#LINGUAGEM E ESTÉTICA NOS ROMANCES DE VIRGÍLIO FERREIRA# - Manoel Ferreira Neto: ENSAIO
IV PARTE
Hipoteticamente colocado o tema de Estrela Polar, a
situação humana nele representada, embora dotada de uma lógica inegável
apresenta-se raiada de uma atmosfera de absurda irrealidade algo semelhante ao
que de insólito e brumoso possui o universo romanesco de um Kafka.
Esse absurdo, essa irrealidade, revelam-se muito
mais francamente quando se analisa a experiência vivenciada dessa colocação
hipotética, que é, afinal, a própria situação nuclear de Estrela Polar, cuja
efabulação se pode descrever resumidamente? Adalberto apaixona-se por Aida, que
tem uma irmã gêmea (?) chamada Alda, extraordinariamente parecida com ela. A
tal ponto vai a semelhança que ele não consegue distinguir uma da outra,
estabelecendo-se certa confusão, que o leva, algumas vezes, a trocar Aida por
Alda e vice-versa.
A essa confusão segue-se uma espécie de jogo
tacitamente aceito entre os três que permite a Adalberto relacionar-se com as
duas irmãs ao mesmo tempo, sem saber em cada vez com qual delas está e que por
isso mesmo passam a ser denominadas no romance de Aida-Alda como se as duas se
fundissem numa só pessoa. Entretanto, de forma lenta, muito longinquamente algo
começa a se definir neste relacionamento de Adalberto com as duas irmãs e a
paixão ou o interesse do protagonista se desloca de Aida para Alda, embora ele
continue sem saber distinguir uma da outra. Certo dia, quando passeavam de
barco numa temporada de praia, as duas sofrem um naufrágio e Alda morre
afogada. Adalberto, porém, mais uma vez as confude e acredita que Alda era a
sobrevivente. Aida deixa-o permanecer no equívoco e os dois casam-se. Mais
tarde, o engano desfaz-se, Aida revela a sua verdadeira identidade e Adalberto
acaba por matá-la, porque apesar da extraordinária semelhança que em todos os
níveis existia entre ambas, Aida e Alda não eram a mesma pessoa e Aida era
exatamente alguém que Adalberto há muito aborrecera e que se lhe gastara.
A direção do pensamento implícita em Estrela Polar
praticamente já se revelou, embora de forma excessivamente resumida, através da
rápida descrição da fábula do romance e no que de continuidade ele possui em
relação a Aparição. Entretanto, há interesse ainda em acompanhar alguns lances
da trajetória existencial de Adalberto. Ainda no início do romance, exatamente
ao terceiro capítulo, ele diz:
“A minha vida entendo-a na iluminação em que me
sinto, me estou vivendo, me sou. E é possível por isso que a todo o meu passado
eu o esteja coordenando sem saber, eu o esteja reinventando sem saber, como se
ele fosse inimaginável fora de como o estou vivendo. E a que propósito o
afirmo, agora, aqui – não aqui, lá?"
Se bem que a perspectiva literária não ofereça
ainda um horizonte onde possamos distinguir as conseqüências da obra de
Vergílio Ferreira nas letras portuguesas atuais, duas questões devem, no
entanto, ser colocadas neste estudo. Qual a influência de Vergílio Ferreira nos
seus contemporâneos? Criou ele, como romancista, discípulos que tivesse
aproveitado a lição do “ciclo existencial”? A resposta parece ser apenas uma:
sem dúvida que sim.
É sempre ingrato apontar influências. Acontece
muitas vezes que os autores ‘influenciados” não conheciam as obras que os
“influenciaram”. Há alguns casos destes na literatura portuguesa, a começar por
Eça de Queiroz. Os autores negam a influência, recusam-na com sinceridade,
porque muitas vezes nem deram por ela. É isso que permitiu a Vergílio Ferreira
dizer que “acasos de biografia, de leituras, de encontros e decerto de
tendências, acabaram por cristalizar em mim os temas que mais importam”. Eis,
portanto, o que acontece com os escritores de uma ou duas gerações
consecutivas. Por essa razão podemos detectar a influência do autor de Mudança
em alguns dos mais destacados representantes da ficção portuguesa
contemporânea. Um Infinito Silêncio (1970), de Antonio Rebordão Navarro, por
exemplo, acusa a leitura da experiência de Alberto Soares, até por certa
semelhança das situações. Assim como a escrita também parece confirmá-lo. A
leitura do romance de Rebordão Navarro leva-nos a evocar o espaço de Aparição:
em Viamonte, o personagem-narrador executa igualmente o milagre da visitação de
si a si próprio e, simultaneamente, o exercício memoralista de Estrela Polar.
“... um dia, recordarei Viamonte sem exaltação, sem
repugnância, sem saudade lerei talvez estes apontamentos sem me aperceber de
que esta primeira pessoa do singular fui eu num dado tempo, numa vila a
nordeste que, aos poucos, se despovoava, o som perderá o seu significado ou
ganhará um outro, todos os sons evoluirão assim, significarão diferentemente
palavras que são nomes de pessoas: Miguel João, Tomàzinho, Olímpia,
perguntar-me-ei se existem, se existiram, se existirão ali ou noutro qualquer
lugar, perguntarei se existe Viamonte com a sua igreja, o pelourinho, o
tribunal, as ruas enlameadas ou poeirentas, os cafés, a estação dos Correios, o
Hospital, o casarão amarelo dos Bombeiros Voluntários”.
Quem, ao ler este fim de romance, não evocará as
linhas finais de Estrela Polar, com a memória de Penalva, de Aida e Alda que aí
habitavam ou habitam? E quem não evocará também o solitário professor que
abandonou Évora, marcado para sempre pela ‘anunciação da evidência’?
Mario Sacramento coloca, portanto, Vergílio
Ferreira entre os fatores que ocasionaram a evolução literária de Fernando Namora,
levando depois o problema para o terreno meramente histórico, quando pretende
traçar as delimitações do Neo-realismo, dividindo-o em duas fases, colocando o
que ele chama de segundo Neo-Realismo a partir de 1950, historicamente
condicionado a um sentimento de angústia ou de tensão universal originado pela
chamada “guerra fria”, que instaurou sobre o mundo a eminente ameaça de um
conflito nuclear.
Vergílio Ferreira, como se poderia ver depois pela
perspectiva de distanciamento cronológico e pela própria seqüência da obra do
romancista, não representaria apenas uma mudança de enfoque neo-realista ou uma
abertura para o aproveitamento de novos temas ou o ensaio de novas técnicas
romanescas. Na realidade, o romance, apesar dos elementos que ainda explorava e
que eram próprios da ficção social, implicava uma mudança bem mais radical:
significava a ruptura do escritor com um movimento e uma geração literária, era
o início de um caminho que Vergílio Ferreira percorreria solitariamente. Mas
essa ruptura iniciada pelo escritor de maneira lenta e paulatina lançou certa
ambigüidade no âmago de Mudança, o seu romance-limite, ambigüidade que não
permitiu à crítica da época, descobrir, de imediato, as verdadeiras intenções
do romancista e o integral significado do seu livro. É comentando este aspecto
da obra que Eduardo Lourenço afirma:
“Por isso se pode dizer que Vergílio Ferreira não
escreveu nunca melhor romance neo-realista do que “Mudança” – e os críticos
neo-realistas assim o entenderam – e ao mesmo tempo que nas suas páginas
agoniza já a forma habitual desse neo-realismo. Todavia, esta leitura que torna
“Mudança” não só o mais ambíguo dos romances do autor, como o romance da
ambigüidade nascente que será, em seguida e em toda a plenitude, a criação
específica e a orignalidade indiscutível de Vergílio Ferreira, é o futuro só
que a instaurará fazendo pender a balança naquele sentido que em “Mudança” é
apenas potencial”.
A ambigüidade que caracteriza Mudança declara-se a
partir do próprio título, igualmente ambíguo, sintomático, aberto a diversos
significados porque está relacionado com vários significantes. Mudança, para
usar a feliz expressão de Eduardo Lourenço, é um título profético como todos os
que convêm à hora que designam. Na interpretação do título deste romance é
necessário adotarem-se duas perspectivas diversas: uma voltada para as
circunstâncias externas da obra em si, relacionada, entretanto, com a
consciência literária do romancista e com o panorama ficcional do seu tempo; a
outra, vinculada aos elementos inerentes ao próprio romance, como a estrutura
formal, o arcabouço estilístico ou os fatores componentes da trama romanesca.
Assim, a partir do primeiro enfoque, o romance de Vergílio Ferreira, desde o
título poderia ser interpretado como uma mudança operada na criaçào literária
do escritor que, abandonando o esquema neo-realista dos seus romances
anteriores, começa a enveredar por outro caminho. Já se disse neste ensaio que
Vergílio Ferreira só por contingências históricas fez literatura neo-realista,
o que, evidentemente, leva a inferir que a partir de certo momento se operaria
uma mudança na consciência artística do escritor. Tal metamorfose registra-se
exatamente a partir de Mudança, que, valha o lugar-comum, vem sendo reiteradas
vezes apontado como um divisor de águas na obra do escritor português,
assinalando o início da sua fase de maturidade, e como um marco na própria
ficçào portuguesa deste século, descobrindo-se com ele a temática e o estilo
existenciais. Neste sentido, o título do romance significa não só a
transformação literária de Vergilio Ferreira originada da evolução da sua
consciência artística, mas também um rompimento do escritor com a ficção do seu
tempo, com a sua geraçào literária.
Por isso, Mudança é um romance solitário, ambíguo,
cujo sentido não foi de imediato totalmente captado. É um livro ao qual,
guardadas as devidas proporções, se adaptam bem as palavras que Jean-Paul
Sartre escreveu a propósito de O Estrangeiro, de Albert Camus: "No meio da
produçào literária desse tempo, este romance era, ele próprio, um
estrangeiro."
Do ponto de vista interno da própria obra
literária, o romance é a história de uma ampla e universal mudança operada em
todo o espaço romanesco, seja ao nível do cenário social em que transcorre a
ação, seja ao nível da própria consciência das personagens. Assim, o título do
romance poderia simplesmente significar a mudança econômica e social sofrida
por José Bruno em conseqüência da crise da economia mundial, apresentada no
romance de forma abstrata e dimensões míticas, embora com resultados materiais
palpáveis, tão destruidores que, da distância dos países de onde vinha, atingia
avassaladoramente os homens das serranias de Vilarim, de Castanheira de Pera e
de outros lugares que os mapas não registravam. Mas se a “crise” é a grande
responsável por tão radicais transformações, estas não se situam no plano
meramente econômico, porque terão profundas conseqüências humanas? É em razão
da “crise” que se vai desenvolver a mudança no pensamento de Carlos Bruno, e é
a sua derrocada econômica que vai agravar até à separação as suas relações com
Berta. Este é também um dos significados contidos no título do romance, mas há
outros, totalmente distintos e colocados a partir de outras perspectivas. Há,
por exemplo, ao nível político-ideológico, a esperança depositada por algumas
personagens do romance – entre elas o próprio Carlos – na vitória de Hitler, já
empenhado na guerra e que se esperava desse depois do conflito uma nova ordem
ao mundo capaz de fazer imperar a justiça. Uma esperança, diga-se de passagem,
logo transformada em decepção com a derrota nazista e principalmente com a
revelação das atrocidades praticadas nos seus campos de concentração. Ainda ao
nível político sugere-se no romance a perspectiva de mudança que deveria
ocorrer em Portugal com a realização das primeiras eleições livres permitidas
por Salazar, entretanto frustradas pela burla fascista.
Já se sabe que Mudança evolui de um contexto social
e histórico para um questionamento existencial e subjetivo, e não se deve esta
guinada do enfoque ou da temática romanesca unicamente a projeção da
consciência de Carlos Bruno, que a certa altura passa a dominar toda a ação do
romance, mas também ao surgimento de outras personagens relacionadas mais ou
menos intensamente com a existência do protagonista. É verdade que algumas
dessas personagens agem quase como meros estímulos à consciência ou ao
pensamento de Carlos, mas também é inegável que representam, elas próprias,
certas parcelas de comportamento, certas maneiras de existir, de pensar e de
encarar o mundo.
Como Mudança parece de início um romance construído
a partir da estética realista e pertencente portanto ao surto da ficção
neo-realista da década de 40, mesmo Carlos Bruno, que já sabemos agora ser uma
personagem essencialmente existencial, foi a princípio apresentado com o perfil
de uma figura neo-realista, embora tocado já de certas características, certas
preocupações que não eram próprias às personagens do romance social. As
primeiras cenas do romance mostram Carlos e Berta na varanda da casa de
Vilarim, numa noite de setembro após uma tempestade. Subitamente, no silêncio
da montanha, a lua veio por fim, quente de augúrio e de sangue, erguendo-se
sobre a terra como os anjos das ruínas... Carlos olha contemplativo o
espetáculo da natureza e não contém uma exclamação: - Caramba! É belo! (...)
Assombra, Berta! Esmaga!
Carlos Bruno traz represado dentro de si um certo
lirismo cósmico, mas não é este ainda o traço que o diferencia de outras
personagens neo-realistas, porque as figuras rústicas de Alves Redol ou Soeiro
Pereira Gomes também se surpreendem vez por outra perscrutando
contemplativamente a fixidez luminosa dos astros. Entretanto, Carlos possui já
a consciência do concerto do universo; - Tudo está certo no mundo, diz ele,
tudo está no seu lugar. Mas o seu espanto diante do cosmos e as suas certezas,
são por vezes nubladas por uma angústia latente que pode estar contida dentro
de si próprio ou emanar das forças da natureza:
“ – São-me boas estas horas, esta paz. Boas. Como
eu sei.
(...)
- Tornava-me um dragão, Berta, palavra de honra, um
dragão, se não fosses estas horas de paz, de vez em quando, esta coisa de fora
a calcar, a esmagar as forças de dentro”
Para lá destes vagos prenúncios de angústia ou
inquietação, Carlos possuía convicções concretas, valores sólidos e palpáveis:
regressava da boêmia de Coimbra trazendo um diploma de Bacharel em Direito,
tinha Berta submissamente ao alcance das mãos e da sua vontade, um pai
vitorioso e forte como um rochedo a inspirar-lhe confiança no presente e no
futuro e era herdeiro de uma das maiores fortunas da região. Em Vilarim, como
em toda a Serra da Estrela, o valor de um homem sempre se pesou em sacas de lã,
de batatas ou de boas palavras. A Carlos Bruno nada disso faltaria, e esses
eram valores absolutos sobre os quais poderia tranqüilamente alicerçar a vida.
A busca verdadeira, entenda-se, a procura dos verdadeiros e autênticos valores
que deveriam reger as relações entre os homens. A vida terminou, o romance
começa.
O romance, segundo Lukács, é a história da busca de
valores autênticos por um personagem problemático, dentro de um universo vazio
e degradado, no qual desapareceu a imanência do sentido à vida. Ora, só neste
instante o herói se torna problemático, o universo surge como vazio e
degradado, o sentido da vida desaparece. Mas de repente, como um surto de
peste, a “crise” que vinha de longe dizimando fortunas e homens chegou também a
Vilarim e abateu-se sobre os valores de Carlos Bruno jogando-os por terra. José
Bruno teve a fábrica fechada com as portas seladas pela Justiça. Os bens
interditados eram garantia de alguns credores. Não suportando o golpe, o velho
Bruno enforcou-se. Restavam-lhe Berta e a profissão de advogado que se obrigara
a exercer na vila de Castanheira como forma de sobrevivência. Perdera a força e
o orgulho. Ruíram todas as suas convicções e multiplicaram-se as dúvidas na sua
consciência. Carlos mergulhara numa lassidão viscosa, silenciosa e apática,
aceitando a sorte sem um gesto de revolta. Para desespero de Berta, em pouco
tempo a vida o transformara profundamente. Por isso mais tarde, já casados, ele
ouviria da mulher coisas assim:
“Quando eras príncipe de Vilarim, eras outros.
Palavra, gostava mais de ti. Eras duro, arrancavas para a frente. Às vezes
magoavas. Mas a gente sabia o teu caminho e arredava-se”.
O motivo da morte pelo suicídio em Mudança, remete
fatalmente o leitor mais curioso ou mais versado em determinados temas e
teorias existenciais a uma outra obra de Albert Camus: O Mito de Sísifo.
Efetivamente, sabendo-se da identificação de Vergílio Ferreira com romancistas
e pensadores existencialistas, é praticamente impossível não recordar a
formulação do pensamento absurdo proposto por Camus. Matar-se – diz ele – em
certo sentido ( e tal como no melodrama), é confessar. É confessar que se é
ultrapassado pela vida e que a não compreendemos. A citação aplica-se bem ao
caso de José Bruno: o seu suicídio equivale de fato à confissão de que a vida
(ou a crise) o venceu e que a existência, afinal, nunca foi bem compreendida
por ele. Os seus valores eram palpáveis, absolutamente concretos (Em Vilarim,
como em toda a Serra da Estrela, o valor de um homem sempre se pesou em sacas
de lã, de batatas ou de boas palavras) e quando sucumbiram esmagados por uma
força estranha, abstrata, incontrolável, desapareceu com eles a razão de viver.
Para Carlos Bruno estes valores também existiam, mas o pai, era, ele mesmo, um
valor em si próprio, talvez o maior deles e cuja subtração o lançou
repentinamente no espanto do jogo entre a vida e a morte.
(**RIO DE JANEIRO**, 18 DE ABRIL DE 2018)
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