NÔMADES ALIAMBAS DE ESPERANÇAS - Manoel Ferreira
Retiro-me para a sala interior e ponho-me a tricotar uma meia já
começada, com movimentos nervosos e irregulares - na infância, comecei de
aprender a tricotear, mas abandonei a arte. Como os pontos saem desiguais,
largo o trabalho e ponho-me a andar de um lado para o outro. Paro defronte à
moldura suspensa na parede, de um velho membro da família, cujas cores
desbotadas do retrato pelos anos nunca me pareceram tão vívidas, nem as feições
tão expressivas. Enquanto o contorno físico desaparece, o caráter do original
sobressai numa espécie de relevo espiritual. Nota-se este efeito em pinturas de
data antiga. Adquirem um aspecto que o artista nunca ousaria emprestar ao
original como sua expressão característica, mas que logo se reconhece ser o
reflexo da verdadeira alma humana.
A profunda concepção que tem o pintor da alma do modelo aparece quando
as cores superficiais já estão semi-apagadas pelo tempo.
Tremo ao encarar o retrato. Meu temor hereditário me impede de julgar o
caráter do antepassado como a percepção da verdade me compele. Contudo,
continuo a olhá-lo, porque a fisionomia do retrato me facilita o estudo e a
compreensão do rosto.
A afeição e a triste recordação salientam os contornos. Suave, doce,
contemplativo, lábios polpudos e vermelhos, entreabertos num meio sorriso de
que os olhos parecem ser mensageiros pelo brilho das pupilas.
Na mocidade fora considerado como indivíduo desprovido de quaisquer
ambições. Fora culpado disso por nunca desejar o sucesso ambicionado pelos
outros homens e só tomar, no intercâmbio da vida, a parte humilde e modesta que
cabe aos deficientes. Agora, depois de velho, seja porque a experiência me
tenha esclarecido, ou porque o cérebro decadente não possa avaliar bem o
próprio discernimento, tenho pretensões a grandes sabedorias. Realmente, gozo
deste crédito. Às vezes, revelo tendências poéticas. São as flores e lilases do
cérebro que dão encanto especial a tudo o que haja de comum e vulgar na vida.
Acho que há algo no aspecto e no tom do venerável íntimo da família ora
representado no retrato, o que resta dele. Fixo então os olhos no seu rosto com
interesse, procurando descobrir que secreta significação estaria nele
escondida. Homens cujos negócios atingiram uma crise muito desesperada
geralmente se mantêm de esperanças tanto mais magnificentes quanto menor o
coeficiente de elementos sólidos de que podem lançar mão.
Há enorme confusão quando o espírito foge do momento presente, seja para
o mais longínquo futuro, tornando-se o corpo guia de si próprio. É como a morte
sem o privilégio de sua tranqüilidade. É a libertação das preocupações
materiais. A vida e a realidade das emoções tornam todas as circunstâncias
imateriais fantasmas de um cochilo semi-inconsciente. Nunca imagino que
intolerável espaço de tempo se arraste entre o crepúsculo e a alvorada e que
seja tão tedioso nada ter que fazer. O melhor seria deitar-me resignado, deixar
que a vida, com suas fadigas e contrariedades, maltrate meu corpo prostrado.
A luxúria sórdida e feia das gigantescas ervas que crescem no terreno
baldio frente a casa, a pesada projeção que lança sombra sobre o andar térreo,
o carcomido portal, nenhuma destas coisas pertence à minha esfera. Porém, o
raio de sol que quando incide sobre um lugar tristonho logo cria uma atmosfera
própria para si, assim a minha presença parece também natural.
Se imagino os retratos de pessoas íntimas, em molduras, suspensas na
parede, a maioria deles parecem grosseiros, mas creio que a razão é serem assim
os originais. Na luz do sol e na claridade do céu, há um maravilhoso e profundo
conhecimento. Pensa-se que só retratam a superfície, mas fazem sobressair o
caráter perpétuo com uma exatidão que nenhum pintor poderia ter. Na minha
humilde arte de observar e contemplar este retrato de íntimo, pelo menos, não
há lisonjas.
Os olhos austeros têm-me perseguido durante todo o tempo. É o
antepassado puritano que está pendurado na parede de minha sala de visitas. Com
certeza, quem fizera o retrato arranjara um jeito de copiar o rosto sem o
cavanhaque grisalho e a capa de veludo preto e vesti-lo com um casaco moderno e
gravata de cetim.
Verei outras diferenças se o examinar minuciosamente. Posso assegurar
que é um rosto antigo. O original, no entanto, adota para o público e mesmo
para os mais íntimos amigos uma fisionomia agradável, que traduz benevolência,
coração aberto e saudável bom-humor.
Aqui está o homem, dissimulado, sutil, duro, imperioso e frio como o
gelo. Veja estes olhos! Gostaria de estar à sua mercê? E esta boca! Poderia
sorrir alguma vez? Nada é mais curioso do que a discrepância entre os retratos
que vão ser gravados e os esboços feitos a lápis, que correm de mão em mão, nas
costas do original.
A tradição afirma que o velho puritano fora muito avarento. Também o
juiz que fora tinha essa fama. O ancestral revestira-se duma severa espécie de
bondade, uma rudeza de palavras e maneiras que muitos tomavam como a genuína
bondade que se dimanava através de um caráter másculo. O puritano caíra em
certas transgressões a que os homens da sua envergadura estão expostos até
expurgar as impurezas.
Ajunto ainda que o puritano fora intrépido, imperioso, inflexível,
astucioso; seus propósitos eram arrojados e os seguia com perseverança que não
conhecia repouso, nem consciência, pisando os fracos quando necessário e
esforçando-se até por dormir os fortes.
Manoel Ferreira Neto.
(19 de maio de 2016)
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