**INSTINTO NATURAL DA ESPÉCIE** - Manoel Ferreira
"Não é o asno que deve se adaptar aos homens,
mas os homens que devem se adaptar ao asno." (Manoel Ferreira Neto)
Numa comparação um tanto infeliz, por não estar
encontrando outro modo de me referir à questão, imagine que um cachorro, destes
muito bravos, sendo preciso trazer-lhe a correntes grossas para não atacar as
pessoas, saísse pelo portão, logo que alguém a quem odeia de paixão entrasse
pelo portão. Ou mesmo se enfiasse dentro de sua “casinha”. Seria ridículo.
Imagine um asno, puxando sua carroça, vendo de
longe alguém a quem odeia, mudando de rua para não se encontrar com a pessoa.
Ridículo. A comparação está sendo ridícula por ser impossível que mude de rua
por não desejar encontrar com alguém a quem de longe vejo. Primeiro, o dono não
iria permitir a mudança, tinha de passar por aquela rua, mudar significa tornar
mais longe o lugar a ele destinado a chegar, passaria por outras
desnecessárias.
Ainda “burrico” recém-nascido, um dos carroceiros
esteve doente precisando de comprar remédio. Procurou meu dono, colega dele no
“ponto de carroças”, pedindo-lhe uma certa quantia em dinheiro emprestado para
comprar os seus remédios. Homem bom, emprestou-lhe com toda a satisfação, era a
sua obrigação ajudar as pessoas, quanto mais em se tratando de problema de
saúde.
Três meses depois, precisando da quantia, meu dono
fora cobrar. Estava necessitando do dinheiro. Houve discussão entre eles. Na
hora que esteve doente, procurou-lhe, mas se esqueceu de lhe pagar, era homem
pobre, trabalhador, quanta vez não levantou em plena madrugada para fazer
fretes, ganhar a sua sobrevivência. Respondeu-lhe o colega que não pagaria.
Devido a esta discussão entre eles, meu dono jurou
de pés juntos que jamais passaria em sua rua. Anos após, continua não passando,
acreditando eu que nunca o fará. Enfim, jurar é coisa muito séria no mundo dos
humanos, quanto mais quando é dito: “Juro por Deus”. Jurar por Deus é pecado,
acho que sacrilégio, se não me engano.
Há nestas atitudes a presença de orgulho, vergonha,
“brio na cara” como dizem alguns. Faz parte da natureza humana ter brio na
cara. Se não tiver, não pode nunca ser considerado homem, pode sê-lo um
qualquer. Antigamente era as pessoas humildes, simples, analfabetas que
possuíam esta natureza. Em termos de palavra dada, eram de todo irreversíveis.
Como se diz: era mais fácil passar um asno no fundo da agulha que fazer com que
mudassem de opinião, relevassem, perdoassem, se fosse o caso. Os nobres,
burgueses, intelectuais, personalidades não davam a mínima para estas questões;
os interesses não lhes permitiam tais atitudes. Se penso na atualidade, nem
pobres nem pobres mantêm a palavra. Chamam os inimigos e concorrentes para os
grandes banquetes, comemorando isto e aquilo.
Em se tratando de mim, não possuo esta natureza,
ela é dos humanos. Estou-me nas tintas se vejo alguém a quem odeio. Posso
seguir o meu destino, entregar a encomenda no seu lugar e prazo, sentindo que a
pessoa a quem odeio se encontra na rua; se no “ponto de carroças”, parado,
esperando algum cliente contratar os serviços de meu dono, a pessoa estar perto
de mim. O que naturalmente faço é não olhar em direção a quem vejo. Se perto,
não olhar em sua cara. Qualquer ser humano ressente muito quando alguém não lhe
olha na cara, é a manifestação mais radical de ódio, rejeição, nojo, etc., etc.
Sei que há muitas pessoas, em algumas ruas da
cidade, que fecham as janelas e portas, quando estou a passar puxando a
carroça. Ouvi dizer que se sentem deprimidas, angustiadas, têm sérias crises
existenciais. Alguns sustentam que é devido à espécie de varal e a cenoura
dependurada a uma distância que não posso alcançar a cenoura. Isto para eles é
o símbolo real da inutilidade de tudo, da vida, dos prazeres, dos negócios. A
vida é feita para não ser realizada.
Por causa disto, vou deixar de passar nestas ruas
seguindo o meu destino, indo entregar as encomendas dos clientes. Não. Aliás, a
interpretação é dos humanos; são eles que a todo momento necessitam de
interpretar as coisas que acontecem, assim se sentem mais seguros na vida.
Alguém disse que todo o ser nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza, morre
por encontro imprevisto. Com a interpretação de tudo que lhes acontece os
homens pretendem que não: todos nascem com missões, responsabilidades,
prolongam-se para satisfazer as necessidades e sonhos, morrem por ser algo
inevitável.
Se ainda sentisse eu alguma necessidade de comer
esta cenoura!... Pensam todos os de nossa comunidade ser a razão de andar
desembestado pelas ruas. Sonho algum dia conseguir abocanhar a cenoura. Ledo engano.
Jamais tive vontade de comê-la. Creio que o motivo de andar desembestado se
justifica pelo fato de meus pensamentos, as idéias que perpassam a minha cabeça
incomodarem bastante. A partir do instante que compreendi não me importar com o
que fizeram de mim, o que puxa carroças, e sim o que faço de mim, não mais
andei desembestado pelas ruas. Ando devagar, às vezes de cabeça baixa, às vezes
não.
Observo que não são apenas aquelas pessoas que se
encontram à soleira de suas residências, sentadas na calçada, nas escadas,
conversando com todos os que passam, nas janelas de guilhotina, inteirando-se
das mazelas e achaques humanos, assuntos que encontram para as suas muitas
conversas, que, ao passar eu, saem logo de perto. Odeiam-me. Quem sabe por ser
eu o ser mais comentado, mais conhecido da cidade? Não haver quem não conheça a
“carroça dos sem nome”, o “asno da carroça”, e outros tantos modos de se
dirigirem a mim e ao meu dono? Sentem-se negligenciados, menosprezados,
inferiorizados. Donde já se viu um asno ser mais importante que eles, os
humanos? Sentem inveja, ciúme. Se isto for mencionado: “Que negócio é este,
fulano, você sentir inveja, ciúme de um asno?”, desconversam logo. A
desconversa se justifica por ser um absurdo o que está sendo dito.
Ouvira alguns homens dizerem que só me falta falar,
quanto a pensar já não têm mais dúvidas; outros, com propósitos de achincalhar
os que se ostentam com o título de escritores, acham-se os mais importantes de
toda a comunidade, mas, em verdade, a importância é só aparência, pois nada
neles denuncia dons e talentos artísticos, dizem que só me falta a pena.
Tudo isto aumenta mais e mais o ódio, a
insatisfação, o ciúme e a inveja das pessoas, quanto mais aquelas que se dizem
muito importantes, decidem a vida de outros, de modo e estilo responsável e
sincero, são os representantes dos bons princípios. A estas pessoas não apenas
incomodo, sou-lhes uma pedra no sapato.
Compreendo e entendo estas atitudes, fazem parte da
natureza humana. Naturalíssimo aos homens ser invejoso, ciumento, despeitado.
Há-de se perguntar se haveria a raça humana se não houvesse ciúme, despeito,
inveja. Estranho, se um asno fosse invejoso, ciumento, despeitado. Aí, sim,
poder-se-ia dizer que o mundo está realmente de cabeça para baixo.
No Largo da Mandioca, onde se encontra o ponto de
carroças, há um botequim muito freqüentado por algumas personalidades de nossa
comunidade. Muito freqüentado por um senhor calvo, de cavanhaque, óculos
pequenos, estatura mediana. Certa vez, ouvi-lhe dizer a alguém não ser ele quem
deve se adaptar aos homens, mas os homens a si. Diria um ponto de vista
muitíssimo interessante. Todos dizem que se alguém for dar atenção a tudo que
se fala, morre-se com certeza doido, varrido de pedra. Se se for ouvir o que se
fala, a sandice é inevitável. Então, são os outros que têm de se adaptar às
mazelas da pessoa, e não o contrário.
Plagiando a fala desse senhor, diria que não é o
asno que deve se adaptar aos homens, mas os homens que devem se adaptar ao
asno. Afinal de contas, necessitam da espécie para fazer trabalhos que não se
dignam a realizar, faltam-lhes força e coragem.
Por que, enfim, estou pensando tudo isso, enquanto
estou parado no ponto, meu dono estar fumando o seu cigarro de palha, olhando
as serras distantes, disperso? Também eu deveria estar fazendo o mesmo. Não
estar me preocupando com a diferença existente entre a natureza animal e a
humana. São coisas indiscutíveis, a menos que já não se seja capaz de
distinguir entre uma e outra, as duas se uniram. Não se é possível mais saber
se os homens são bípedes implumes, se os asnos são quadrúpedes pensantes.
Só sei de mim, só sei de mim, só sei de mim...
Contudo, é muito interessante estas coisas do mundo dos humanos. Agora mesmo,
alguém entrou no botequim a fim de comprar um maço de cigarros e, percebendo
que um de seus maiores inimigos, aquele por quem sente nojo, estava sentado ao
banco próximo ao balcão, saíra sem comprar os cigarros, os vinte companheiros
com quem vai passar todo o dia. O outro continuou sentado, tomando a sua
branquinha acompanhada da cerveja. Fosse o contrário, acredito que o outro
deixaria a cerveja e a branquinha pela metade, saindo do botequim.
Há quem tenha brio na cara, portador de condutas
ilibadas; há os que não têm brio na cara, portadores de grande sem-vergonhice.
Manoel Ferreira Neto.
(20 de fevereiro de 2016)
Comentários
Postar um comentário