//**O NADA E A ARTE LITERÁRIA - X PARTE - SILÊNCIO E A CALADA DOS DISCURSOS**// - Manoel Ferreira
Antes, todavia uma pergunta: para que incomodar-me com o silêncio e a
calada dos discursos? Não me incomodam, eles que se incomodam comigo porque me
querem des-velá-los, des-vendá-los, me querem conhecê-los, sabê-los.
O silêncio não é algo positivo. É uma simples ausência que nega qualquer
coisa. Esta contestação não contesta nada. É um tiro pela culatra. É um murro
em ponta de faca. É que, ao determinar num dis-curso negativo o silêncio da
fala, admito implicitamente o seu vigor e concedo indiretamente a sua vigência
nas línguas. O modo de uma língua falar do silêncio é não rompê-lo e, para
isso, calar-se. Contudo, noutra instância, para calar, sem fala não posso impor
silêncio.
Assim, com a Linguagem, estamos imersos numa tensão de ser e realizar-se
que não se deixa amainar mas somente aprofundar. Sempre que uma língua busca,
tenta falar de suas possibilidades extremas de ser e não ser, é levada, forçada
a recorrer ao silêncio e a calar. Pois o discurso, que, no e com o exercício,
recusa o silêncio, dele se vale para poder vir a ser o discurso que é na fala.
Nestas condições, admite-se o silêncio implicitamente no exercício, mas
se rejeita explicitamente no dito do discurso, assegurando-se que o silêncio é
um nada meramente negativo, a simples omissão ou ausência da fala.
Esquisitíssimo: uma negação torna possível uma afirmação, um negativo
possibilita um positivo! Mas como isto é possível? Será mesmo que o silêncio só
se dá porque se dá a negação, o não e o negativo? Ou será, ao contrário, que só
se pode negar, dizer não e ser negativo porque o silêncio se dá, acontece e se
impõe às falas?
Somos sempre a propriedade do silêncio, embora só de quando em vez lhe
pressintamos o vigor misterioso, sem nem saber ao certo o que nos acontece.
Assim, num grande desespero, quando todo o peso parece desaparecer da
existência e se obscurece todo sentido, surge o silêncio Numa grande esperança
do coração, quando tudo se trans-figura e parece nos rodear pela primeira vez,
sufoca-nos o silêncio, a ponto de perdermos a fala. Numa indiferença, quando
distamos igualmente da esperança e do desespero, e a monotonia das repetições
estende um vazio, onde se nos afigura dar no mesmo tanto a presença como a
ausência das coisas, impõe-se de novo o silêncio.
Desta uni-versal-idade do silêncio dá testemunho toda experiência
criadora da condição humana. O vigor do silêncio é deixar ser o nada da
realidade, em toda realização de qualquer real. A fala encontra o viço mais
originário deste deixar ser no pensamento dos pensadores, na poesia dos poetas,
na convivência dos homens. Lao-Tsé nos reconduziu ao coração de nossas linguas,
ao insinuar a vigência do silêncio em todo discurso: "Falam-se palavras e
se apalavram falas/Mas é no silêncio que mora a linguagem."
No discurso mora sempre uma esperança, a esperança de ser uma ponte
entre os dois mundos. Toda ponte realiza em seu ser um convite de travessia.
Uma atração para passar num sentido e no outro encoraja os passos das
passagens. Não se trata de levar os passageiros do tempo a mudar de mundo.
Trata-se apenas de animá-los, encorajá-los a não cessar de passar. E este
movimento incessante não pretende chegar a parte alguma. Nietzsche em
"Assim Falava Zaratustra", diz-nos: "O grande no homem é ser uma
transição e uma passagem". Por realizar-se no silêncio o homem é sempre um
viajante. Não é para chegar que se caminha pelos caminhos do silêncio nas
falas. É simplesmente pela alegria de saber o sabor da diferença entre o
"ser e o nada" na aventura criadora do sem-fim.
Na escolástica medieval, sempre se discerniu entre tempus e aeternum,
entre o tempo e a eternidade. O tempo é a duração que começa, se descobre em
sucessões e finda. É segundo o tempo que dura o ser material. A eternidade
realiza um outro modo de duração. O que é eterno, nem começa, nem tem sucessão,
nem finda. Sem começo, meio e fim, é um puro agora concentrado. É o modo de
duração do absoluto.
O homem fala por não suportar o silêncio da realidade nas realizações. O
senso comum diz: "Falo para não ficar calado" É por isso que o silêncio
constitui a diferença entre ruído e fala, entre ruído e música. Um conjunto de
sons, um conjuntos de traços, um conjunto de gestos compacto e saturado, sem as
pausas nem os interstícios do silêncio, eis o ruído, sempre opaco, maciço e
trancado para dentro e para fora. Trancado para dentro e para fora! Não há
saída.
A recompensa, por se existir na ponte do tempo entre o silêncio e a
fala, é avançar sempre e nunca parar. Referimo-nos na Parte anterior a este
Capítulo, Capítulo XV, que ninguém tem a verdade, a verdade não é ab-soluta:
ela se faz, re-faz, cria-se, recria-se, inventa-se, re-inventa-se no tempo;
então é estar sempre em busca da Verdade ao longo do tempo. Ec-stir é a
preregrinação do silêncio nas falas das realizções de um tempo originário. Não
há duvidar, sempre temos uma meta, sempre estamos no tempo, sempre seguimos uma
dirção. Mas, porque está em jogo o "ser e o nada", cada passo de
nossa passagem pela ponte dos mundos atinge a meta, se dá no tempo e mantém a
direção. é a própria caminhada que constitui a meta, é o próprio caminho que se
faz direção, é o proprio limite que instala o tempo.
Existência, caminho e ponte tornam, no silêncio, uma mesma unidade, a
unidade da diferença entre realidade e realização. Trata-se de uma unidade na
diferença porque não pode ser ou acontecer nem uma existência sozinha, nem um
caminho único, nem uma ponte só. Cada existência co-existe na construção de sua
ponte e na caminhada de seu caminho. Se fosse possível uma existência única,
não haveria silêncio na fala das realizações nem fidelidade nas caminhdas das
diferenças. A diferença das identificações é a coisa mais importante no
silêncio da fala.
Na perspectiva da lingua, todo pensamento é um texto. Um texto é um
sistema de signos em que alguns sempre de novo recorrem numa cadência regular.
Pela regularidade os signos recursivos parecem desempenhar uma função
hipotática e por isso mesmo se nos afiguram palavras-chave de todo o sistema.
Uma leitura poética reuncia de bom grando a "explicar" as
poesias. Espera apenas in-troduzir nas condições possíves de um encontro
originário com a trans-cendência de seu pensamento. Neste encontro a densidade
da palavra poética nos leva a superar o desnível e dualidade entre ouvido
externo e ouvido interno. A cada passo da passagem desta leitura fazemos sempre
a experiência do silêncio da fala. Nas poesias, toda palavra só fala por já não
poder calar-se. Silêncio da fala não diz, porém, ausência de palavras. Ao
contrário, diz vigência, tanto no falar como no calar, da diferença essencial
entre lingua e Linguagem. Ler poeticamente a poesia significa também a-colher
nas peregrinações dos versos o vigor dessa diferença. Significa propiciar o
diálogo entre a escuta do autor e a escuta do leitor a propósito da realidade
no advento de trans-formações históricas. Trans-formações históricas.
Manoel Ferreira Neto
(*RIO DE JAN EIRO*, 15 de outubro de 2016)
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