#AFORISMO 797/ RENTE AO SOLO NO CÉU DE EPITÁFIOS (Título escrito aos 12 de junho de 2007) - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA//Manoel Ferreira Neto: PROSA



O aparelho de som toca uma música que me parece belíssima, muito terna, com uma frase breve que reaparece a todo momento, uma música cheia de melancolia, muito embora não acredite eu que sejam languidez e tristeza indefinida que se revelam em mim, aquando a ouço; creio, ao contrário, ser um sentimento de alegria e contentamento.


Compreendo de súbito o que tenho de escrever e o que tenho de explicar: a frase breve que reaparece a todo o momento é a juventude de todos os homens e seus mais melancólicos desejos, é a minha maturidade dotada de um certo bom senso e sendo, além disso, um olhar que me faz acreditar em minha própria originalidade.


Esta música provoca em mim uma paixão imediata e, sobretudo, um desejo nunca havia sido inspirado em mim. Uma espécie de felicidade resignada abate-se sobre mim.


Felicidade resignada?!... Sugere-me isto que bendigo todos os sofrimentos, culpas, remorsos, que são a expiação de antigas atitudes e comportamentos de não. Por Deus!... Embora deva confessar que os outonos da memória exerceram essencial influência no certo bom senso que venho percebendo em mim, contudo não a ponto de abrir mão da irreverência.
Isto não, de forma alguma. Irreverências e rebeldias mantiveram-me de pé até ao presente, apesar dos muitos dissabores e discriminações. Não aniquilaram vez por todas com o pouco de orgulho próprio, com a pouca auto-estima existentes em mim, condições fundamentais para continuar a longa jornada vida adentro. Sem eles, não estaria aqui, ouvindo música no aparelho de som; estaria sim eminentemente amassado em meu canto, a respiração contida, a boca aberta, tentando sorver um pouco de ar puro, sem nada conseguir, entregando-me nas mãos de Deus, só quem poderia ter compaixão de mim quem tragou o veneno até espetar o corpo.
Confesso que por umas três vezes escapei de ser assassinado por haver deixado a língua bem solta e livre, expressando-se espontaneamente o que de imediato lhe surgiu. Por outras vezes escapei de ser brutalmente surrado por grupos de homens. Nada disto ensinou-me a ouvir as ofensas e provocações. Com efeito, enquanto esta língua puder se expressar, fá-lo-á com todos os verbos na sua ponta, rente ao solo no céu de epitáfios.


Se bem posso perceber o que esta música suscita em mim, não haja dúvida de que estou refletindo sobre a solidão em que me encontro, afastado de todos e do mundo; enfim, com a presença viva da solidão, os pensamentos voltam-se todos para as grandes frases, espécie de poesia satírica feita sobre os vivos como se se tratasse de um vivo. E, não me faltando a falta de mesura, sou eu quem próprio escrevo este epitáfio, não sabendo inda se vai ser inscrito em minha lápide ou não, mas não aceito que o faça outros, com os seus verbos nas altura e os adjetivos se tornando cinzas.
Tudo falha – quem sabe? – e que importância tem? Há alguma coisa mais, sempre o soubera, bem antes de ouvir esta música agora, ouço-a desde tempos imemoriais, alguma coisa que sou eu mesmo, minha solidão, e que me exalta.


Muitas vezes sinto que existem homens mais sensíveis, mais dotados para sentir a presença da vida (esses não sentem a felicidade através da resignação, da expiação de seus mais contundentes sofrimentos); estes homens não necessitam de ouvir uma música melancólica no aparelho de som para sentirem uma sensação de bem-estar. Alguns homens de disposições especulativas talvez se regozijem ao perceber nas notas musicais que todos os homens têm a mesma oportunidade de se sentirem felizes, ouvindo músicas.
Estes homens sensíveis, mais dotados para sentir a presença da vida foram humilhados, ofendidos, rechaçados, pensando e sentindo que os humilhados são sempre exaltados, e noutras oportunidades tendo-lhes o agressor oferecido a mão direita para um cumprimento, estenderam as suas e ainda esboçaram um enorme sorriso nos lábios. A terra e todos os deuses bendisseram seus gestos, e, devido a estes, sentiram a beleza e resplendor da vida, os homens nunca sabem o que dizem e pensam, merecendo o perdão e a complacência. Comigo, teria conservado os braços abaixados, as mãos rente às pernas.
Feições marcadas pelo tempo e pela tristeza, os hábitos estranhos que criaram e cristalizaram a solidão, o ressentimento contra o mundo, as roupas antiquadas, a lamentosa atitude e todo o aspecto exterior afastam-nos instintivamente do burburinho das conversas e dos colóquios.


Nesta tarde, quase princípio de noite, no limite do cansaço e de tantos desejos, reencontro alguma coisa que torna a voltar incessantemente: meu próprio rosto tranqüilo, acalentado pelo ritmo de uma música melancólica.


Manoel Ferreira Neto


(**RIO DE JANEIRO**, 30 DE MAIO DE 2018)


Comentários