Ana Júlia Machado ESCRITORA CRÍTICA LITERÁRIA E POETISA ANALISA E INTERPRETA O AFORISMO /#O CAMINHO DO CAMPO#, MARTIN HEIDEGGER/FILOSOFIA DO VERBO DE SONHOS, MANOEL FERREIRA NETO#/ - PROJECTO #INTERCÂMBIO CULTURAL E INTELECTUAL#
A cabana de Heidegger
É uma história com uma ética muito profícua e, de bonificação, um
testemunho douto de que afinal os homens são aptos a cogitar em duas coisas ao
mesmo tempo.
Quando propensa em ter tempo livre para mim, penso em destinar parte
dele a redigir. Nada a sério, que para isso não me parece que tenha razoável
aptidão, mas para estar distraída ou para me desvendar melhor.
No entanto, quase tão relevante como ter tempo razoável para poder
redigir coisas com início, meio e fim, é considerar onde. Aliás, se discorro em
escrever, quase que a primeira coisa em que dou por mim a pensar é nos aspectos
logísticos. E, confesso, a coisa não é serena. Não quero estar isolada mas
igualmente, não desejo estar absorta. Não quero estar inacessível mas
igualmente não quero dar por mim a olhar pela janela, não quero estar limitada
ao espaço restrito do computador mas sei que, mal dou por mim, estou rodeada de
livros.
Imagino-me numa mesa grande de madeira. Nas pontas alguns livros mas, no
sítio onde escreveria, um espaço aberto. Quiçá com uma jarra com flores. Flores
frescas, aromatizadas.
já tentei redigir na mesa da sala de jantar mas não me compraz muito,
parece que estou abandonada.
Mas se coloco-me a escrever na escrivaninha da sala de televisão, sugere
que não possuo o afastamento razoável.
Se vou para a via, para a mesa que está debaixo do alpendre, ou existe
luz excessiva ou quentura ou frio ou vento ou analiso que devia varrer ou que
devia aspergir.
Como compreendo o filósofo Martin Heidegger o ter iniciado a habitar uma
pequena cabana nas montanhas da Floresta Negra, no sul da Alemanha. Ao longo
dos anos, Heidegger laborou desde aquela choupana em muitos de seus escritos
mais afamados, desde suas primeiras prosas até seus últimos e enigmáticos
textos. Vislumbramos que o ter escrito na cabana, é uma enérgica relação entre
lugar e pessoa. Ele trabalhou em muitos dos seus escritos mais famosos, desde
suas primeiras palestras, que atraiu os estudantes e suas primeiras notas de
"Ser e Tempo", até seus derradeiros e quiçá textos mais enigmáticos.
Heidegger pensou e escreveu na cabana ao longo de cinco décadas, muitas
ocasiões solitário, mencionando uma privacidade emocionante e espiritual com o
edifício, seu perímetro e a transição das estações. Para Heidegger, Todtnauberg
era muito mais do que um lugar físico. Em 1934, ele falou que para entender sua
obra filosófica, como trecho das serranias e o trabalho, ele descobriu-o com a
paisagem. Ele apreciava-se um autor sensitivo alvitrando que a filosofia
transferida em verbos através do panorama, quase sem interpostos. O filósofo
afirmou que havia um apoio arrebatador na mutação de clima do lugar, o sentido
de interioridade no prédio, a vista longínqua dos Alpes e princípio. Ele
conferiu uma filosofia "lei oculta" das montanhas. Embora alguns
hajam encontrado um valor no provincianismo de Heidegger, outros são renúncia
pungente da actuação e sua propensão ao romantismo. Ao abordar os escritos de
Heidegger - particularmente os relacionados com o “habitar" e "lugar"
é importante considerar as circunstâncias em que o filósofo foi
"transportado" para a "inerente periodicidade "das obras.
Pensar e escrever na solitária cabana de Heidegger, de seis metros por
sete, na umbrosa e compacta Floresta Negra, onde a tranquilidade e a quietude
deixam-nos antever a essência das coisas, deve ser muito diferente de escrever
em cima da mesa da casa de jantar, com a televisão ligada, uma agenda
entreaberta, um telemóvel a tocar e mil afazeres por executar, como acontece
com a maioria dos simples mortais.
Após ter feito uma pequena introdução do porquê do grande filósofo
eleger a cabana no meio do monte para escrever, tal como ele, o grande escritor
Manoel Ferreira Neto, é um sentimentalista, dando primazia à natureza e ao
amor. Neste texto belíssimo, em que se vê igualmente a escrever em uma cabana
com muito frio dá asas à sua imaginação...sonha com uma choupana, com o inverno
e volúpia...indo contra os dez mandamentos da heresia e muito bem... Que é isso
dos dez mandamentos? De a essência da cristandade expõe o que ele entende por
espírito do homem, ou o que seria um homem completo. Essa natureza está
ponderada em três energias, energia do espírito (raciocínio) que é a
luminosidade da erudição, a pujança do desejo que é a força do cunho e a energia
do coração que é a querença
É por não entender a sua natureza que surge essa dissonância ou
fraccionamento do homem com deus. Feuerbach comprova que esta dissonância
fundamental entre deus e o homem, que a doutrina atesta, é, na verdade, a
antítese entre o homem e sua própria natureza. Ou seja, deus não passa de ser o
mesmo facto que a ideia ou a natureza humana não entendida por ele. Nisto, está
a centralidade e a solução da mente de Feuerbach, para abjurar deus enquanto
ser infindo: “o ser perfeito, o Deus do sujeito é a sua inerente natureza. Deus
é a natureza do indivíduo obscuro."
Diria que neste texto o escritor Manoel Ferreira Neto deseja a
aprovação, à idealidade! Aprovação, ao devaneio! Aprovação, ao delírio! Sem as
quimeras, sem as ilusões, sem as fantasias, a existência não tem sentido e não
presenteia proveito. Eleja-se incessantemente a alienação dos encarniçamentos à
erudição da insensibilidade.
Erudição não é absolutamente ninharia, arquitectar é totalidade. Diz-se
ser um homem feliz por omitir as horas todas. Gosta de sentir as emoções e
expulsar as nostalgias que já não têm direito algum de persistir, esgarça as
locuções, uma a uma, dissemina melodia entre elas.
A nossa artista plástica, Graça Fontis, tem que dar asas à imaginação
para terminar a cabana... Até porque vai necessitar de muitos retoques.o
inverno leva a alguns estragos... Sim, porque o aconchego estraga as paredes.
camas... Enfim!
Ana Júlia Machado
#O CAMINHO DO CAMPO#, MARTIN HEIDEGGER/FILOSOFIA DO VERBO DE SONHOS,
MANOEL FERREIRA NETO
Sonhar é acordar-se para dentro. O sonho que nascera aquando lera pela
primeira vez O CAMINHO DO CAMPO, de Martin Heidegger: escrever um texto eivado
de filosofia poética, poesia pensante, nele escrito e inscrito a minha
filosofia. Sonho do ano de 1982. Tantas águas passaram de por baixo da ponte,
tantos caminhos trilhados à busca de realização deste sonho.
Escrevera o texto TUDO ATRÁS FICA LENDÁRIO no ano de 2003, tentando
consolidar este sonho, sentindo-me em demasia alegre e satisfeito: a poesia, a
filosofia que emergia de mim próprio. Mas algo faltava para realizá-lo in
totum. E o que faltava? Faltava o gênero. Só mesmo o Aforismo para a
trans-lucidez das idéias e pensamentos.
E, neste domingo, 11 de junho de 2017, revisitei-o com todo o carinho
para acordar-me para dentro de mim. TUDO ATRÁS FICA LENDÁRIO, título do
original escrito em 2003, não respondia pelas intenções e desejos; FILOSOFIA DO
VERBO DE SONHOS. Custou-me domingo inteiro, lendo, relendo, ornamentando aqui e
ali. Alfim pronto.
Pronto, pesquisei no Google o texto de Heidegger, encontrado sem
dificuldades. Então decidi publicar os dois textos para a apreciação dos
leitores.
#O CAMINHO DO CAMPO#
Por Martin Heidegger
Do portão do Jardim do Castelo estende-se até as planícies úmidas do
Ehnried. Sobre o muro, as velhas tílias do Jardim acompanham-no com o olhar,
estenda ele, pelo tempo da Páscoa, seu claro traço entre as sementeiras que
nascem e as campinas que despertam, ou desapareça, pelo Natal, atrás da
primeira colina, sob turbilhões de neve. Próximo da cruz do campo, dobra em
busca da floresta. Sauda, de passagem, à sua orla, o alto carvalho que abriga
um banco esquadrado na madeira crua.
Nele repousava, às vezes, este ou aquele texto dos grandes pensadores,
que um jovem desajeitado procurava decifrar. Quando os enigmas se acotovelavam
e nenhuma saída se anunciava, o caminho do campo oferecia boa ajuda:
silenciosamente acompanha nossos passos pela sinuosa vereda, através da
amplidão da terra agreste.
O pensamento sempre de novo às voltas com os mesmos textos ou com seus
próprios problemas, retorna à vereda que o caminho estira através da campina.
Sob os pés, ele permanece tão próximo daquele que pensa quanto do camponês que
de madrugada caminha para a ceifa.
Mais freqüente com o correr dos anos, o carvalho à beira do caminho leva
a lembrança aos jogos da infência e às primeiras escolhas. Quando, às vezes, no
coração da floresta tombava um carvalho sob os golpes do machado, meu pai logo
partia, atravessando a mataria e as clareiras ensolaradas, à procura do estéreo
de madeira destinado à sua oficina. Era lá que trabalhava solícito e
concentrado, os intervalos de sua ocupação junto ao relógio do campanário e aos
sinos, que, uns e outros, mantêm relação própria com o tempo e a temporalidade.
Os meninos, porém, recortavam seus navios na casca do carvalho.
Equipados de banco para o remador e de timão, flutuavam os barcos no Mettenbach
ou no lago da escola. Nesses folguedos, as grandes travessias atingiam
facilmente seu termo e facilmente recobravam o porto. A dimensão de seu sonho
era protegida por um halo apenas discernível, pairando sobre todas as coisas. O
espaço aberto era-lhe limitado pelos olhos e pelas mãos da mãe. Tudo se passava
como se sua discreta solicitude velasse sobre todos os seres. Essas travessias
de brinquedo nada podiam saber das expedições em cujo curso todas as margens
ficam para trás. Entrementes, a consistência e o odor do carvalho começavam a
falar, já perceptivelmente, da lentidão e da constância com que a árvore
cresce. O carvalho mesmo assegurava que só semelhante crescer pode fundar o que
dura e frutifica; que crescer significa: abrir-se à amplidão dos céus, mas
também deitar raízes na obscuridade da terra; que tudo que é verdadeiro e
autêntico somente chega à maturidade se o homem for simultaneamente as duas
coisas: disponível ao apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra
que oculta e produz.
Isto o carvalho repete sempre ao caminho do campo, que diante dele corre
seguro de seu destino. O caminho recolhe aquilo que tem seu ser em torno dele;
e dá a cada um dos que o percorrem aquilo que é seu. Os mesmos campos, as
mesmas encostas da colina escoltam o caminho em cada estação, próximos dele com
proximidade sempre nova. Quer a cordilheira dos Alpes acima das florestas se
esbata no crepúsculo da tarde, quer de onde o caminho ondeia entre os outeiros
a cotovia da manhã se lance no céu de verão, que o vento leste sopre a tempestade
do lado em que jaz a aldeia natal da mãe, quer o lenhador carregue, ao cair da
noite, seu feixe de gravetos para a lareira, quer o carro da colheita se
arraste em direção ao celeiro oscilando pelos sulcos do caminho, quer apanhem
as crianças as primeiras primaveras na ourela do prado, quer passeie a neblina
ao longo do dia sua sombria massa sobre o vale, sempre e de todos os lados
fala, em torno do caminho do campo, o apelo do Mesmo.
O Simples guarda o enigma do que permanece e do que é grande. Visita os
homens inesperadamente, mas carece de longo tempo para crescer e amadurecer. O
dom que dispensa está escondido na inaparência do que é sempre o Mesmo. As
coisas que amadurescem e se demoram em torno do caminho, em sua amplitude e em
sua plenitude dão o mundo. Como diz o velho mestre Eckhart, junto a quem
aprendemos a ler e a viver, é naquilo que sua linguagem não diz que Deus é
verdadeiramente Deus.
Todavia, o apelo do caminho do campo fala apenas enquanto homens
nascidos no ar que os cerca forem capazes de ouví-lo. São servos de sua origem,
não escravos do artifício. Em vão o homem através de planejamentos procura
instaurar uma ordenação no globo terrestre, se não for disponível ao apelo do
caminho do campo. O perigo ameaça, que o homem de hoje não possa ouvir sua
linguagem. Em seu ouvido retumba o fragor das máquinas, que chega a tomar pela
voz de Deus. Assim o homem se dispersa e se torna errante. Aos desatentos o
Simples parece uniforme. A uniformidade entedia. Os entendiados só vêem
monotonia a seu redor. O Simples desvaneceu-se. Sua força silenciosa
esgotou-se.
O número dos que ainda conhecem o Simples como um bem que conquistaram,
diminui, não há dúvida, rapidamente. Esses poucos, porém, serão, em toda a
parte, os que permanecem. Graças ao tranqüilo poder do caminho do campo,
poderão sobreviver um dia às forças gigantescas da energia atômica, que o
cálculo e a sutileza do homem engendraram para com ela entravar sua própria
obra.
O apelo do caminho do campo desperta um sentido que ama o espaço livre e
que, em momento oportuno, transfigura a própria aflição na serenidade
derradeira. Esta opõe-se à desordem do trabalho pelo trabalho: procurado apenas
por si, o trabalho promove aquilo que nadifica.
Do caminho do campo ergue-se, no ar variável com as estações, uma
serenidade que sabe, e cuja face parece muitas vezes melancólica. Esta gaia
ciência é uma sagesa sutil [1]. Ninguém a obtém sem que já a possua. Os que a
têm, receberam-na do caminho do campo. Em sua senda cruzam-se a tormenta do
inverno e o dia da messe, a irrupção turbulenta da primavera e o ocaso
tranqüilo do outono; a alegria da juventude e a sabedoria da maturidade nela
surpreendem-se mutuamente. Tudo porém se insere placidamente numa única
harmonia, cujo eco o caminho do campo em seu silêncio leva de um para outro
lado.
A serenidade que sabe é uma porta abrindo para o eterno. Seus batentes
giram nos gonzos que um hábil ferreiro forjou um dia com os enigmas da
existência.
Das baixas planícies do Ehnried, o caminho retorna ao Jardim do Castelo.
Galgando a última colina, sua estreita faixa transpõe uma depressão e chega às
muralhas da cidade. Uma vaga luminosidade desce das estrelas e se espraia sobre
as coisas. Atrás do Castelo alteia-se a torre da Igreja de São Martinho.
Vagarosamente, quase hesitantes, soam as badaladas das onze horas,
desfazendo-se no ar noturno. O velho sino, em suas cordas outrora mãos de
menino se aqueciam rudemente, treme sob o martelo das horas, cuja silhueta
jocosa e sombria ninguém esquece.
Após a última batida, o silêncio ainda mais se aprofunda. Estende-se até
aqueles que foram sacrificados prematuramente em duas guerras mundiais. O
Simples torna-se ainda mais simples. O que é sempre o Mesmo desenraiza e
liberta. O apelo do caminho é agora bem claro. É a alma que fala? Fala o mundo?
Ou fala Deus?
Tudo fala da renúncia que conduz ao Mesmo. A renúncia não tira. A
renúncia dá. Dá a força inesgotável do Simples. O apelo faz-nos de novo habitar
uma distante Origem, onde a terra natal nos é devolvida.
#FILOSOFIA DO VERBO DE SONHOS#
GRAÇA FONTIS: PINTURA
Manoel Ferreira Neto: AFORISMO
A cena é de uma fazenda situada num vale, a treze quilômetros de
qualquer cidade, seja ela agradável de se viver, seja como a maioria, um
inferninho com todas as suas letras. Não é um vale muito grande, apenas três
quilômetros de extensão e dois quartos de quilômetro de largura. Sua principal
característica é que todas as famílias ali residentes formam uma comunidade
familiar, dessas que todos conhecemos e são mais ou menos interessantes. As
montanhas são montanhas reais, com aproximadamente dois a três mil pés de
altura, e a choupana é uma verdadeira choupana, não (como a de um autor de
imaginação fértil, que deseja ilustrá-la, ornamentá-la de poesia-pensante,
respirando fundo e escutando o velho e orgulhoso som do seu coração. Eu sou, eu
sou, eu sou) uma choupana com garagem para dois carros de passeio.
Deixemos que ela seja uma choupana azul, re-coberta de trepadeiras
floridas, assim escolhidas por ter uma sucessão de flores em suas paredes, que
se incrustam pelas janelas durante todos os meses da primavera, verão e outono
– começando pelas rosas de maio e terminando com jasmins de setembro. Façamos,
contudo, que não seja primavera, nem verão e nem outono – mas inverno, e do mais
severo e radical. Esse é um dos principais pontos na ciência da paz e da
tranquilidade, na filosofia do verbo de sonhos da volúpia e da liberdade. E
fico sobremaneira surpreso – atrás da surpresa não há senão a surpresa a
surpreender-se a si própria – ao ver as pessoas não se aperceberem disso e
considerarem motivo de exaltação e júbilo, de alegria e excitação, de
contentamento e exultação, quando o inverno se vai, ou, quando estiver se
aproximando, esperar que não seja tão severo, apenas um friozinho agradável
para despertar um sono mais tranquilo, eivado de a-nunciações de verdades
outras que ampliam a visão onírica do sonho, a alimentação mais saudável e
gostosa. Eu, ao revés disso, peço todos os anos que caia geada, tempestades que
os céus possam nos oferecer. Certamente, todos conhecem o inusitado prazer e
satisfação de uma lareira no inverno, velas às cinco horas da tarde,
acompanhadas de um chá com pães de queijo, quentes tapetes, uma bela mão para
servi-lo, janelas fechadas, as cortinas caindo em amplos drapeados sobre o
chão, enquanto o vento e a chuva estão enfurecidos lá fora...
A vida passada misturou-se-me com a futura – há uma conversa múltipla e
ambígua, e qualquer coisa indivisível que a atravessa em zigue-zague e é a
minha voz. E houve no meio do salão de fumo, na choupana, um ruído, onde, aos
meus ouvidos, acabara a partida de paciência (e, de repente, a vida fica muito
mais extensa, tão extensa que tudo atrás fica lendário. Lendário?! É um termo
estúpido).
Todos estes detalhes são de uma noite de inverno, numa choupana, numa
fazenda situada no vale, que deve ser familiar a todos quantos nasceram em
regiões altas. É evidente que muitas destas ternuras, delicadezas, como os
sorvetes tomados por uma criança, pedem uma temperatura muito baixa para serem
produzidas: existem frutas que não podem amadurecer sem uma tempestade. Até me
dou muito bem com a chuva, desde que chova a cântaros, pois alguma parte de
minha natureza faz com que eu tenha necessidade disso, do contrário sinto-me
enfastiado, uma ojeriza sem qualquer medida e peso, sinto-me enganado,
tripudiado: já que serei obrigado a gastar dinheiro no inverno, com carvão,
velas e muitos outros artigos que faltam até mesmo a um cavalheiro, quero pelo
menos que seja um bom inverno. Quero um inverno londrino para os meus bolsos,
ou um russo, um carioca, onde cada homem divide com o vento norte a propriedade
de suas orelhas. Em verdade, sou tão epicureu nessa questão que não consigo
saborear plenamente uma noite de inverno se já passou há muito a noite de São
João – a noite de São João é a mais longa do ano – e o tempo começa a degenerar
a caminho das aparências da primavera. Não, o inverno deveria estar separado,
por densas paredes de noites escuras, de toda luz e brilho do sol. Das últimas
semanas de setembro, precisamente a semana de 25 em diante, até o dia de Natal,
assim é a estação da alegria e da satisfação. Pois o chá, seja em que estação
for, apesar de ridicularizado por aqueles cuja sensibilidade é naturalmente
grosseira, ou se tornaram assim por beberem vinho e não serem sensíveis a um
estimulante tão refinado, será sempre a bebida do intelectual.
Não há qualquer necessidade de sentir-me confuso, perder a cabeça,
sentir-me solitário, aliás, sou homem feliz por esquecer as horas todas. Acalmo-me,
bebo um copo d´água, bebo-o lentamente, aprendo a respirar, a dominar as
emoções, a alumbrar as dimensões dos sentimentos. Sento-me por um segundo,
olho, ao redor, a serra das águias através da janela, expulso a nostalgia, que
já não tem direito algum de persistir, desfio as palavras, uma a uma, semeio
música entre elas. Com a terra à sola dos pés, eu, o rebelde que se recusa a
ser reduzido à condição de alienado, resolvo os problemas cotidianos e, depois
de tudo, contemplo, do alto, as serras, que conheço desde o chão até os menores
detalhes. Sento-me perto das estrelas e estendo os braços como se pudesse
tocá-las. Miro o céu, de um lado ao outro, de uma nuvem à outra, com o olhar
repleto de luz, o corpo relaxado, a cabeça leve. Salmodio preces que na verdade
são pedidos precisos, destinados a facilitar o acerto de uma desavença ou a
dispensar um pouco mais de felicidade ou riqueza a algum homem necessitado.
Aqui, ignoro a própria santidade que não evangeliza, sim proscreve com os dez
mandamentos da heresia. Minha felicidade é tão simples. Não sofro muito com
minha condição.
Posso imaginar uma choupana com janelas abertas para um campo a perder
de vista, um jardim florido, para um horizonte acolhedor, para casas onde a
felicidade seja constante, ou pelo menos haja a serenidade dos que sentem
orgulho de si mesmos, os que se ocupam em perseverar no melhor de si.
Paro de sonhar acordado. Jogo as palavras nas dobras de meu diário e
depois fecho. O papel fica impregnado do cheiro de incenso. Morte ao cheiro de
incenso, que queimo tanto nas festividades quanto nos funerais. A morte finge
enviar-me para bem longe dentro de mim mesmo, mas, se me faço vislumbrar
novamente os dias iluminados da vida, é para melhor poder cobrir-me de terra e
trevas.
Mas agora, para afastar-me das descrições longas demais, apresentarei um
pintor e lhe darei instruções para que acabe o quadro que comecei a pintar. Os
pintores não gostam de choupanas azuis, a não ser que estejam sobremaneira
gastas pelo passar do tempo; mas, como o leitor já sabe que estamos numa noite
de inverno, os serviços do pintor serão necessários para o interior da
choupana.
(**RIO DE JANEIRO**, 11 DE JUNHO DE 2017)
(#RIODEJANEIRO#, 18 DE JUNHO DE 2018)
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