#PÉS ÀS AVESSAS DA CABEÇA ENQUANTO... ENQUANTO...# - Manoel Ferreira
Assim falava Barion Escaramouche, retornando de sua longa viagem pelo
sertão, cansado e dobrando os joelhos no lombo de seu fiel e leal amigo, o
jegue Toquinho, ainda na flor da idade e das suas capacidades, nome dado devido
ao fato inconteste de seu rabo haver sido cortado desde tenra infância, e assim
aprendeu a zurrar com afinação e musicalidade, viagem de conhecimento e
aventuranças:
“Não elogie,
Não teça encômios,
Não rasgue as sedas,
Não destile as vaidades
Do orgulho,
Lisonjas,
não dê os famosos três tapinhas mineiros no ombro
ou teça considerações cordiais
ao que você ainda não consegue compreender!
Re-flita na preservação da ecologia
Pense nas liberdades que a-nunciam
e nos costumes dos animais,
verdadeiras sementes
para o novo mundo,
para a nova vida!”,
dizia-o em versos, não é conhecido alguém quem ame tanto os versos,
especialmente os de Gregório de Matos - em noites de lua cheia, fogueira acesa,
encostado no tronco de árvore, lê Bocage -, o seu livro de cabeceira, cuidando
de perfeita e sensível declamação, recitação, imprescindível na arte de ouvir
de todos, assim assimilam com espontaneidade:
Bem-aventuradas as vacas, de chifres miúdos, razoáveis, de grande
envergadura e pontas, úberes plenos de leite, secos pela idade avançada, ainda
por darem leite, que estão na cozinha preparando a ração para o almoço, e
depois irem passear pelo pasto em companhia dos figurões, adquiridos pelo
coronel em famosos leilões;
Bem-aventurados os bois carreiros que estão no curral mastigando o
capim, enquanto ruminam as estradas percorridas, as saudades das vacas que
afiaram os seus cornos em presença dos figurões, único horário livre de suas
missões, pelas poeiras e buracos dos infinitos estradões, de seus afazeres
puxando as carroças carregadas de lenha pelas ruas de pedra pura ou asfaltadas;
Bem-aventurados os macacos que estão na galha descascando os caturrões,
gritando “hurras” e “aleluias” aos sistemas falidos de todas as nações, aos
interesses espúrios de políticos retrógrados e alucinados, às ideologias em pautas
de todos os Congressos, em projetos nas Câmaras Municipais, às súcias
camaradagens e cumplicidades em todas as delegacias;
Bem-aventurados os porcos piaus e catetes de colar de pérolas ou
diamantes, presentes dos banqueiros de grandes fortunas, deitados no chiqueiro
depois da ração misturada com a deliciosa lavagem, curtindo o calor escaldante
do verão, o toucinho largo e suculento será torresmo no meio do feijão,
salsinha, cebola, que alimentará os peões em suas jornadas;
Bem-aventurados os gambás que se deliciam no colo das madames e
primeiras-damas de espartilhos, sendo paliativos sensíveis de suas solidões de
afagos sensuais, ternuras libidinais, carinhos e toques na púbis, a tradição
ressuscitou a moda francesa do Século das Luzes, enquanto conversam lorotas
pelo celular com as amigas, entre “ais”, “aís”, “uis”, “não acredito,
verdade?”, de banquetes e passeios de charrete pelo campo, com o leque aberto e
continuamente sendo balançado para espantar os mosquitos e o calor escaldante,
a cada palavra o odor genuíno dos princípios da falta de senso e razões dos
gambás mesmos;
Bem-aventurados os urubus que, depois do banquete de jegue morto no
mata-burro da estrada, sobrevoam a montanha, pousam no alto do Pico do Itambé,
reverenciam o esplendoroso panorama de cidades nascidas nos abismos, criaturas
que nada conhecem ou intuem para além das montanhas, indivíduos que nada sabem
do futuro e do que há-de vir, e observam os lucros pomposos da nação, com a
exportação de milho e capim para alimentarem os galos e touros dos estrangeiros
burguesões, enquanto os nossos estão caindo aos pedaços de tanta secura devido
à fome divina e danada;
Bem-aventurados os ratos que comem os seus queijos suíços, guinchando de
prazer e volúpia, roubados na despensa dos políticos de futuro e imortalidade
de tanta corrupção, enquanto as esposas fazem o toalete para o jantar suntuoso
no Botequim do Alemão, vestidas a rigor e critério, as damas parisienses do
século XXIX sentiriam inveja, despeito e ciúme, mesas espalhadas no calçadão da
avenida ad-jacente à central, com as amigas e conhecidas de noitadas de prazer
e ilusões;
Bem-aventuradas as serpentes que se arrastam pelo chão, em ziguezague,
em curvas sinuosas, em aclives e declives desagradáveis, lingüinha sempre de
fora, enquanto os cavalos desembestam pelo chapadão, procurando uma caverna
para se esconderem e descansarem para a viagem do capataz levando o gado para o
abatedouro do Zé Tameirão;
Bem-aventurados os galos de todos os galinheiros, que cantam de
madrugada para saudarem a lua e as estrelas, desde a aurora ao crepúsculo
correm atrás das galinhas, comem ração com carinho preparada pela matrona do
casarão, no poleiro fazem a sesta, para fazerem a festa das famílias em pleno
calor do domingão, e no final da tarde assistirem ao Programa do Faustão;
Bem-aventurados os vira-latas de todas as ruas, avenidas, alamedas e
becos, que viram as latas, sacolões, desejando encontrar os restos de pizza à
moda do Primeiro Ministro Italiano, catupiri fresco e virgem, ingredientes de
queijo fresco e natural, azeitonas frescas e colhidas na virgindade das
auroras, das autoridades e personalidades que vivem do passado, discursam na
UNESCO sobre as vantagens do turismo sustentável, sobre os lucros suntuosos à
custa da sucatagem da história, da alienação do povão;
Bem-aventurados os tubarões que descansam na areia das praias
maravilhosas da nação, enquanto observam as gatinhas de top-less tomando água
de coco, cerveja de latinha, enquanto trocam dedos de prosa sobre conquistas
prazerosas advindas de todas as corrupções;
Bem-aventurados os leões que passeiam pela floresta, depois do suntuoso
banquete de veado, descansam na sombra de frondoso flamboyant, e sonham com
novas caças, enquanto os sapos coaxam à beira da lagoa, loucos por um furtivo
moscão;
Bem-aventuradas as cigarras que cantam desatinadamente, enquanto as
formigas trabalham para o sustento de suas vidas em pleno inverno, enquanto os
escravos da senzala vivem de chibatadas e comem os restos do patrão que só
pensa em êxtases, volúpias e diversão no bordel da Mota;
Bem-aventurados os bodes que no crepúsculo passeiam na Fonte Luminosa,
sob os olhares de todas as classes sociais, todas as laias e estirpes de
homens, desde os idôneos aos cafajestes, desde, estes, os Viminhas e
Albertinhos, desde, aqueles, os Constâncios e Müllers, prato-feito para as
colunas sociais dos tablóides sensacionalistas e amorais, para a satisfação dos
tesões e alívio das tensões;
Bem-aventurados as éguas que esperam os seus cavalos marchadores,
indumentados de sela de fina qualidade, de freio de ouro, rédeas de nylon,
rabos bem penteados, pelos bem escovados e lindíssimas ferraduras de prata
genuína, verdadeiros tesouros para as retinas e pupilas, para o desfile divino
e maravilhoso na Parada de Sete Setembro, no Largo Dom Sigaud, ao lado da Praça
Cônego Garcia, ambos considerados a nata fina das canalhices e sujeiras dos
princípios cristãos e humanos, sob as palavras lindas e culturais no
alto-falante, pronunciadas pelas autoridades e personalidades, até mesmo dos
editores-chefes dos tablóides sensacionalistas e medíocres, enquanto são elas
aplaudidas pelo rebolado estético e ético ao lado da marcha de seus
companheiros pelo povão;
Bem-aventurados os camelos que atravessam o deserto do Saara, levando os
seus donos para a feira árabe, enquanto os sábios e profetas, facas da noite,
meditam e refletem sob o caminho da humanidade em plena época de mudanças e
transformações de todos os valores e virtudes, que se vingam do futuro em pleno
tempo de violências e corrupções, em esplendoroso instante de transição;
Bem-aventurados os tatus que cavam seus próprios buracos, escondem-se
dos caçadores e seus cães amestrados, enquanto os grandes da sociedade escondem
seus rabos presos nos buracos do poder aleatório, nos cavernas da Granja do
Torto, nos buraquinhos e frestas da esperança de 50 anos em apenas cinco, nas
grimpas deixadas pela ditadura militar, espiritualmente chamada de Revolução;
Bem-aventurados os cães que aprendem a voar de helicóptero para
realizarem as tarefas que os temores, medos e incapacidades dos militares
impedem, para terem direitos inalienáveis de se alimentarem da boa e apetitosa
ração beneficiada pelos cofres públicos, para ostentarem no pescoço coleira de
ouro ad-vinda da escravidão;
Bem-aventurados os escorpiões que se matam, quando o fogo é colocado ao
seu redor, enquanto os homens de raça utilizam-se dos fogos da liberdade para
defenderem os seus interesses de luxúria e ganância, para justificarem suas
ilusões de poder e glória ad-vindos da alienação do povo e das multidões, os “meios
justificam os fins”, como já dizia Maquiavel;
Bem-aventuradas as galinhas que fogem dos galinheiros para nas calçadas
de ruas e avenidas catarem grão a grão o que lhes encherá a pança, garantirá a
tranqüilidade do sono nos paus dos poleiros, a manhã de ovos frescos para a
alimentação da família, e ainda em estilo americano o bacon para aguçar o
paladar eivado de toda a plena satisfação, durante o dia apenas o assédio dos
galos de afiados esporões;
Bem-aventurados os jacarés que se refestelam à beira dos rios, sob sol
escaldante, dormem a seren-itude dos séculos e milênios, enquanto as piranhas
aos bandos querem apenas as migalhas do colchão de boi, sentem-se satisfeitas e
realizadas, enquanto a Providência Divina não lhes alimentar com o de todos os dias
pão;
Bem-aventurados os calangos que sobem nas pedras, erguem as cabeças,
desfrutam o panorama do sertão, enquanto os jagunços subnutridos e esfomeados
comem rã assada com a digníssima cachacinha de seus garrafões de aperitivo,
pela estrada levados na sela do corrimão, momento mais que propício para a
digníssima comemoração dos macacos deixados à beira dos sem-confins e arribas
dos estradões;
Bem-aventurados os gatos que se aproveitam de suas perspicácias e
habilidades para subirem no telhado de todas as mansões e casarões, de todos os
casebres, para apreciarem a noite de estrelas brilhantes, lua cheia, para
fugirem do cão que está se coçando para lhes pegarem, enquanto o elefante se
empina apenas com o instinto da presença de um ratinho de esgoto mais que
desnutrido, enquanto o juiz, sentado na cadeira de seu escritório, luz de
abajur, reflete sobre a liberdade, absolvição de um traficante de influências
no alto escalão da política, se não o absolver será ele que será encontrado
nalgum terreno baldio com a boca cheia de formigões, e pode ainda viver longos
anos, desfrutar as felicidades todas do paraíso judicial e fiscal, enquanto o
poeta, roendo as unhas, procura por única palavra para fechar o poema de suas
desilusões amorosas, enquanto o escritor, sorriso de orelha a orelha, comemora
os elogios por haver escrito que a terra descansa no calçadão;
Bem-aventuradas as baratas que zanzam pelos corredores do poder público,
deixando as funcionárias de cabelinhos eriçados, pedindo, rogando, suplicando
demissão, ficarem livres e tranqüilas, poderem se deliciar com um sorvete
francês de baunilha, da “chaninha!” mais que resfriada, mais que congelada,
esperando a carícia da língua pontiaguda, só com muita fé e esperança
restituindo o fogo, subindo nas mesas, nas paredes, encontrando refúgio nos
tetos dos gabinetes e nos oratórios dos salões de plenário, enquanto as
andorinhas em seus devidos habitats, aqui e ali, preparam-se para a travessia
dos céus em direção à seren-itude e plen-itude dos horizontes e uni-versos, de
toda a nação e país em bando, sendo prazeres de todos os homens que andam
tensos ou descontraídos, grandes problemas na mente, memórias e lembranças,
recordações, que nem Gregor Samsa seria capaz de dizer palavras que impedissem
a sua irmã de varrê-lo com a vassoura porta a fora;
Bem-aventurados os pernilongos, que enfernizam qualquer ser humano pelas
noites e madrugadas, deixando-lhes coceiras em todos os lugares de seu corpo,
enquanto os mosquitos e moscas sobrevoam o lixo da cozinha das celebridades
di-versas da história política da nação, o balcão dos açougues, as mesas dos
barzinhos de pratos-feitos;
Bem-aventuradas as pulgas amestradas que, no picadeiro dos circos,
extasiam as crianças de risos e os adultos de lágrimas, enquanto a comunidade
inteira canta de galo nos bastidores da sociedade e sobrevivem de migalhas e
esmolas da história escravagista, enchem a pança de grãos dos heróis dos
poderes ad-jacentes e da alienação;
Bem-aventurados os bichos-preguiças que levam décadas para atravessarem
o caminho dos escravos de lado a lado, assistindo aos safos naturais casados e
divorciados em plena di-versão, enquanto a luxúria dos governantes atravessa
todos os limites e cancelas do bom senso e razão, enquanto a ganância dos
empresários atravessa os confins dos interesses e ideologias, enriquecem com os
réis do povão;
Bem-aventuradas as minhocas que vivem e sobrevivem de por baixo da
terra, enquanto os vermes humanos se entrelaçam nos atos espúrios dos
interesses, nas atitudes indecentes e vulgares das ideologias em nome da
riqueza de poucos e a miséria das multidões;
Bem-aventurados os bernes que se escondem na carne dos bois e vacas,
protegendo-se dos raios solares e das intempéries da natureza, enquanto os
parasitas humanos vivem do sangue da bílis dos pobres e miseráveis das
comunidades de base, das favelas nos morrões;
Manoel Ferreira Neto.
(13 de fevereiro de 2016)
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