#AFORISMO 798/ DOS MEANDROS DE VOLÚPIA E DIAMBAS (Título criado em 18.07.2004/ Escrito e revisado em 21.07.2004) - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira: PROSA
Em
verdade, estou, aqui, a fumar um cigarro – neste instante em que escrevo está
ele do lado esquerdo da boca, seguro pelos lábios -, ouvindo músicas, numa
tarde de inverno, quase seis horas, sem inspiração, buscando-a nos goles de
cerveja que tomo lenta e paulatinamente.
Decido,
então, olhar para o branco da página, após estas quatro linhas já escritas, com
o que vou preenchê-la, com que sentimentos vou revelar estas palavras, as
idéias com que vou cobrir a solidão de um escritório, só eu dentro, ouvindo músicas.
Meu
Deus!... Com que tempo – pode ser daqui a duas horas, ou menos, hora e quinze
minutos – irei escrever o que me surgira na mente, nem isso... Será que o
instante de dizer – assumir, esse o verbo que iria usar para definir vez por
todas; preferi dizê-lo por assim poder abrir um espaço, fazendo esse comentário
que outra coisa não significa senão “estar-ganhando-tempo” – não é possível
continuar.
Não
posso dizer estar a faltar-me a insigne inspiração por sentir a sua presença, e
muito forte, presente, aliás. O que está ausente agora são as idéias, diria,
também, a intuição – se faltam as idéias e a intuição, o que irá ser escrito,
em verdade, é o nada, apenas palavras na folha branca, numa tarde de inverno,
tomando cerveja e ouvindo músicas.
O
que surge aqui a olho nu – não necessitando ser de lince, aquele que mergulha
no fundo das coisas, dos mistérios, enigmas – é a brancura da folha; disse-o
diversas vezes, mas creio que mergulho neles um pouquinho mais, e será assim
até o momento em que palavra alguma for registrada, não haver mais o que
escrever.
Creio
que este mergulho está sendo inspirado pela neblina existente no alto da serra,
a brancura que chama os olhos a observa-la, contempla-la, e ainda sendo inverno
as ausências são mais despertadas, sente-se mais as coisas.
Não
o é, contudo não me é dado, ao menos neste início, saber a razão mesma de esta
brancura haver penetrado tão fundo, ou melhor, o que ela despertara em mim para
me deixar distante, longínquo, “sorumbático” – isso para usar um termo
diferente, podendo até ser um outro que também define o estado de alma,
“meditabundo”.
Interrompo
por alguns segundos, recostando à cadeira de balanço, olhando a brancura do
papel, não procurando palavras para continuar escrevendo, mas para des-cobrir o
que em mim vai dentro desde que no início o que me chamara a atenção fora a
brancura da folha, e deixei que mergulhasse fundo. Só com este mergulho me
seria possível iniciar, mesmo que, antes de terminar o parágrafo, senti que não
daria um único passo adiante.
A
bem da verdade, tive mesmo de encerrar com o primeiro parágrafo, pois não fora
capaz de prosseguir. Num outro instante, poderia ser que me fosse possível, às
vezes faz-se necessário permitir que haja amadurecimento, não digo das idéias,
intuições, e tudo o mais que se queira incluir, mas dos sentimentos que se
anunciaram.
São
três horas e vinte e seis da madrugada. Perdera o sono. Decidi descer ao
escritório para continuar o que havia interrompido. Estou dando muitas voltas,
talvez andando em círculo, talvez me distanciando, querendo penetrar nos
sentimentos que se anunciaram, arrancar-lhes de dentro, tornar-lhes reais. Crio
estratégias, enquanto espero se aproximar a empolgação, aí quando só se ouve o
barulho das teclas, toques rápidos, precisos, e quando menos espero, até dando
uma impressão de que há muito ainda a ser expresso, dito, revelado, alguns
mistérios vividos, já que não são para ser revelado, e isto proporcionou um
sentimento diferente de alegria.
Por
que estou a sentir medo dessa aproximação? Estou necessitando dela, sei de sua
importância agora, o que proporcionará no decurso e percurso desta caminhada, e
sinto medo, não um que me faz com simplicidade interromper, uma atitude brusca
e precisa. Medo me causa, então deixe que me afaste, não me fará bem algum,
aliás, será uma experiência que não vale a pena viver.
Não.
O medo não é algo tão intenso. Compreendo: diante da empolgação, corro o risco
de me distanciar, e assim começar a escrever coisas sem nexo, ininteligível a
olhos de lince, incompreensível a quem não aprendera, e nem sabe de que se
trata, a mergulhar nas entrelinhas. Aliás, quando me decidir ler o que fora
escrito, estarei olhando sempre para a página, tentando compreender o que
dissera, até com um sentimento muito comum a todos: “Fui eu quem escreveu isso?
Não acredito. Só podia estar muito inspirado ou sem inspiração alguma”. Só
mesmo um especialista para dizer da profundidade ou da superficialidade, da
mediocridade ou mesquinhez do que está registrado.
Este
é o perigo que corro, empolgando-me. Não é este o caminho que pretendo trilhar
– há sim a hora que isto me alegra e satisfaz sobremaneira, nada dizer, nada
expressar, ter apenas palavras escritas no papel, na brancura da página.
Se
antes disse “brancura do papel” como se desejasse esclarecer ser um manuscrito,
é que faz muito descobri que não tinha idéias, não intuía coisa alguma, e,
assim, começava a me utilizar de estratégias, de voltas, o eterno retorno ao
princípio, à busca de algo, e depois de muitas páginas tudo se esclarecia, o
restante o texto escreveria por si mesmo, tomava-me a pena.
Agora
disse “brancura da página”. A diferença está que no manuscrito a descoberta da
ausência de inspiração, intuição, idéias se dava ao longo da escrita, e a
brancura não era muito percebida devido às linhas existentes da página. Na tela
do computador, não há as linhas, a brancura da página ofusca as vistas, e todos
os esforços são no sentido de preenche-la, sentir que os caracteres ocultaram a
brancura, deixou de existir.
E
não é que me surgiu o que desejo mesmo é mergulhar na volúpia que é isso de
escrever, servindo-me ora da brancura da página, da ausência completa de
caracteres, de símbolos – letras são símbolos -, para este mergulho. Diante da
volúpia, o desejo mesmo é de entrar nas palavras, sê-las, em verdade.
E
todas as estratégias, abismos, silêncios surgem da habilidade, destreza, da
intimidade com as palavras, sem o que nada é possível. Não será algo
ininteligível, incompreensível, mas uma perfeita falta de senso. Quem sabe seja
um dos grandes valores, a habilidade e destreza. O que desejo é mostrar-me
exímio, identificar essa habilidade, essa destreza?
Sabê-lo,
não me é dado. Ademais, estou com quase duas páginas escritas, e alongar seria
prejudicial no que concerne ao tempo gasto com a leitura, o leitor jamais gosta
de ler algo muito extenso – faz-se necessário ser objetivo para despertar nele
o interesse, a admiração, e noutra oportunidade, vendo um outro texto, e já conhecendo o estilo e a
linguagem, terá prazer em fazê-lo.
Só
me pergunto qual é a objetividade existente nesse texto. Existe alguma? Creio
que não: estive por um tempo a falar da brancura da página, a angústia que isto
revela, a ausência de caracteres, e de repente, não podendo mais conter-me,
deixando as palavras dizerem, dizendo, creio haver distanciado disso.
(#RIO
DE JANEIRO#, 29 DE MAIO DE 2018)
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