**ÉRESIS E IRÍADAS DO SILÊNCIO** - Manoel Ferreira
Concuspicentes bordas de erosias sem o pretérito das dores e
sofrimentos, sem os gerúndios de gozos e prazeres fáceis, sem o olhar
tergi-versado de íris e retinas esplendidas à solidão das estrelas, compl-etude
da lua, e os querubins bailam na noite sombria.
Augúrio apaziguado, vagas plácidas, medos entupigaitados de nuvens
claras e escuras embatem na face das casas, deslizam pelos muros desenhados de
lodo, pichados de letras mortas, escorrem largamente pela terra. O meu
pensamento fosforece. Minhas idéias reluzem-se. Evola-se no ar umedecido dos
pingos de chuva que caíram por instantes, suspende-se o ergo non sum. Estou nu
por dentro, vê-se nitidamente a minha intimidade tímida, envergonhada, e a
inocência é aí, agora ainda, por sempre, na eternidade do instante, e a
ingenuidade é lá, por algum tempo, na etern-itude do momento.
Concuspicentes fronteiras de heresias sem o subjuntivo das angústias e
náuseas, sem os particípios de idílios volados de volúpias vorazes, sem o
pulsar in-congruente do coração no limiar da alma em estado de voluptuosa
paixão em que as quimeras e des-ilusões do verbo in-fin-itivam o templo de
efígies proscritas de uni-versos e in-finitos lobisomens da estepe uivam as
glórias medievas do efêmero.
A lua vai alfim aparecer. A neblina alastra ao meu horizonte sem fim,
aos meus uni-versos por serem, os olhos doem-me da nitidez estéril, do nítido
nulo, da aparência frígida, da folha limpa por escrever. Timbre de prata,
flutua. As cordas da lua tremem. Passam a legenda e os anjos. Que é que isto
quer dizer? Ou nada quer dizer? Devo estar velho, a solidão ec-siste
insuportável. Ou quê por ela? De repente a vida ficou muito mais extensa. Os
olhos deambulam muito longe, a longitude da correspondência entre o horizonte e
o infinito. Tão extensos, tão longe que tudo atrás fica lendário, tudo atrás é
conto do vigário, é estória da carochinha, é piada de salão de monsenhores e
sacristãos. Respiro devagar, trago a fumaça do cigarro lentamente. Como se me
balanceasse o corpo ao ritmo sereno do universo. Noite ofegante, olho-a. Pela
janela, ao alto, sobre o negrume dos pinheiros, silencioso céu. Estendo-me na
rede, extenuado das memórias do dia, do cão que latia incansavelmente por estar
preso pela corrente, do barulho da água que enchia o tanque de lavar roupas...
Concuspicentes cancelas de estradas de metafísicos cascalhos que as
exegeses do vento sarapalham herméticos exílios pulsando de vida os cernes das
fantasias, vislumbres de pinceladas de paraíso abnegado de inquietudes do
presente, esfumado na praia do efêmero.
É no silêncio que vivo, aprenderei outra linguagem? É na solidão que
prolongo os dias, aprenderei outro estilo? Não há palavras ainda para inventar
o mundo novo. Não há sentidos ainda para revelar o outro dos sonhos, utopias,
dos verbos que hão-de ser. Estou só, horrivelmente povoado de mim. Valeu a pena
viver? Valeu a pena trilhar as estradas de poeira? Valeu a pena passear pelas
manhãs, con-templando as folhas verdes umedecidas do orvalho da noite? Matei a
curiosidade, vim ver como isto era, valeu a pena. É preciso que tudo
des-apareça para que tudo possa re-construir-se - re-construir-se através de um
"deus único", um "deus final". Não sei ainda a linguagem do
mundo que terei de re-inventar, o estilo da ec-sistência que terei de re-criar.
Astros submersos - a maior loucura do mundo se explica por certo modo de
perder esta outra cena, e o fantástico não é outra coisa senão a dissolução da
fantasia. Terra estéril, sobrevivente eu. Clamo a morte do homem, rogo o fim da
raça, anuncio a sua vinda. Choro meu de alegria, ó anjos da nova pura. Riso meu
de tristeza, ó querubins da nova inocência. Cântico dos anjos da anunciação,
dos anjos das trevas e do desastre, os sinos nos domos das igrejas, basílicas,
catedrais, bradam para o vazio do mundo. Virgindade do meu sangue, um Deus
Menino vai nascer. Os deuses nascem sobre o sepulcro dos deuses.
Concuspicentes proscrições relegando a toda a borrasca a nostalgia do
futuro na nobreza do antepassado, poesia encantada e des-lumbrada esplendendo
de raios noturnos da noite o brilho e o viço nos terrenos baldios da alma.
E um silêncio longo, feito da neblina ao longe, encobrindo a montanha,
da cidade sepultada em solidão, do cerco à volta do espaço para além, abre-me
de um abandono final - o de quem está ao pé e já nem se olha, já nem se sente,
já nem se vê. O espaço esvazia-me até ao limiar da memória, onde alastra o meu
cansaço, o afago quente de um coro, o aceno de sinais que se co-respondem como
ecos de um labirinto. Num bafo secreto afloro o que estremece sob os gestos
alfim apaziguados.
Manoel Ferreira Neto.
(14 de maio de 2016)
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