#GENUINO POMO DA SABEDORIA - PARTE IX# - GRAÇA FONTIS: ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE: ESPÍRITO DO SUBTERRÂNEO
2.0
GENUÍNO POMO DA SABEDORIA
A arte é para o homem uma necessidade
fundamental, como beber e comer. A beleza, assim como o gênio criador que a
encarna, são uma só e mesma necessidade para o homem sem a qual talvez não
consentisse mais viver neste mundo.
Fyodor Mikhailovitch Dostoiévski
2.1.1 -MUNDO DE POBREZA E SOFRIMENTO
O embate entre Cristo e Anti-Cristo
não é simplesmente a luta entre religião e irreligião. Do NT aprendemos que a
religiosidade é uma das características do Anti-Cristo: “veio dos nossos,
embora não fosse dos nossos”. (1Jo, 2,19). A luta entre Cristo e Anti-Cristo se
opera entre a humildade de quem se sente sempre suportado pelo mistério de Deus
e que por isso não pode jamais ser orgulhoso, nunca pode autoafirmar-se nem
instaurar-se a si mesmo como medida para os outros, e entre a vontade de poder
que se rebela contra Deus enquanto o homem se esquece de seu fundamento divino,
se fecha sobre si mesmo e estabelece um mundo, fundado em critérios impostos
por esta sua vontade de poder. Então emerge uma jovialidade e na tragédia da
morte de Deus no coração do homem.
Dostoïévski colheu as primeiras
impressões, desde cedo, e elas marcaram-lhe fundamentalmente a sensibilidade e
influíram sobremodo na sua formação intelectual. Isso lhe atiçou e vincou a
curiosidade, ensinando-lhe que a criatura vem ao mundo com pesada herança de
dor e de pecado. Herança essa que sentiu na carne e espírito.
Paul Ricoeur observou que o homem
contemporâneo está confinado no sentimento de culpa porque não existe juiz mais
poderoso do que ele próprio, do que sua própria consciência. Com toda a
certeza, uma psicanálise bem conduzida pode reduzir a culpabilidade neurótica ,
mas conseguirá atingir a paz? Não irá segregar uma outra mais sutil pela qual
alguns hão de culpabilizar-se por “se sentirem culpados”?.... Narciso só escapa
de sua imagem afogando-se, do mesmo modo que o psicótico só escapará de seu
sentimento de culpa e de sua dor soçobrando-se na inconsciência.
Eu mentia dizendo que fui um
funcionário mau. E mentia por maldade. Na realidade divertia-me com os
requerentes, sobretudo com o oficial. Verdadeiramente, eu não tinha a faculdade
de ser mau. A todo momento, descobria em mim elementos incompatíveis com um
temperamento de homem mau. Sentia agitarem-se êsses elementos e sabia que aí se
agitavam desde sempre esforçando-se por alcançar a vida exterior, sair da
sombra em que os mantinha. Mas eu não os deixava sair, não: não os deixava, de
propósito. Eu sofria, ruborizava-me. Tinha convulsões, e, afinal, ficava
esgotado, oh, como ficava esgotado .
Entregar-nos ao pecado (amartia) é
vivermos no esquecimento do ser, é afastar-nos da finalidade para a qual somos
criados (literalmente, é “não acertarmos o alvo”), é vivermos em um estado de
não-verdade, de “não-aletheia”, ou seja, de não-vigilância, de não-despertar. É
vivermos adormecidos na superfície de nós mesmos, embalados ou dilacerados por
nossas ilusões, sermos escravos de uma falsa imagem de nós.
As situações e atitudes descritas
pelo romancista fazem-se hoje mais vivas e nítidas do que nas horas em que ele
as escrevia no silêncio das noites de São Petersburgo. Nos dias de hoje,
Dostoïévski está mais atual do que ontem. Em seus livros, é fácil achar
respostas para muitas das nossas dúvidas e solução para inúmeros dos nossos
problemas, é fácil encontrarmos caminhos de reflexão acerca de nossa condição
existencial, de nossa natureza, se estivermos dispostos a mergulhar em nós
mesmos, imbuídos de fé e esperança. Será que estamos mesmos preparados para
viver, como Cristo o viveu, como Dostoievski viveu-o, entregarmo-nos em mãos do
Espírito, isto é, o “espírito” na obra dostoievskiana habita o desejo de
redenção e ressurreição, sofrermos, carregarmos a nossa cruz, de modo sincero,
não como “meros” gestos que significam unicamente aparência? Será?
Interessante ressalvar nesta questão
do “espírito” na obra dostoiévskiana é que precisamos falar da vida e obra de
Dostoievski, de-monstrar a constituição do ‘eu’, a partir de um inconsciente do
que uma consciência superior, porque, como define Jung, “[...] porque o
conceito de espírito exige que associemos a ele a idéia de superioridade em
relação à consciência do eu” .
Por isso, muitos lêem, gostam muito,
apreciam o estilo e a linguagem poética de Dostoievski, mas se recusam a
aprofundar o que a obra exige de nós os leitores, o espírito é o desejo de
redenção.
É, contudo, imprescindível que
façamos dessas reflexões encontradas nas obras dostoiévskianas ação, para que
elas nos transformem de dentro para fora, para que atinjamos a Vida em toda a
sua plenitude e absolutez. Efetivamente, sem a disposição da entrega, do
mergulho, é um convite a tornar real a diferença entre o “psicótico” e o
“neurótico”, isto é, o primeiro mora no castelo que construíra, o segundo, constrói
castelos de areia nas nuvens; fáceis são as soluções que encontramos nessa obra
portentosa e sublime, difícil mesmo é se entregar às buscas.
Quem ignora seu mais profundo desejo
torna-se escravo de seus “pequenos desejos”, quem ignora sua mais profunda
bem-aventurança torna-se escravo de seus “pequenos prazeres”, fica
condicionado, acorrentado, por eles: se vier a sentir sua falta, julgará que é
o ser que lhe faz falta. Quem desconhece as suas capacidades, dons, talentos,
permanecerá escravo da inveja, pensa que com ela poderá justificar a sua
incompetência, incapacidade – esconde a sete chaves que não adiantará desejar,
ter vontade de ter, possuir, não conseguirá realizar, em suma, é um vencido na
vida “Se um dia quer romper as correntes, apertar-se-ão ainda mais. São
correntes malditas” .
Grandes testemunhas dizem-nos que
podemos ser livres em uma prisão e conservar a dignidade de nosso olhar;
podemos ser livres diante de inimigos que nos destroem, livres para
perdoar-lhes “porque eles não sabem o que estão fazendo”, assim como podemos
viver em um mundo sem obrigações e sermos escravos de nossas pulsões, de nossas
paixões, de nossas idéias e das idéias correntes.
Sem o desejo compassivo de obtermos a
iluminação com o objetivo de conduzir todas as pessoas para a liberdade, para a
prática da comunicabilidade, a vida torna-se apenas uma espera da morte – o
senso comum diz: “Esperar a morte com a boca aberta cheia de dentes”, alienado
da missão que a nós nos foi doada, a missão da felicidade, alienados e
inconscientes dos dons que nos habitam poeticamente a alma, da vontade de poder
e fé que nos pode salvar. A perfeição da liberdade diz que a prática da
compaixão, da generosidade, da paciência, do esforço, da concentração e da
sabedoria é o único caminho, que todos os homens atravessam para a iluminação.
“Se a inteligência do homem consegue operar, o que, então, mais que a
sabedoria, é a artífice dos seres?” (Sabedoria, 8, 6).
Nelson Werneck Sodré, em seu prefácio
à 17º edição de Memória do cárcere, de Graciliano Ramos, assim nos diz:
Metido no porão do navio, misturado
aos criminosos na Correção, conduzido ao presídio da ilha, tendo a cabeça
raspada, tornado farrapo humano pela miséria física, assistindo aos espetáculos
mais sórdidos, Graciliano Ramos nos retrata com impressionante nitidez, não
apenas os quadros a que assistiu mas, através desses quadros, uma fase da
existência do nosso país, fase que nos aparece, agora, qualquer coisa distante
e perdida, de que apenas nos recordamos, que nos parece já histórica, - fase em
que o que existe de mais baixo na natureza humana foi posto em triste e
tranqüila evidência, com um impudor ainda não igualado em parte alguma, ao
mesmo tempo que com um desvario que não foi dos seus elementos menos curiosos .
No conceito cristão, o homem veio à
terra para expiar os seus pecados – são “os degredados filhos de Eva, neste
vale de lágrimas” – e cumprirá tanto melhor o seu destino, quanto mais completa
for a expiação.
Dostoïévski estabelece no plano
social e político uma correspondência direta para a necessidade do castigo .
Pelos desígnios do Altíssimo, a fim de encontrar o essencial, teria ido para o
cárcere; mas está certo, ao mesmo tempo, de que o povo o condenaria.
Reconhece-se culpado perante Deus e perante o povo. Se, no cárcere, encontrou o
povo russo no que tem este de essencial, na sua predestinação mística,
encontrou igualmente a verdade cristã. Em carta a Maikov, em 1855, ele diz que
a infelicidade o ensinou muita coisa; a experiência teve grande influência
sobre ele e, graças a ela, se sente cada vez mais russo.
(**RIO DE JANEIRO**, 13 DE ABRIL DE
2018)
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