/**DE PEVIDES E CREDOS NA PONTA DA LÍNGUA - REVISADO**/ - Manoel Ferreira
Bons dias!
Laia,estirpe, espécie, raça...
Cuidava, ainda cuido não tão à risca quanto no passado, que era o mais
precavido dos meus contemporâneos e conterrâneos. A razão é que saio sempre de
casa com as pevides e credos na ponta da língua, e mais que determinada
dis-posição de não contrariar as opiniões das pessoas. Dizem que o vento leva
as palavras para bem longe, nada resta delas, se ditas verbalmente; se
escritas, por sempre estarão presentes, conforme forem os sentidos delas,
incomodarão para sempre. Não penso assim: mesmo verbais, intenções e sentidos
incomodam, insatisfazem, ocasionam inimizades, até mesmo assassinatos
ridículos; as pessoas nunca se esquecem delas, algumas guardam e esperam a
oportunidade do revide; daí, o vento leva as palavras, mas não as intenções e
sentidos; se escritas, o vento da originalidade das intenções e sentidos é que
as levam, ficam as interpretações inúmeras.
Tenho fama de bajulador, pois que só movimento a língua para elogiar as
pessoas, concordar com as suas opiniões várias, pontos de vista sobre isto e
aquilo, imaginações criativas nas fofocas que inventam no dia-a-dia das
relações humanas, deixando todos alegres e satisfeitos. Não me oponho a nada do
que ouço dizer; ganho com esta atitude duas vantagens bem específicas. A
primeira é estar bem com todos, independente de credo, raça, a segunda é não
perder tempo em discutir com elas, mostrando-lhes os equívocos, os erros e
enganos e interpretações dos fatos, as imaginações férteis na análise das
idéias e pensamentos.
Senhores leitores, nem este seu criado, quem lhes cumprimenta nesta
manhã gostosa de após chuvinha a noite inteira – nas noites chuvosas, gosto
muito de ler, antes de entregar-me ao sono; nesta, tive o prazer de ler O asno,
de Apuleio, rindo a bandeiras soltas, a nós cegos -, um friozinho agradável,
nem vocês somos os mais precavidos dos homens. Há dias, a gente que saía de um
plenário na câmara dos vereadores, para a votação de uma lei contra a redução
dos impostos de casa própria, que todos concordaram, pois quem sairia
prejudicado seria a prefeitura, e, estando na falência, depois de um desvio de
verba bem gorda, seguido de todo o dinheiro que estava no cofre, a única
solução seria fechar as portas, prefeitura fechada é o mesmo que curral de
touros com a porteira aberta, um deus-nos-acuda; a gente foi atacada por alguns
indivíduos, havendo naturalmente tumulto, pancadas, pedradas, ferimentos,
recorrendo os atacados aos gritos, para chamar a polícia, que acudiu prestes.
Pouco antes do plenário terminar, dois soldados brigaram com o carroceiro por causa
do asno empacado no meio da avenida, impedindo o trânsito de fluir
espontaneamente, atracaram-se com ele, os transeuntes intervieram, a culpa não
era do carroceiro, era do asno, deveriam atracar-se com ele, e, não conseguindo
nada, recorreram aos berros, e a polícia acudiu. Quê fim de tarde de ânimos
exaltados, leitores!
Esses gritos da gente retinem-me inda agora no cérebro quinze horas
depois. Nunca imaginei que toda a gente gostasse de gritar a plenos pulmões,
berrar mesmo, chamando a polícia, pedindo socorro. Os casos supra apontados são
diferentes, as circunstâncias diferentes, e diferentes os sentimentos das
pessoas; não há uma só analogia entre os dois tumultos, exceto esta: que cada
cidadão gosta de gritar, esgoelar, berrar, não apenas para chamar a polícia,
mas também para aliviar as tensões do dia-a-dia, os sapos secos que engolem a
todo momento.
De algum modo tinha que iniciar os meus bons dias, leitores, e,
lembrando-me deste acontecimento, aprouve-me por bem dizê-lo. Não se preocupem,
leitores, com o que vem a seguir nada tenha a ver com votação de lei contra
redução de impostos, com os dois policiais se atracarem com o carroceiro,
devido ao asno empacado no meio da avenida; em verdade, tem tudo a ver, porque
as palavras estiveram presentes nos dois casos.
É a este respeito que lhes venho nesta manhã dar-lhes os meus bons dias
sempre respeitosos, desejando-lhes muitos sucessos nas atribulações e afazeres
deste dia, terminem o dia felizes e alegres, durmam com a consciência
tranqüila, por não terem sido desrespeitados, negligenciados, passados para
trás. É preciso mesmo cuidar das palavras, saber dizê-las, caso contrário os
tumultos surgem a toda pompa.
Se digo da “laia” de alguém – isto é, da sua qualidade, feitio –
atribuindo a este termo as suas atitudes morais escusas e espúrias,
id-ent-ficando-as, elencando-as a rigor, para não advirem dúvidas e
desconfianças no que tange às minhas inter-pretações, estou sempre sujeito a
erros ruços, enganos crassos, e não for laia, o que disse respeito à “estirpe”
- ou seja, origem, ascendência -, confundi personalidade e caráter, que são
formados e construídos no mundo, com origem, a “laia” é hereditária, adveio dos
pais, terei de explicar-lhe a miúdo o erro que cometi, o equívoco de meus
juízos, não é o responsável por sua falta de moral, não a elaborou e delineou
nas relações com o mundo, pessoas, seu tempo, a responsabilidade é de seus
pais, desculpasse-me, embora sabendo eu minhas palavras, juízos não serão
esquecidos por ele, apesar das desculpas dadas com tapinhas no ombro, lançou
ele os sentidos de minha inter-pretação aos ventos, levassem-lhes para bem
longe, mas as palavras ficaram não só na sua memória, também por mim ditas,
além do questionamento contundente: “Então, é da minha estirpe ser um indivíduo
de péssima qualidade moral por haver herdado de meus pais, de todas as gerações
deles? Não tem qualquer modo de isto modificar? Pau que nasce torto morre tudo.
Por toda a vida serei este indivíduo? Se a laia de meus pais era inconsciente,
sou eu então o responsável por torná-la consciente, viver dela, então sou o
responsável? Haverá modo de isto modificar? Enfim, não há quem não a aponte com
o dedo indicador na minha cara.” Fui o verdadeiro responsável pelos
despautérios e disparates. Ficaram porque atribui “laia” aos princípios morais,
era “estirpe”, referente às origens, desculpou-me a laia, não sabendo que no
concernente à estirpe não houve qualquer equívoco, fui até muito feliz em lhe
trançando a hereditariedade, não disse só dele, disse de toda a família desde a
eternidade.
Por isto sempre cuido bem das palavras, não as uso aleatoriamente, não
as uso para ajuizar as mazelas humanas, uso-as para bajular os homens em todos
os níveis, desde as razões incontestes aos instintos indubitáveis. Então, sempre
consulto o “pai dos burros” para esclarecer o sentido das palavras, inda mais
que, lidando sempre com a nata fina da comunidade, gostam, apreciam o uso
constante de termos clássicos, eruditos, assim a cultura e intelectualidade
ficam bem evidentes aos olhos de qualquer um; tenho de sabê-los, cuidando de
não os usar com ironia e cinismo, estas palavras eruditas, numa mente criativa
e cínica como a minha, dão margens abertas a mofas sem limites, e quem as usa
com freqüência e orgulho não é capaz de percebê-las com nitidez. Aí pergunto:
"O que seria pior: rasgar todas as erudições com cinismo, ironia,
sarcasmo, ou abrir a caixinha pequenita que trago dependurada no pescoço,
caixinha de maribondo? para afastar as conversas sem senso, as agressões de graça?"
Se digo da “estirpe” de alguém, atribuindo a este termo as manias,
vícios, gestos indecentes, condutas e posturas inconseqüentes, herdados da
família, id-ent-ificando-os a critério, mostrando as situações e
circunstâncias, momentos e instantes que os re-velou e bem, não sendo preciso
inter-pretar ou an-alisar, estavam mais que visíveis, e não for “estirpe”, for
“laia”, relacionada à qualidade péssima da moral, não sabendo de seu distúrbio
psíquico e emocional, o que nos outros é laia, nele é estirpe, vice-versa,
terei de gastar uma lábia daquelas, exposto a estar confuso e perdido, até lhe
explicar que focinho de porco não é tomada esquivoquei-me, atribui as suas
manias , gestos... à estirpe sua, mas em verdade é laia, e ele me esclarecendo
os seus distúrbios, não terei mais modos de persuadir-lhe: livrando-me da
estirpe, entro de gaiato na laia, vice-versa. Os ventos não levam nem as
palavras, nem os sentidos, ambos ficam verbalizados; talvez as intenções que
tive ao dizer de suas manias, gestos, pudessem ser levadas, esquecidas, mas a
pessoa nem de longe pensou nelas, não eram importantes, o que valia mesmo era
haver dito a verdade dele, o erro foi não procurar saber de seu distúrbio.
Por isto sempre cuido bem das palavras, não as uso aleatoriamente, não
as uso para ajuizar os distúrbios psíquicos e emocionais, uso-as para paparicar
aqueles que cometem os mais despautérios e disparates em termos de falar da
vida alheia, de sempre caírem do galho mais alto que conseguiram subir para
ditar normas, regras, princípios morais e éticos, sem terem qualquer noção do
que isto significa. Inda mais que, lidando com a fina nata da sociedade, e
neste métier normalmente os limites são esquecidos, tudo é permitido, jamais
serão púnicos, tenho de cuidar-me, ter em mente que eles estão isentos de
personalidade e caráter, o que lhes habita é somente o poder.
Se digo da “raça” de alguém, atribuindo a este termo não comportamentos,
gestos, atitudes, características da personalidade e caráter, que são dimensões
do ser humano, mas às características biológicas e organização genética
próprias, especificamente aos instintos que são dos animais, de-monstrando com
engenhosidade como este alguém perdeu sua dignidade humana, embrenhou-se na
animalidade pura com seus comportamentos, atitudes, escândalos vários, mania de
virar a mesa, rodar a baiana em todos os lugares, botequins, eventos
artísticos, sociais, em todas as festas, públicas e particulares, bêbados ou
lúcidos, sair na porrada com alguém, e não for “raça”, for alguém que, carente,
desolado, marginalizado, discriminado, doido e alucinado por chamar a atenção,
terei de me explicar com ele, correndo sério risco de levar uma surra daquelas
por lhe ajuizar os comportamentos como instintivos, ser ele não da raça humana,
sim da raça animal, a primeira movida e alimentada de razão e senso, a segunda
só de instintos. Se eu for inteligente, sensível, até será fácil convencer-lhe
de meus preconceitos e discriminações, realizando com sentimentos verdadeiros e
sensíveis a sua necessidade de atenção, carinho, amor, consideração, sendo
necessário até afiar a ponta da língua com as estratégias e diplomacias da boa
lábia; ficar-me-á agradecido por lhe mostrar a sua verdadeira raça, a de um
homem sensível e carente, que escolhera a animalidade das atitudes, condutas e
posturas para responder aos preconceitos e discriminações que sofrera desde o
primeiro suspiro no mundo, o tapinha na bunda, o choro inevitável; com a minha
atitude será outro homem. Fiz-lhe um bem inestimável. Os ventos não levaram as palavras
e os sentidos, não deixaram os termos à laia do tempo e suas circunstâncias, à
estirpe das mazelas e pitis, à raça das inconseqüências e indecências. Ficaram
as palavras e sentidos, mas transformados pelas suas pevides.
Se digo que os dois soldados que se atracaram com o carroceiro, devido
ao seu asno haver empacado no meio da avenida, são em verdade inconseqüentes,
não têm o menor senso, não têm a mínima noção de responsabilidade e culpa, a
culpa não é do carroceiro, deveriam ter discutido com o asno, atracarem-se,
darem voz de prisão para ele, lendo-lhe os direitos, se não desempacasse, terei
de me explicar à polícia de modo contundente, pois que estou desacatando a
autoridade deles, desde quando policiais vão discutir com asno, atracarem-se
com ele por não lhes ouvir as ordens de puxar a carroça, deixar o trânsito
fluir espontaneamente, estou chamando-lhes de imbecis, colocando-lhes menores
ainda que os asnos, isto é inadmissível. Caso não consiga persuadir-lhes, pois
que é uma raça difícil de entender e compreender as coisas, a verdade de tudo
está nas mãos deles, serei enjaulado por me meter em coisas que não me diziam
qualquer respeito. Se, ao contrário, digo que os dois policiais estavam
cobertos de razão de se atracarem com o carroceiro, pois que ele não deveria
circular com a carroça no centro da cidade, quanto mais na avenida principal,
altamente movimentada ainda mais depois das seis horas quando todos estão
saindo do trabalho, voltando para casa, ao invés de usar o jegue para executar
a tarefa de puxar a carroça, deveria usar um cavalo, este nunca empaca, terei
de explicar ao jegue, a minha responsabilidade de homem e cristão é defender os
injustiçados, humildes, fracos, e ele como um animal de puro instinto deveria
receber de mim mais compreensão e entendimento, sei bem que é um animal que
empaca mesmo, estou sendo desumano com ele, preconceituoso, discriminativo, se
eu não sabia o seu dono não o alimentou desde que saíram de casa às seis da
manhã, doze horas sem comer, foi um ato de contestação. Como me explicar ao
injustiçado jegue, já que ele, além de não falar, não tem condições de
entender. Neste caso, eu preferiria ser enjaulado pelos dois policiais a me
explicar ao jegue. Assim, mesmo que ele jamais vá entender, mas lhe dei razões,
estava certo em empacar, pois trabalhou muito e ficou sem comer o dia inteiro.
Por isto sempre cuido em não dar razão a qualquer parte envolvida numa
questão, se defendo um, o outro ressente, fica puto da vida, corro o risco não
de mais um inimigo capital, mas de levar uma surra. De antemão a quaisquer
revezes, estão ambos certos ou errados. Ficar em cima do muro é sempre uma
atitude plausível, evita-se de acumular responsabilidade, evita-se de não se
envolver com o que não diz respeito. Para me não silenciar por completo, a
palavra é sempre comprometedora em qualquer prisma que se lhe interpreta,
escolhi mesmo bajular os homens, concordar com tudo que acontece, aceitar e
admitir todas as opiniões, pontos de vista.
Manoel Ferreira Neto.
(16 de fevereiro de 2016)
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