**SERRANIA DAS NEBLINAS ETERNAS** Manoel Ferreira (Título criado em 15.04.2004. Revisado em 21.05.2016)
Não sinto o medo próprio de meu caráter meigo e reto, ao me encontrar em
choque com a sociedade e em contato com um acontecimento que transcende das
regras ordinárias, nem estou, como ela, pressuroso por me reintegrar na vida
quotidiana.
Minha posição atual, de momentânea felicidade, dá-me um prazer selvagem
como se colhesse uma flor de estranha beleza, desabrochada em lugar desolado,
ao sabor do vento. O segredo, enquanto assim possa ser chamado, mantém-me numa
espécie de encanto, numa solidão entre os homens, num afastamento tão completo
como o de um abismo no meio da serra.
O mundo me parece estranho, mau e hostil. O meu passado, solitário e
obscuro. O futuro, uma tristeza informe que devia modelar em formas sombrias.
Transponho o limiar da porta, trazendo esperança, calor e alegria. O momento
amargo transforma-se, logo, num momento ditoso.
O mundo deve todo o seu progresso a homens infelizes. Os felizes
confinam-se dentro de moldes antigos, retrógrados. Tenho o pressentimento de
que, daqui por diante, a minha missão será plantar sementes de outras árvores,
fazer cercas, e, talvez mesmo no tempo oportuno, construir uma casa para outra
geração, e, numa palavra, conformar-me às leis e aos costumes tranqüilos da
sociedade. Meu equilíbrio será mais poderoso do que qualquer tendência
oscilatória da minha parte.
Nesta hora tão cheia de medos e dúvidas, opera-se o milagre sem o qual
toda vida humana é um vácuo. A benção, que torna tudo verdadeiro, sagrado e
belo, desce sobre mim.
A face rígida e estranhamente branca recusa-se a desaparecer nesse
dissolvente universal. A luz torna-se cada vez mais desmaiada. É como se outro
punhado de escuridão tivesse sido espalhado pelo ar. Agora, o ambiente não é
mais cinzento, porém negro. Ainda há uma luminosidade demasiada na janela, que,
entretanto, não deverá ser tomada como uma incandescência, clarão ou vislumbre;
aliás, termo algum porque se denomina a luz servirá para o caso, senão essa
percepção duvidosa de que há uma janela.
Frente à janela, campos lavrados e prados ondulantes; mais longe, as
montanhas escuras e misteriosas, plantadas nas florestas. Além dessas,
sombrias, ainda, desenham-se outras e mais para longe, bem no alto do
horizonte, sempre bela e sempre mutável, sempre a jogar com a luz como o
diamante, ergue-se a serrania das neblinas eternas.
Devo, pois, constantemente traçar caminhos novos, não importa em que
direções. Mas é talvez por causa disso, precisamente, que tenho por vezes
desejo de escapar pela tangente, precisamente porque estou condenado a traçar
um caminho e também porque, por estúpido que seja eu, adivinho por vezes que
toda estrada leva sempre a alguma parte, e que não é a direção que importa, mas
o próprio fato de que ela me conduz para um lugar qualquer.
Receio a luz demasiado clara: por isso me resguardo de meu tempo, e do
“dia” desse tempo. Nisto é como uma sombra: mais o sol se põe, maior eu fico.
Quanto a minha “humildade”, assim como suporto o escuro, suporto também uma
certa dependência, um certo obscurecimento: mais ainda, temo ser incomodado
pelo raio, recuo ante a desproteção de uma árvore só e abandonada, na qual toda
intempérie descarrega seu mau humor.
Começo de perguntar se esta procura desvairada da pureza, do sublime, da
purificação, não vai dar, em verdade, em alguma brancura sinistra e misteriosa,
irrespirável. São agora as palavras que parecem violar uma proibição. Nivelando
esse passado ao presente num paradigma que me remisse de todos os enganos,
erros, de todos os pecados cometidos. Apagando as desilusões, reparando
preconceitos e injúrias, re-plantando alegrias e plenas realizações. Descubro a
imagem da sagração e da renúncia. Sim, de certo modo, a arte sempre se serve a
si; ignoro quando servi verdadeiramente uma Transcendência, e isto me cobriu de
orgulho e alegria. Propriamente recordo e não conto.
Ainda uma certa perspectiva de ironia em que a intenção imediata se
corrige, em que o espírito e intuição se erguem desde o próprio sentir ao
sentir de mim. De novo os homens erguem uma harmonia de sentimentos e emoções,
coroada de eternidade; de novo uma vereda sinuosa de águas subterrâneas lhes escapa
a segurança. Olho agora eu a incomodar-me com a desgraça de toda gente. Tenho
que chorar. Está aqui uma crise, sem um motivo concreto em que nele possa
escarrar, coisa que se visse com os olhos, se apalpe. Um demônio incerto surge
de fundos obscuros, e, por todo o escritório, o mistério de uma sombra.
As portas fechadas. Ergo os olhos diante de mim melancolicamente, às
vezes espiritualista, por vezes louco, nunca perdendo o domínio sobre as
impossíveis grandezas, sempre sonhando altos projetos, e sempre acordando para
fins imbecis e hipócritas. Na verdade, só o vazio pode acolher o múltiplo. Sei
bem que não serei alguém – devo-me tudo, a começar pelo vazio que cavei em mim
e ao redor, como o jogador desafortunado que espalha as cartas sobre a mesa, com
as costas da mão, - em nível do mar, em clima equatorial, os dedos se
emburguesam e o espírito se achincalha.
Ouço o canto ausente. É feito de silêncio cortado de gritos. Dentro da
lareira do silêncio, em semente ardente: a fumaça do cigarro tem sido de minha
esperança.
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