**PÁGINAS DE UM FOLHETIM BÊBEDO - REVISADO** - Manoel Ferreira
Se é verdade que se possa acreditar, difícil é, mas possível, as
possibilidades são o tesouro supremo da vida – conforme a alma branca de papéis
ou preenchida com letras e caracteres à busca do “verso verdadeiro’, pesa e
muito devido à gravidade das idéias e pensamentos, humano algum já concebeu
este peso, na história é pioneiro – quem morre bêbedo cambaleia, cata cavacos,
cai, levanta, xinga Deus e o capeta, nas veredas a caminho do céu, vomita os
dogmas e preceitos religiosos que engoliu durante a vida à espera encarniçada
da redenção e ressurreição, esvaziando-se completo. Encontrar-se com São Pedro,
o eterno velhinho de barbas brancas, ser re-colhido e a-colhido no Paraíso
Celestial, é o desejo re-côndito que habita as pré-fundas da alma. "São
Pedro, meu pecado supremo foi engolir os dogmas e preceitos que possibilitam a
redenção e ressurreição." E São Pedro: "Diz isso a Lucius, com
certeza vai recebê-lo com todo amor e carinho. Aqui isto é virtude, valores.
Lá, no Hades, é pecado supremo".
Talvez após os efeitos da bebida, possa voltar à terra, continuar a
trajetória do álcool e dos delírios, tudo não passou de um equívoco, mas, caso
contrário, não haverá mais cachaça, conhaque, “cerveza”, whisky, catuaba,
absinto, vodka, gim, champagne, abstinência por toda a eternidade, sem dores,
sofrimentos, sem ninguém para chamar-lhe pau-d’água, pinguço, sem ter de
colocar a mão na boca, estando a conversar com alguém, devido ao bafo. Fora um
santo juramentado ou jumentado, o único defeito fora a bebida, se não fora
santo, pecou, cometeu erros, blasfemou, tomou o nome do Senhor em vão,
hipócrita, cretino, imbecil, canalha, etc., etc., tropeça, cai, levanta, cata
cavaco rumo ao inferno, com certeza nem precisará confessar sua vida espúria, a
porta se encontra aberta, só entrar, escolher o fogo que irá queimar-lhe a alma
por toda a longitude das chamas – no inferno, não há eternidade, há
postumidade, acredite quem quiser, eu mesmo estou na dúvida se isto é verdade,
não o sendo, há posteridade dos pecados, jamais se extinguirão, pois que lá não
há o perdão do capeta. Não precisar de perdão algum, ser aceite como se é, com
o que fez de si - que maravilha! Mas Lucius condena radicalmente quem só
pratica o bem, a solidariedade, a compaixão, o amor. Não admite mesmo na sua mansarda.
Não digo que a continuidade do álcool no sangue, nas entranhas e
pré-fundas, haja me tornado louco varrido, esteja agora bêbedo e ensandecido,
formalmente sem qualquer noção do real e das in-verdades; padeço de
alucinações, idéias delirantes, os miolos estão mais que molhados com o
metanol, se espremidos hajam garrafas; não está bom não; e se estiver disperso,
não tiver cuidado, os efeitos da cana vão corroer a massa cefálica, a cabeça
será vazia, estará vazia, uma espécie de câncer boêmio dos miolos. Dizem as más
línguas que os bêbedos têm a cabeça vazia, caso contrário, não tomariam um gole
de qualquer bebida, e, se tomasse, seria apenas socialmente, com todo o
controle possível e impossível.
A história das comissões é verdadeira. Toda semana, saída a edição do
tablóide Sertão Boêmio, uma sátira dos cornos de nossa comunidade, que dera
origem a uma fala sempre ouvida em todos os lugares, esquinas, alcova: “não
quero saber quem está desfilando seus chifres, quem está passando o marido á
frente da confiança”, apanhava de cada vez cem exemplares, carregar mais era
impossível, saía distribuindo, jogando nos alpendres, jardins, correios, por
dia quatrocentos exemplares, recebendo uma comissão que me possibilitava quatro
garrafas de pinga por quatro dias, os outros três da semana capinava terrenos
baldios, quintais, jardins, nova comissão que me possibilitava sete doses por
dia, semana inteira sendo comissionado e bebendo as comissões.
Quero dizer, imaginava que teria a comissão com a capinagem, conversava
com as pessoas, ouvia suas exigências de trabalho perfeito, escrevia-as em
qualquer papel de quanto era o trabalho, fazia as contas, dava para alguma
coisa. Em suma, e isto é triste, desolador, angustiante e desesperador, padeço
do que se chama em medicina comissiomania ou mania de comissões. A prova é que
alguém me sondou, num instante de quase coma, segundo lhe ensinara os
patologistas, o pathos boêmio é o responsável pela embriaguez continua,
quotidiana, e perguntei-lhe, em contrapartida, babando, gaguejando, chamando
urubu de meu louro, se iria à igreja de S. Francisco, à rua São Francisco, bem
no início, frente à estatua de Benedito Valadares, e ao Fórum Municipal.
Respondeu-me alegre, sem baba, sem gaguejação, sem trocar “r” por “l”,
vice-versa, “j” por “z”, vice-versa, que tinha que falar em São Francisco com o
comissário da Ordem Terceira, na Rua do Correio Municipal, com dois comissários
de café. Reunião de comissários
- Vê sempre, leitor, a mesma mania de comissão. O metanol, com toda a
sua eficiência e competência transformou comissionários em comissários, não me
perguntem porquê, estou latindo de tão bêbedo, não sei discernir o trigo do
joio, quanto mais comissário de comissionário.
O comissário dissera àquele alguém que o pathos da boêmia pode salvar
alguém, é só beber quase até cair e sair fazendo seresta às janelas das
raparigas loiras e das moçoilas de cabelos pretos, castanhos. As alucinações e
delírios dos comissionados, quando são tratados, podem chegar à demência total
e sem precedentes na humanidade, quando não tratadas com médicos perfeitos,
daqueles para quem não há mistérios do corpo, mas certezas da alma e espírito;
e mesmo à idiotia e à imbecilidade, para a qual nota-se-lhe tendência
imprescindível.
Mesmo babando, chamando urubu de meu louro, confundindo gatos com
lebres, dissera a este alguém, não me lembra se troquei as letras, como é
hábito quando me encontro bêbado, tomei todas e mais algumas.
- Há mil, há cem milhões de pessoas no mundo, nunca sou capaz de contar
com categoria, que raciocinam perfeitamente, racionalizam com divinidade, e,
entretanto, padecem de uma dessas alucinações ou delírios.
Bem, poderia servir-me destas palavras indicando diálogo, para discutir
a divinidade da bebedeira, do alcoolismo sem precedentes desde a metade do
século XX até à primeira década do século XXI. Até na hora da bebida a verdade
dói: dizer, por exemplo, e com todos os argumentos que comprovam a veracidade
do dito, que em nossa região a cidade em que mais há alcoólatras, que mais se
bebe cachaça, é a nossa, meu Deus, ninguém aceita. E isso é verdade inconteste.
Bebida e adultério em nossa cidade é coisa de louco. Certa vez recebi minha
namorada em minha residência, era tempo de Forró. Queria por que queria que a
levasse ao Forró. Disse-lhe: “Você está é louca; aqui, querida, é a coisa mais
comum “cantar”, sejam mulheres, sejam homens, casados, namorados, noivos. Você
acha que a levaria ao Forró, seria cantada sem dó nem piedade, quanto mais que
bebo muito. Aí é que aproveitarão da oportunidade. Não vou poder brigar. Não
vou poder fazer coisa alguma. De modo algum. Se quiser ir, vá sozinha”.
Mas vou, agora que me encontro às portas do céu, logo, não, depois de
uma eternidade de tropeços, quedas, cata cavacos, falar que as pessoas vêem,
sincera e dignamente, séria e honradamente, as absolutas e virtuosas donas da
verdade, por alucinação, uma comissão diante de si, oferecendo-lhes alguma
coisa, verdade efêmera, in-verdade absoluta e eterna – veneram ou retratam,
ouvem os discursos, agradecem, convidam para um copo dágua, e crêem que dançam
– antes de a bebedeira terminar no céu ou no inferno, e que as danças se
prolongam pela madrugada ao ritmo das carcovianas, que engrandecem o espírito,
diminuem os instintos, elevam a alma, denigrem a vida humana.
São casos puramente psicóticos, neuróticos, patologia pura e simples.
Ah, a patologia dos pés e passos incertos, dos caminhos duvidosos, das idéias
ridículas. Não há neles a menor sombra de comissão, ao menos no estado agudo e
augusto da moléstia, porque é observação feita que, quando a cura começa a
operar-se, o doente ilude-se a si mesmo, arranjando uma comissão de verdade,
que vai deveras à casa dele, com a veneração, que ele mesmo comprou, em moeda
de mil réis, cruzeiro, cruzado, reais, segundo a idiotice dos políticos,
vereadores, deputados, senadores, prefeitos, chefes da Câmara dos Inauditos.
Não há neles a menor sombra de comissão, ao menos no estado augusto da
moléstia, repito-o, sei-o com consciência e utopias do asno no sertão mineiro.
Manoel Ferreira Neto.
(18 de fevereiro de 2016)
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