e que impinge e
pune. A questão complexa da vaidade é quando o botão se abre e expõe com todas
as evidências o nonsense, a loucura, o homem de loucura que não se comunica com
o outro senão pelo intermediário de uma razão igualmente abstrata, que é ordem,
coação física e moral, pressão anônima do grupo, exigência de conformidade,
oásis repleto de encantos no deserto árido, tudo o que é vigoroso, nobre e belo
cai em descrédito. As contradicções da dialéctica da vaidade só se efetivam se
in-vestigadas ao léu das dialécticas das contradições da vaidade, e dessa
inteligência e perspicácia carece o mundo contemporâneo.
#RIODEJANEIRO#,
27 DE MARÇO DE 2019#
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