**SILÊNCIO DE ÁGUAS PÓSTUMAS E CRISTALINAS** - Manoel Ferreira
O im-previsto improvisado me fascina. O improvisado im-previsto me
extasia. A estesia im-prevista da im-provisação deixa-me aberto a outros
sentimentos, idéias, questionamentos, deixa-me de asas abertas para outros vôos
pelo in-finito das querências de amor, de paz, de serenidade, pelos horizontes
das sensações do efêmero, fugaz, eterno, pelos uni-versos da alma que tece os
seus sonhos de liberdade com os fios dos sofrimentos e dores, quando o dilúvio
das volúpias me toma por inteiro, sinto-me sendo, ouço-me-sendo, re-festelo-me,
re-costado à cadeira de balanço, dando asas ao espírito.
Dando asas ao espírito,
no vai-e-vem da cadeira de balanço,
abro valas em meus sentidos adormecidos,
sem lembranças, sem re-cordações.
Procuro imagens ocultas
no orvalho pousante na relva
de meu destino,
na neblina sobre as folhas e flores
de meus verbos
de busca e desejo,
no orvalho embaciando a vidraça
da janela de guilhotina,
de minhas heresias e proscrições.
Dando asas ao espírito,
traço uma estrada clara,
e sem desvios,
entrego-me como a flor à abelha
e a abelha à flor,
uma ponte
e no corrimão debruço-me
fico con-templando as águas do córrego
Dando asas ao espírito,
deixo minha alma
re-fletir construções,
e nos versos deste poema
escrevo palavras
falando do silêncio
da criação.
Se é um momento que me faz de trouxa, ridículo, pois que me entrego de
modo inominal, a boca saliva, os lábios se molham, aprecio bastante, amo de
paixão as re-vel-idades da trouxice, ridiculice, sou imbecil e idiota, quando
as alegrias sensaboronas se manifestam todas, os sorrisos simples se esboçam
nos traços de expressão peculiares da face; se o im-previsto me pedisse para
colocar uma coleira, puxar-me, enquanto finjo latir, dar um tipo de coice com a
pata esquerda, fá-lo-ia com orgulho e agradecimento, os estados de êxtase todos
perpassando-me os interstícios, o coração quase saindo pela boca de tantas
alegrias, felicidades, o sangue quente correndo nas veias. Mas imporia uma
condição: seria cachorrinho de madame ou de Zé Mané, ambos são tão sensíveis e
carinhosos, tão solícitos com os instintos e pedigrees, tão amáveis com os
pelos, rabos e orelhas, o rabinho balançando nos instintos de cumprimento, de
alegria e satisfação, desfazendo aquele ridículo e imbecil dizer “... meu
cachorro me sorriu latindo...”, fosse solto após um dia, todavia, de quando em
vez, recebendo mordidas carinhosas na batata da perna, iriam querer-me outras
vezes, reivindicar-me a presença para mais algumas horas de sentimentos de
amizade, isento da solidão, desolação, sentimentos de discriminação e
preconceito, da ausência de rumos e destino na vida. Nada mais divino que
cachorro mandado.
O im-previsto im-provisado demora a aparecer de novo, se é que outra vez
aparece com as características e manifestações originais – digo eu: se for
intenção comprovar isso, é só sair do Coração de Minas e dar uma volta nas
Gerais, com efeito retornará ao Coração de Minas, o sentimento de quando saíra
não será o mesmo da chegada -, e sou imagens de todos os momentos passados,
lembrança terna, se muito sensíveis, verto lágrimas, e eu já me esqueci das
situações vividas, lembram-me os sentimentos, lembra-me o estado de alma,
alegria, vivida mesmo, outorguei o direito à im-provisação im-prevista de
servir-se de mim, como cachorrinho de madame ou Zé Mané, satisfazer prazeres e
vaidades, saciar sedes quotidianas, fomes seculares e milenares que sobrevivem
em mim, apesar das travessias todas das idéias e valores, das miríades de
sensações e virtudes. Mas me entrego com mais volúpia, se me pedir o paraíso
celestial, marco entre-vista com Deus no silêncio, e re-torno para ser o
emissor, enviado para entregar em mãos o paraíso, podem os homens se
refestelarem à vontade, deitarem na rede colocada, amarrada aos troncos de
jabuticabeira e mangueira, palitando os dentes, tudo fica por conta da
divinidade divina, viverão por todo o sempre só de prazeres até enfastiarem-se
e pedirem por dores e sofrimentos, os homens clamam e re-clamam por eles, são
perfeitos néscios, sem deixarem de lembrar-se de seu par eterno, absoluto, a
preguiça e a nesciedade – quê par perfeito! Nesciedade e preguiça! Aos néscios,
ainda os deuses outorgariam alguns ímpetos; dos preguiçosos, os deuses
manteriam distância, Zeus basta nisso.
A vida oblíqua? Bem sei que há um des-encontro entre as coisas, elas
quase se chocam, há des-encontro entre os seres que se perdem uns aos outros
entre palavras que não dizem mais nada, entre os vermes que se entrelaçam
livres e espontâneos, em todas as teias diante dos olhos e dos narizes de
múltiplas formas. Mas quase nos entendemos, não que o quase para completar o
absoluto tenha fracassado, tenha se ausentado, nesse leve des-encontro, nesse
quase que é a única forma de suportar a vida em cheio, pois um encontro brusco
face a face com ela, a vida, me assustaria, espaventaria os meus delicados e
generosos fios de teia de aranha, que são as dúvidas dos sonhos, que são as
inseguranças do verbo, que são os medos nos pratos da balança do juízo por vir
final. Sou de esguelha para não compromissar as perspectivas de meus olhares,
sou de soslaio para não res-ponsabilizar os pincéis no desenho da imagem, sou
de banda para não me culpar das quimeras e sorrelfas que me tergi-versam dos
medos e temores da morte e do esquecimento.
No silêncio das águas cristalinas,
Seguindo as sendas silvestres,
Sinto a profundeza com que em meu ser
A idéia da irremediável permanência
Da esperança aproxima a imagem do destino
Ao sonho do espírito do verbo e sublime,
Da fé comunga a perspectiva da sina e saga
Às utopias da alma e das conjugações do “Ser”
Absoluto e eterno.
A voz sufocada dos momentos de solidão,
dos instantes desérticos da desolação,
Como uma dor que me ameaçasse o coração,
É a imagem re-fletida na camada mais profunda
Dos caminhos misteriosos da palavra que a-nuncia
As sendas silvestres às margens de águas cristalinas,
As águas cristalinas passando livres à imagem
Das sendas silvestres.
Mergulho em todas as palavras, penetro-lhes os
Sentidos, ininteligíveis ou inconcebíveis,
Lívidos ou transparentes,
Vivo sentimentos outros, vivencio desejos outros,
Sinto querências outras dentro de única esperança
- Viver vida diferente -,
Ser diferente à luz de águas cristalinas
- meu olhar re-{s}-surge como um
Raio vindo misteriosamente do sub-terrâneo do espírito
Trans-forma perfeição
Em pétalas de versos,
Torna prosa a pureza da rosa.
No limiar do agora
Que se tem perdido para sempre,
Que se perdeu no sempre do limiar
Que no sempre perdeu o limiar,
Entre os liames do nada e do ser,
Levado pelo mais brando vento,
Pelo mais inaudível sibilo entre serras,
Respiro uma vida profunda,
Suspiro esperanças e fé íntimos,
Re-velo sentimentos delicados,
Exprimo emoções di-versas, in-versas e re-versas,
Por vezes avessas às manifestações do verbo,
Modelo-me com a facilidade de uma máscara de cera:
Tudo o que corresponde a signo interior, alegria ou tristeza,
Cólera,
Ou esse poderoso hausto de vida que parece,
Às vezes,
Inflamar-me a alma sensível
Como chama de puro entusiasmo,
Inocente êxtase,
Ingênuo prazer.
O segredo da fascinação, do amor pelas águas cristalinas,
Essa presença que vaga, que anda por entre o verbo e a carne,
Cuja aparência é a passagem das sendas silvestres
À cristalidade do ser e do sangue que percorre as veias
E que cintila ao mesmo tempo.
Escrever ao correr da mão: só nalguns instantes, embora haja tentado
escrever a vida, os esforços foram em vão; trans-cende a inspiração,
trans-cende a ec-sistência, o importante mesmo é continuar a busca, com ela
outras dimensões se re-velam, são as veredas para a compreensão. Este é um
modo, afianço haver re-fletido a respeito, observei-me naqueles momentos de
inspiração, de não haver algum vazio no uni-verso da plen-itude, nada no
horizonte do múltiplo.
Como traduzir o silêncio do encontro real entre nós dois? Entre dois
seres que se des-cobrem? Dificílimo registrar o espírito do olhar: olhei para
você, em pé a quatro passos da mesa em que me encontrava, bebendo com amigos.
Tais momentos são meus segredos, mistérios, mergulhasse profundo neles, quiçá
houvesse estilo de escrever a vida. Houve o que chamo de comunhão perfeita.
Olhou-me fixamente, sentou-se ao meu lado. Chamo isso de êxtase de felicidade:
“Encontrei o grande amor de minha vida; a busca do verbo amar verdadeiro
começaria ali, naquele momento, a verdade das letras e da vida ao seu lado
seria o auto-presente pelos esforços, lutas contínuas. Estou lúcido e pareço
que alcanço um plano mais alto de humanidade, ou da desumanidade.”
Minha história é viver. Há quem deseja escrever sua vida, uma
autobiografia, re-velar-se por inteiro aos leitores, ao mundo, a partir de suas
memórias, através de seus retalhos e pormenores reunidos, conhecer-se melhor,
superar alguns problemas, suprassumir alguns sofrimentos, resgatar alguns
sonhos que não foram real-izados. Mas escrever a vida, registrá-la na linha da
página branca, meus talentos são mui poucos, diria nenhum, se me não fosse
assumir, pensar que os leitores vão dizer com propriedade: “Se ele não tem
talento, eu sou nada, no mundo. É muito talentoso, inteligência incomum.”
Agradeço cordialmente tais palavras, fosse vaidoso ou orgulho, sentir-me-ia um
deus, mas não, eis porque a verdade minha que, aqui, registro, dons e talentos
que me foram doados têm seus limites, reconheço por ser consciente da vida e de
minha missão no mundo.
Não tenho enredo de vida. Sou inopinadamente fragmentado. Sou aos
poucos. Tenho medo mais que neurótico do fracasso, frustração, isto porque
entendo que a vida seja busca e não entrega às dificuldades, problemas e
impotências. Já me senti fracassado na vida, fracassei, tendo andado sem rumos
e perspectivas por alguns anos consecutivos, arrastei-me pelas ruas e avenidas,
perdido, confuso, mas é de índole biológica, duas pessoas biológicas já
faleceram, fracassadas, outros seguem os mesmos passos, mas em mim, aos olhares
dos inimigos que se sentiam felizes e alegres, dos amigos e conhecidos que
sentiam pena e comiseração de minhas misérias, nas minhas íntimas pré-fundas, a
esperança de superação nunca se silenciou, lutei muito, dei minhas pernadas e
coices, superei os fracassos, a ojeriza do mesmo é mais neurótica que a do
fracasso. Que o fracasso me aniquile, quero a glória de levantar-me, dar a
volta por cima, seguir a jornada, e por isso dis-ponho-me a entregar a vida,
custando o que custar.
Minha fresca e suave vontade é a tessitura mesma da vida. Se não a quero
em formas di-versas, procuro encontro, quem o sabe, é desencontro. In-verso de
minha poesia, re-verso de minha prosa, ad-verso dos meus versos, um dia meu,
outro dia... Não sei de quem... Muitas noites de alguém. Poucos segundos de
mim. A natureza dos seres e das coisas – é Deus? Não o sei dizer, muito embora
o sangue cristão que me corre nas veias diga-me de modo sincero, sério que o
novo homem será o deus-homem, o deus-homem será a salvação das hipocrisias e
farsas que habitam a natureza humana, que são os pecados e as arbitrariedades
da vida, como a escravidão fora pecado ao ser do homem.
Nas minhas noites de insônia, mesmo naquelas em que acordo altas horas
da manhã com uma idéia, inspiração, e, se não vou cuidar de escrever, fico
ensandecido, inquieto, angustiado, idéias e pensamentos se debatem nas chamas
da lareira. O que se chama de bela paisagem não me causa senão tédio, e dos
bravos, posso afiançar. Gosto, aprecio, amo de paixão, é das paisagens de terra
esturricada e seca, sertão puro e singular, com árvores contorcidas e montanhas
feitas de rocha e com uma luz alva e suspensa. Ali, sim, é que a beleza está –
é dela que tenho sede, mais que copos e copos com água para saciá-la serão
precisos, e não serão suficientes, deixarão o que desejar.
Pudesse registrar a vida, cuidaria com esmero, bastante perspicácia,
para não incorrer na sátira, humor negro, sarcasmo, que correm nas veias, não
vendo jamais um modo de amenizar-lhes, de dar-lhes um paliativo; outra
preocupação de cuidado e perspicácia seria a dubiedade, ambigüidade, jogo de
palavras, não há como superar-lhes ou suprassumir-lhes, estão inscritos no
íntimo desde a concepção, assim encontro o verso verdadeiro, a verdade que
busco em estado original e puro; trabalho eminentemente limpo, transparente.
Tenho ímpetos ardentes de modificar, não ser mais quem sou, ser outro
diferente. Não diria não haver tentado, fi-lo inúmeras vezes, adquiri outros horizontes,
multipliquei-me, não, o estilo não me é possível.
Creio que, lendo estas páginas, iria o leitor se assustar em dizendo
assim: re-velo tédio, insatisfação. Não é preciso sentir a dúvida insofismável,
tenho consciência disto. Inúmeras vezes defendi a unhas e dentes a
autenticidade, quem não a vive nas letras não pode se considerar homem de
letras. Ainda reafirmo esta posição, que procuro sempre seguir, um lema
insubstituível. Mas queria escrever a vida, não posso fazê-lo porque o estilo
de minhas letras não pode abarcar esta profundidade, em verdade, ninguém
conseguiu, a tentativa de encontro, a esperança dele continuará por todos os
séculos – sinto, por vezes, que isso de letras jamais me colocará em mãos o que
minha alma anseia, tem urgência de atingir e alcançar, meu espírito deseja,
fecharei a cortina da vida carente, mesmo que alguém a abra para que sinta eu o
brilho dos raios solares, a esplend-idade do uni-verso e infinito, a angústia e
tristeza serão as minhas companheiras eternas, impossível abdicar-me delas,
seria o mesmo de ab-dicar-me de quem nasci para ser.
Não me sinto infeliz com esse limite: o estilo não re-vela a vida,
re-vela o homem em suas experiências, vivências contingentes e espirituais, há
sim estilo adequado à vida, mas ninguém inda o viveu. Sinto-me em busca de algo
impossível. Contudo, pude descobrir a sátira, a crônica satírica, os versos,
tudo isto, graças às buscas do estilo que revele a vida. Há muito a descobrir,
outros resultados ad-virão, outras conquistas hão-de ser, e não posso
re-clamar. Ser autêntico nas letras não é fácil, há centenas de milhares de
caminhos de fuga e de mentira, são anos e anos de entrega absoluta para sentir
que se está trilhando com dignidade e verdade os caminhos da busca espiritual e
sensível, poucos conseguem e se sentem real-izados.
Orgulho-me de sempre pressentir mudança de tempo – há coisa no ar -, o
corpo avisa que virá algo novo e eu me alvoroço todo, jamais me acostumei ao
calor, e sinto que é tempo de me agasalhar com malha quente e suave,
entregar-me às simplicidades do questionamento e das indagações. Sou tão
misterioso, que no meu mistério habita o inolvidável da vida, o indevassável
dos mistérios e enigmas, o ininteligível das idéias e das sensações, das
fantasias e dos instintos ávidos de performances. Nestas circunstâncias, a Vida
não se me re-vela, não posso escrevê-la, e ainda existe nas veias o sangue do
risível e engraçado, do humor. Aparentemente, nada tenho de singular, não me
preocuparia com isto, a aparência não me diz nada, o que lhe respeita não me
interessa. O nariz adunco me incomoda, não que me sinta feio ou coisa parecida,
gostaria que fosse aquilino. Só isto.
Viver a vida é mais um recordar-se dela do que um viver direto, reto. A
vida oblíqua é íntima. Parece uma convalescença macia de algo que, no entanto,
poderia haver sido ininteligível. Convalescença de um prazer... de um prazer
frívolo? Não sei o que diga: creio de modo ímpio, e não me questionem os doutos
dessa impiedade, quero apenas enfatizar o modo, mas o termo melhor é frígido,
comunga mais com a idéia que venho desenvolvendo para expressar a minha
ausência de talento para escrever a vida. Só para iniciados, a quem ainda a
pena não revelou seus limites, vive nas nuvens do orgulho e da lisonja, das
saltitâncias do sucesso e dos rebolados da fama, a vida se torna fragilmente
verdadeira. Será que não sei mais do que estou falando, o que digo, perdi-me
nos veios dos sentidos, agora é escrever sem metas e diretrizes, sem propósitos
e campos do caminho, deixar a pena deslizar na linha sem eiras e beiras, ler
quando terminar e intuir o que provavelmente intuí, o que provavelmente quis
significar. Quê hipocrisia deslavada acabo de registrar! Terminado o escrito,
jamais releio, a jornada das letras continua o itinerário. Tudo se me escapou
sem eu sentir. Escapou-me a razão que direciona os interesses e razões, as
intenções e propósitos. Escapou-me a sensibilidade que mostra os sentimentos
que me habitam do vivido e do desejado viver. No rosto in-concreto do sonho, na
face i-(r)-real da utopia, varando o espaço da mente, sento-me na quina de um
pensamento destemido, ousado, noutra palavra mais condizente, valente. Aniquilo
a transitória, mas poderosa matéria, e detenho-me pena! Não é a mesma coisa
sincera, séria, descrever com sangue os sentimentos que escrevo com tinta, a
alma que delineio com a acuidade da caligrafia, o espírito que ins-piro além do
bem e do mal, além das intempestivas considerações do quotidiano e de suas
sinuosidades da verdade e da in-verdade.
Faltou-me a inspiração, faltou-me a intuição, faltou-me a percepção para
delinear o estilo e linguagem, para burilar as idéias latentes e manifestas.
Sei sim, sei do que estou falando: a pena, a partir do instante em que
registra, a palavra esboçada pela alma, sentida pelo espírito, sofrimentos e
dores, problemas e conflitos, não deixam certezas, deixam questionamentos os
mais profundos e perspicazes, responder-lhes dura toda a eternidade e algumas
miríades de séculos e milênios além – mas com muito cuidado porque senão por um
triz nada sei mais. Alimento-me delicadamente, finesse jamais havida na
história dos princípios e exceções, do cotidiano trivial e tomo café na cozinha
do segundo andar, ao lado de minha doce-companheira-e-amiga, de meu
amor-singular-e-único, de quem se entregou inteira para a minha felicidade,
real-ização de meus sonhos e utopias, e eu, amando-a e agradecendo-a, teço
essas linhas em sua homenagem, uma saudação de meu ser no limiar da aurora que
parece suave e tranqüila porque chovera a cântaros por toda a madrugada, porque
é doce e sensível ouvir a chuva caindo, os pingos dágua deslizarem no vidro da
janela, e os meus olhos deslizarem neles numa eterna nostalgia e melancolia,
numa imortal ambigüidade entre a realidade e os sonhos do ser, entre as
quimeras, ilusões, fantasias e os verbos do encontro e des-encontro.
Estou aflito, os olhos piscam continuamente, sem intervalo. Mudei o
cinzeiro de lugar, da esquerda para a direita, nos últimos instantes, várias
vezes, acendi outro cigarro na guimba do outro. Sou capaz de dizer “agora, é o
fim”. Mais uma tentativa fracassada de escrever a vida, de torná-la o absoluto
do tempo. Mesmo para os descrentes, há o instante do desespero que é divino: se
tanto amor dentro de mim recebi, se tantas letras pude traçar nestes anos
felizes e realizados ao lado de minha doce-companheira-e-esposa, e ainda
continuo inquieto, é porque preciso re-velar mais e mais este amor.
A voz cai no abismo
de teu silêncio,
as palavras elevam-se no deserto
de tuas necessidades de viver
o ser dos sonhos
e dos desejos.
Tu me lês,
em silêncio.
Nesse ilimitado campo de trevas,
o desejo de luzes ainda mais forte
para que a claridade
seja esplendorosa
aos nossos olhos,
então não apenas desdobrar
as asas e voar,
mas ser a Vida.
Vamos rasgar fronteiras,
atravessar rios e oceanos,
entrar nas amplidões,
nas multiplicidades um do outro,
e desfazer a solidão
de duas procuras,
de duas buscas,
de duas vontades e desejos.
Tenho uma vertigem. Sinal de baixa de pressão, resta-me tomar uma xícara
de café. Tenho um pouco de medo. Inteligível: pode ser a-núncio de enfarto
fulminante. A que levará minha liberdade? O que estou lhe escrevendo? Isso me
deixa solitário, circunspecto, não negaria o prazer latente porque sou habitado,
habita-me em toda a plen-itude da alma, sublim-idade do espírito: os redutos da
solidão, circunspecção são elixires inomináveis para a vida, não só quando da
criação, busca dos verbos, mas na práxis cotidiana. Regozijo-me, louvo a Deus,
agradeço aos céus amar mesmo, não é sonho fácil de ser concretizado, a vida
torna-se entrega por inteiro, mas a-nunciando-se ao longo dos passos e traços,
não há mais felicidade, as verdades são efêmeras, a busca de novas imagens e
panoramas de outros sonhos se faz contínua, as veredas do amor são centenas de
milhares, o prazer prolonga-se, perpetua-se.
Solidão e circunspecção. Elixir das perdas, sendas perdidas, elixir das
dúvidas e incertezas, se tomado como o espírito envia suas necessidades e
carências, outros verbos, outros amores.
Desculpem-me os leitores, não os consultei, se em verdade estou sendo
transparente com os sentimentos, idéias e sensações por que estou sendo tomado,
enquanto traço estas linhas; se estão compreendendo com nitidez, dúvidas sobre
isto ou aquilo devem haver, sem elas não haveria possibilidade alguma de
re-flexões, desejos de entendimento, e só em leituras sucessivas, contínuas,
poderão ser descobertas as respostas ou leitmotivs para outras tentativas; a
tessitura dessas linhas traçadas com a verdade das incertezas, com as dúvidas e
inseguranças das in-verdades, com a con-templação das inconstâncias, eivadas de
medos de não estar sendo sincero, quando mostro não ser possuidor de talento
para escrever a vida, em verdade fundamento o talento latente de flexibilidade
com as palavras, em minha mão deixam-se livres, deixam-se ser tocadas e
trans-formadas, não enxergo com nitidez a vida que desejo registrar está nas
entrelinhas esboçadas, são a-nunciações, ao longo das vivências se re-velarão
trans-cendentes e espirituais, serão compreendidas o que me habita os
in-terstícios do espírito. Ainda que não o faça na sua inteireza, plen-itude,
mas as imagens deixadas nos entre das idéias e pensamentos, linguagem e estilo,
serão inter-médios, pedras de toques do que é isto, a vida.
Os cristais tilintam e faíscam. O trigo está maduro: o pão é repartido.
Mas repartido com doçura? Sempre cri que harmonizar-me, relacionar-me com o
leitor, é entregar-lhe com carinho e desejos de encontro e conquista o coração
pleno de amores e verbos, isto é eivar os verbos de espírito e “humusizar” o
espírito da carne. É re-partir isso com os homens. É importante isto saber. Não
penso assim, como o diamante que risca o éter não pensa. Brilho todo límpido.
Não tenho fome nem sede: sou. Tenho dois olhos que estão abertos. Para o nada.
Para o teto. Para as estrelas que velam, solícitas e solidárias, o ossuário da
terra.
Quero um manto tecido com fios de ouro solar. O sol é a tensão mística
do silêncio. Nas minhas viagens aos mistérios, dúvidas, incertezas, ao
inaudito, inolvidável, ouço as vozes carnívoras, os sonhos verbais, que
lamentam tempos imemoriais: e tenho pesadelos indecentes, indecorosos, imorais
sob ventos doentios, que oscilam, tremem e tremelicam, que elevam as folhas e
pétalas secas, fazem-nas pairar no vazio, que fazem cair o verde, o viscoso, a
vida delas, ao longo do deserto seco. Sinto-me encantado, seduzido, arrebatado
por vozes furtivas, efêmeras, na realidade passageira, o eufemismo não está
sendo chamado à vida, a verdade sonha o espiritual. As letras quase
ininteligíveis, os sentidos quase indescritíveis, as significações – por que
não digo os significantes também, não o sei – falam de como conceber, inspirar
e escrever sobre o elixir como se alimentasse as luzes de outras querências.
Atrás do ser – mais atrás ainda – está o teto que trans-cendia através das
idéias, pensamentos e sensações, e aí conquistei o desejo, entregou-se ele a
mim, que eu olhava com olhos de lince, com intenções de serpente maligna, de
cobra ferina. De repente, verto algumas lágrimas. Aprofundei-me em mim e
encontrei que eu quero a vida, e o sentido oculto, resultado e conseqüência de
minhas ausências e limites de escrever a vida, tem uma intensidade que tem luz.
É a luz secreta ou as trevas de passado remoto, meu rito é purificador de
imagens e de espírito, de forças sensíveis e transcendentes.
Estou tão amplo, tão pleno. Sou coerente: meu cântico de vida e verbos é
profundo. Há melodia de amor e eu nada posso senão nascer, descobrir o que é
nascer e estar dis-ponível para a Vida em todas as suas dimensões. Tudo atrás
do ser, tudo atrás do pensamento e idéias, tudo atrás das intuições,
percepções, inspirações. Se tudo isso existe, então, eu sou, sou-me.
Não conto os fatos de minha vida. Fatos são objetos, estes não me dizem
quaisquer respeito e considerações, em mim a subjetividade, em mim o subjetivo,
eis as minhas veredas; se não encontrarem a sim-patia do leitor, encontrará a
sua simpatia por buscar caminhos, distantes de minhas verdades.
Manoel Ferreira.
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