//**OSSOS SEM CARNE**// - Manoel Ferreira
Disseram-me,
satisfeito, alegre, sentindo-se pomposo e egrégio, inteligência sem precedentes
no logus do conhecimento, sensibilidade sem igual no cerne da espiritualidade,
percepção sem eiras e beiras, a intelectualidade encarnada, trans-encarnada,
des-encarnada, a carne completa os ossos, vice versa, são complementos. Estive
por quase dizer: "Você está desperdiçada neste mundo. Ulala..."
Ao
de imediato dessa fala, devendo ressaaltar e sublinhar sensibilidade neste naipe, o coringa do
baralho, carece de presença no meio das coisas e dos objetos, prescinde no
mundo dos homens, perguntou-me qual seria a serventia dos ossos sem a carne.
Silenciei-me.
Emudeci. Por quase enfiei o meu rabinho de estimação no meio das pernas e sai
galopando, o interesse era ir muito além do inferno, sempre olhando para trás
para ver se a egrégia e pomposa pessoa não estaria no meu encalço. Cogitar era
preciso, cogitação não do ergo um, mas a de espremer os miolos, como se faz com
o paninho de prato após enxugar a pia de cozinha, água e o espremer, depois
colocar devidamente dobrado na beira da pia, a estética da limpeza. Estou
aprendendo todos os detalhes e segredos de uma limpeza de casa e cozinha -
minha mulher, namorada, amante, companheira é empregada doméstica. Noutras
palavras, o cogitar sobre se os ossos tem alguma serventia sem a carne ira
dar-me árduo trabalho, quiçá o resto da vida para uma consideração das mais
vulgares e chinfrins.
Mesmo
assim desafiei-me a cogitar, tremelicar os miolos como se lhes apresentasse não
o vulta da alma penada, mas o real do esqueleto. Não daria a quem me fizera
este questionamento, indagação das prefundas do vazio seduzindo o efêmero para
o conúbio dos prazeres volúveis, assediando o eterno para a orgia do clímax
volátil, cantando a nonada rainha para as heresias dos pelos da pele que se
eriçam com as sensações instintivas das éresis da nonada solitária no baldio
dos obtusos.
Bem...
Em primeira instância, antes de quais outras, há um "baita" de
absurdo nisto de cogitar se haveria alguma serventia dos ossos sem a carne,
pois que pensei nos miolos, espremer-lhes para tecer as minhas considerações,
miologos numa caveira, só ossos, não existe, são uma massa, não há massa em
caveira. Caveira não cogita, é-lhe impossível sensacionalizar como a carne se
decompõe ao longo do tempo, deixando os ossos solitários, sozinhos no seio da
profundeza do túmulo. Assim, cogitara tecer as minhas considerações em nível,
por nível, de nível das minhas "cositas do riso e da gargalhada".
Caveira é sum sem ergo, é ergo sem sum. Miolos, nom sum sem ergo. Se passando à
porta do Campo Sagrado ou Campo Santo - Teixeirinha na sua música Churrasquinho
de mãe menciona o Campo Santo: nem com o estômago nas costas comeria desse
churrasco -, à meia noite, visse os miolos da caveira, não pensaria em coisa
inédita, pioneira, mas a minha imagem refletida na moldura do não-ser do tempo.
Enfiaria o rabio de estimação entre as pernas e me desembocava numa correria
sem limites, ultrapassando os limites do inferno, correndo, correndo, olhando
continuamente para trás no sentido de conferir e certificar-me se os miolos da
caveira me perseguiam, estavam atrás de mim. "Quero você, quero você... Me
pensa... Me pensa..." - já pensou?
Encarnei-me,
trans-encarnei-me, des-encarnei-me um cão. A importância do cão não está em seu
cardápio preferido a carne, mas os ossos que ele tritura com engenhosidade. A
mesma coisa o gato: não é o peixe a sua importância, mas as espinhas do peixe
que ele come passando a linguinha nos beiços de tanto prazer.
Sensivelmente
considerando, se o cão come um osso com carne, seus prazeres são em nível de
Zeus tomando o seu vinho, degustando a carne de uma ovelha perdida de seu
rebanho. Os ossos levam o cão ao sublime dos instintos à busca da laia dos
pedigrees.
Vangloriei-me
com esta consideração, em verdade, em verdade, estava espremendo os miolos.
Para o cão a serventia dos ossos sem a carne seria esta: a busca da laia dos
pedigrees. Passados alguns milésimos de segundos, miríades do vir-a-ser,
porvir, re-cogitei, não mais vanglória de inteligência, sensibilidade, até
mesmo de inspiração, mas no górdio das cordas vocais O Pomo de Adão a ser pedra
angular da verdade de o cão sente prazeres com a trituração dos ossos nos
dentes porque o organismo, a estrutura da sobrevivência irão absorver,
re-colher e a-colher; a origem do cão é o cão das origens. A serventia dos
ossos para o cão, de raça, sem raça, simplesmente vira-lata, são os ossos da
serventia.
Mas
a questão sui generis, ipsis litteris e verbis é a serventia dos ossos sem a
carne para os homens. Considerando-se que a fome está para a vontade de comer,
uma não existir sem a outra, podendo uma pessoa ter fome, mas não ter vontade
de comer, emagrecer é a necessidade urgente, alfim a estética corpórea é
imprescindível, mas corre o risco de o estômago mudar de lugar, ficar nas
costas... Isto de mulher pele e osso é complicado: há um ossinho na mulher na
região de seu membro sexual que é pontiagudo e machuca o homem. Aconteceu-me de
fazer amor com uma magrela e nunca mais quis saber de mulher magra, prefiro as
de muita carne...
Sem
conversa fiada para boi dormir, os ossos existem porque a carne existe. Mas que
nasceu primeiro: ossos ou carne. Nunca entrei no útero da mulher para esta de
excelência investigação. A resposta só pode ser a mesma da galinha e o ovo:
nasceram juntos.
Diria
a pessoa quem me perguntara a respeito da serventia dos ossos sem a carne:
"Pare de encher linguiça! Responda logo numa palavra só" Encher
tripinha de porco ou tripa de boi com ossos é complicado. As pontas dos ossos
vão furá-las a uma e outra. Possível seria se moesse os ossos, tornar-lhes
cinzas, mas que homem iria comer linguça de cinza de ossos. Não estou enchendo
linguça com palavras, querendo mostrar minhas perspicácia e engenhosidades,
legar a quem quer que seja o dever de comentar: "Você nos encanta com as
palavras."
A
serventia dos ossos sem a carne é de fundamentar aquilo bíblico de dizer que os
homens viemos das cinzas e para as cinzas voltaremos: só ossos podem se tornar
cinzas, metamorfosearem-se em cinzas. Qual a serventia da carne debaixo de sete
palmos? Comida para os vermes e tatus tumulares. Só um parênteses: fico
pensando nas caçadores de tatus - irem caçar tatu no cemitério depois da meia
noite.
Na
vida, na terra, sem a carne, o que são os ossos? Os ossos são o não-ser. Assim:
a carne é o ser, o verbo que se tornou carne, a carne torna-se o ser na
continuidade da vida através dos sonhos e esperanças. Os ossos são o não ser.
Sinto
muito estar instigando os neuróticos da perfeição a terem a compulsividade de
arrancar os ossos do corpo, deixando a carne apenas, mas devo lhes lembrar que
a carne é fraca, símbolo do pecado capital. A serventia dos ossos sem a carne é
a contradição, dialética da carne.
Agora:
na hora do "bem-bão" de dois corpos agarradinhos na cama, desfrutando
os prazeres do instinto, quem vai pensar, sentir a serventia dos ossos é o gozo
do não-ser.
Vou
jogar agora os ossos na cama e dormir o sono sereno, tranquilo, gostoso,
profunda da carne sem o verbo.
Manoel
Ferreira.
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