FADIGA EM BASES ERRADAS** - Manoel Ferreira
"A besta que existe em mim quer ser
tripudiada"
Graças à arte de assediar as vontades, desejos, até
mesmo as chufas alheias, alcanço uma resposta condicional. É já alguma coisa.
Sou um homem em demasia orgulhoso, tão orgulhoso
que jamais aceitei qualquer desaforo, e se presenciei algum feito a mim com
todas as pompas e escárnios, não os levei para casa, repliquei de imediato e,
com toda a presença de espírito, e sem ela também, pedi licença ao agressor,
pondo-me de volta ao lar.
Sou tão orgulhoso que chego a fazer de sentimentos
de inferioridade um templo dedicado às musas da eternidade, mesmo que elas não
aceitem a minha grande generosidade, dizendo que este templo é amaldiçoado, são
elas a fonte de inspiração de poetas e artífices da luz, e não de agressividade
à condição humana.
Em dizendo neste estilo, quem me ouve ou quem lê
este escrito, chega a pensar que não é possível que haja alguém neste nível,
desejando até jamais se aproximar de mim, e lhe digo com deferência que não me
importa a mim se não deseja a aproximação, o melhor é mesmo não se aproximar,
pois me sentirei fadigado em lhe explicar que em verdade o orgulho em mim não
deriva de inveja estéril ou de ambição impotente, de uma revolta por não ser
capaz de algo desenvolver até ao fim, acho-me entrincheirado na idéia de
limite. Tão entrincheirado que não nego o sagrado, não nego a razão. Nada nego,
enfim.
É uma força que descobri em mim – aliás, se não a
encontrasse nalgum tempo de minha vida, posso garantir que agora estaria de
todo amassado em meu canto, reduzido a nada, pois que foram muitas as
intempéries, foram muitos os dissabores e fracassos, e, como não poderia deixar
de faltar, foram muitas as agressões que recebi diretamente na cara.
Diretamente na cara é até um eufemismo, pois que é tabefe que se aplica na cara
de alguém, e não palavras; as palavras foram ditas diretamente ao espírito com
o desejo mesmo de achincalhar e negligenciar qualquer indício de nobreza
existente nele.
Nestas ocasiões, aliás, propícias, para me sentir
ofendido, triste, desconsolado, não transpus a linha do orgulho que traçara
para mim mesmo, não me sussurrei uma ùnica palavra de conforto e complacência,
dizendo que os humilhados serão algum dia exaltados, não me deitei um único
olhar que me pudesse fazer entristecer ou reagir. Forcejei por apagar da
memória qualquer resquício da ofensa, da agressão, havendo-me com orgulho e convencimento
que me pareciam bastantes para resgatar a estima perdida, pareciam sobremodo
suficientes para recuperar o amor próprio.
O orgulho não me faz somente silenciar o coração,
não havendo um só instante em que seja eu capaz de revelar uma palavra de
carinho, de ternura, de amizade, a quem quer que seja, e, se o fizer algum dia,
pode alguém com certeza pensar e sentir que não estou em minhas faculdades
normais, podendo inclusive encontrar um asilo de loucos para me internar,
deixando-me pelo resto da vida trancafiado lá, se possível com camisa-de-força.
O orgulho também me infunde a confiança moral necessária para viver tranqüilo e
sereno no centro mesmo de todos os riscos, de todos os perigos.
Com efeito, não sou homem quem pensa e repensa em
avaliar bem se devo agir assim ou daquela forma, de ir a este ou aquele lugar,
se uma simples atitude vai ou não me prejudicar, simplesmente enfio-me com a
cara toda em qualquer situação, mesmo sabendo que dali não sairei com vida,
dali não sairia com um mínimo de sentimento na alma.
Aliás, alguém de minhas relações, olhando-me certa
vez com bastante acuidade, com muita delicadeza e consideração, indagou de mim
se com este orgulho todo que tenho em mim não seria um modo de esconder o homem
afetuoso e gentil, de muita sensibilidade, de um coração compassivo e generoso.
Respondi-lhe, às avessas, que era para esconder o homem fadigado que sinto em
estar neste mundo, rodeado de pessoas as mais esquisitas e sirigaitas
possíveis, necessitando de amor e solidariedade para que se possa estar próximo
a elas - a besta que existe em mim quer ser tripudiada. Não compreendeu a
resposta e também não estive interessado em explicar com todos os detalhes o
que, enfim, estava desejando dizer. Todas as palavras restariam em nada.
Não me julgo com direito a sonhar outra posição
superior e independente, como, por exemplo, uma posição de alguém quem se cuida
com extremo apreço, pois que assim evito me sentir angustiado e deprimido após;
de alguém quem ama a todos os homens sem sentimentos de preconceito e
discriminação, compreendo as suas dores e sofrimentos, confortando-as em
instantes de grandes desilusões e dores.
Creio ser sobremodo percuciente, sobremaneira
lícito afirmar que recuso solenemente a largar mão de meu orgulho, porque, a
meus olhos não seria uma atitude, mas um vício de meu caráter e personalidade.
O sinal da maturidade seja uma extraordinária
vocação para as humildades fáceis. Mas é, sobretudo, uma precipitação de viver
que chega às raias da extravagância, um desejo de abraçar o mundo com todas as
forças que chega a intensificar ainda mais todos os orgulhos.
Meus momentos de felicidade foram bruscos e
impiedosos. A vida também. Compreendi, então, que sou nascido desta terra, onde
tudo é dado, para ser tomado de volta. Nessa abundância de sentimentos
profusivos, de emoções vorazes e voluptuosas, a vida imita a curva das grandes
paixões, repentinas, exigentes.
O pensamento, a imaginação de inferno nunca
passaram para mim de uma simples brincadeira agradável, de um divertimento
amável.
Manoel Ferreira Neto.
(20 de fevereiro de 2016)
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