**IRMANADO AO ABSOLUTO DO INSTANTE-LIMITE** - Manoel Ferreira
Não posso resignar-me. Dor, ó dor, não há uma dor
sequer no mundo que não seja minha!... Ui, ui, ui... sou completo: são minhas
todas as dores são minhas. Do alto da serra, nessa manhã, vi os vales e as
colinas desertos a perderem de vista. Dizem que é suficiente uma noite de
prazer para dominar um homem. Serei obrigado a desprezar-me, subestimar-me,
negligenciar-me? A mendigar as carícias de outra mulher? Geisa, eu amava-a,
amo-te(?); nunca conheci outra. Aprendi com alguém experiente que uma mulher
indigna de ser amada abre caminhos e alamedas para outra merecedora de amor,
compaixão, solidariedade, ternura, afago... Amava a tua coragem, a tua força, a
tua persistência, a tua sabedoria, amava as tuas mãos no meu corpo. Impede-me
de gemer noutras mãos, nos braços inda posso uivar. A que amo neste absoluto do
instante-limite, já que amei o mais importante, assim penso e sinto eu, nos
homens, na humanidade inteira.
Está escuro, a sensação é boa, sinto-me bem,
agachado sobre o meu passado, tenho tempo, nada mais me apressa, furo o saco
com o indicador para deixar entrar o ar, o saco está fechado, pronto para o
embarque. Já não me sinto de todo apertado, fechado, meus pensamentos estão
mais livres do que nunca, respiro largamente, vejo nitidamente no meio da noite,
vejo-me a correr por uma pradaria florida, o dia está lindo, grito; o sol está
forte, o céu, quase branco, tenho quarenta e quatro anos de idade, estou feliz,
viajo agora para um compromisso importante, talvez este seja o que vai tornar
tudo possível.
Olha para mim. O infortúnio ultrapassa-me.
Abandono-me ao absoluto do instante-limite, irmanado à sede viva neste instante
inverossímil em que lhes fito, (a quem? Aos homens!...), e lhes sei um nada de
seus convulsos e ricos e esplendorosos milagres. Calo-me e espero.
“Geisa se foi, meu bom homem, as suas lágrimas não
a trarão de volta. Esquece-a!...”
Com as mesmas virtudes com que a amava, e de que me
orgulhava de meu amor por ela, tento seguir o caminho, agradar aos homens com
as palavras não de conforto, nem buscando a conformação deles com o destino que
lhes coube na vida, mas com as palavras de quem vive e busca a redenção.
“Faça o que aconselho, por seus filhos, para que um
dia, para Geisa ou para os seus filhos, este sentimento esquecido renasça e recrie
o mundo, o destino de todos está nas suas mãos. Ouça: não atraia sobre você o
ódio ou – quem sabe?! – a vergonha”.
Há muito me invejavam os sentimentos, as virtudes,
a fidelidade e, acima de tudo, as doações de amor, carinho, ternura aos filhos,
as gentes da Europa. Odiavam há muito a minha raça, as minhas origens,
chamavam-me selvagem, caipira das Minas Gerais, eles, que não têm piedade,
misericórdia. O Muro de uma Presença me reconstruiu e a prosperidade depressa
voltou porque os deuses me abençoaram. Sou, então, um deus novo entrado de
fresco e de chofre na eternidade. Agora, já me habituei, e olho os meus
infortúnios com a calma implacável dos imortais. Estou sobremaneira ocupado
para baixar um olhar sobre o abismo.
Aquele que ama continua a amar. Aquele que ama, ama
sempre, mesmo quando acredita que o seu coração está deserto, sem mesmo a
presença de um cáctus. E estas mãos, estes pés que são meus e não são meus,
porque eu sou-o a eles, mas também estou neles, porque eu vivo-os, são a minha
pessoa e todavia vejo-os também de cima, de lado, de fora, de dentro, como a
caneta com que vou escrevendo, quase mesmo sem saber que sentido desejo
registrar, que emoção desejo deixar escrita, que sentimento quero que seja
sensível a qualquer olhar humano.
Até que um dia dei de frente com Geisa – era você?
Fugitiva imagem da minha alegria perdida, de meus sonhos dispersos, de minhas
esperanças longínquas – era ela porque sorria. Sorriso primordial, de nada
antes nem depois, original sorriso da evidência da vida. Era impossível que
fosse ainda... Porque era uma alegria evidente, necessária, mais forte do que
uma criação ou conquista ou deliberação.
Deve ser quase meia-noite, mas arrasto-me
vagarosamente que ouço um relógio bater quatro vezes antes de descer pela ruazinha
que vai dar na rua da Grota. O ar e o sono refrescam-me. Muitas pessoas pensam
que o silêncio de todas as situações ocorridas é devido a motivos que não
desejo em hipótese alguma tornar público, por vergonha de assumir uma canalhice
ou safadeza. Mas, até hoje, nunca ouvi uma sílaba sobre ela; nunca disse uma
letra sobre ela. Esses, como muitos problemas que um homem encontra na vida,
têm sido a mais profunda aflição. Não desejo mais encontrá-la, mas pensar nela
com misericórdia, como alguém há muito desesperançado...
Manoel Ferreira Neto.
(20 de fevereiro de 2016)
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