#LINGUAGEM E ESTÉTICA NOS ROMANCES DE VIRGÍLIO FERREIRA# - Manoel Ferreira Neto: ENSAIO
V PARTE
Depois do surto neo-realista que marcou
indelevelmente a literatura portuguesa contemporânea, a ficção toma em Portugal
caminhos de certo modo multifacetados, que vão ainda da herança realista ao
psicológico e ao existencial, registrando-se também certo experimentalismo
técnico-temático de linha kafkiana e joyceana ou recebido do Surrealismo e do
nouveau roman.
Kafka comenta que “a relação entre mim e a
literatura é similar... exceto que a minha literatura não é tão doce quanto a
voz daquele monge”. Isto significa, conforme adverte a Felice uma vez mais , em
22 de agosto de 1913, que, como sua esposa, ela levaria “uma vida monástica ao
lado de um homem pirracento, infeliz, calado, descontente e doentio”,
“acorrentado à invisível literatura por cadeias invisíveis”.
Kafka afirma que é só literatura e o repete com tal
freqüência e determinação, em prosa tão excelente, que jamais tal coisa poderia
ser dita por quem não se acredita realmente no que afirma. Em termos de
Vergílio Ferreira, o personagem acredita-se realmente um indivíduo, uma pessoa,
um homem, e não poderia ser um personagem se não acreditasse ser
um-com-Vergílio Ferreira. Há uma inversão, uma imagem às avessas, onde nela vai
se estabelecendo a consciência-estética-ética, que é a Busca de Vergílio
Ferreira em toda a sua obra.
É como um homem que come sem fome ou sem
necessidade, de forma que os alimentos não lhe vão fortalecer o organismo, não
lhe vão restabelecer as energias perdidas, ou como a serpente que engoliu um
coelho inteiro e que, depois, se deixa ficar estirada ao sol, evitando todo o
movimento que não seja absolutamente necessário. Em resumo: a cultura significa
um processo de vida, natural, original, criador e genuíno, e não um conjunto de
conhecimentos históricos.
Lembra-me Thich Nhat Hahn, quando ele diz que o
entendimento não é um acúmulo de conhecimento, e sim a harmonia da mente e os
acontecimentos do dia-a-dia, a mente cotidiana. A vida tem de dominar o
conhecimento: não é o conhecimento que tem de dominar a vida. Em Considerações
Intempestivas, Nietzsche assim o diz: “A vida é o mais alto poder dominador,
porque o conhecimento que aniquilasse a vida aniquilar-se-ia também a si. O
conhecimento pressupõe a vida”.
Os Alemães têm conhecimento – muito conhecimento –
do passado e da história, mas o conteúdo desse conhecimento não está unificado
sob uma forma vital, permanecendo apenas na sua memória e no seu cérebro. Têm
conhecimentos sobre cultura, mas não são cultos porque não vivem a cultura:
tais conhecimentos são apenas meras ruínas e relíquias históricas, e assim
permanecem, porque não auxiliam a vida.
Talvez se pudesse dizer mesmo o contrário: que eram
ansiosamente aguardados por uma enorme massa de leitores, famintos de um novo
realismo que falasse na verdade de coisas que aconteciam, mas das quais ninguém
se preocupava em tomar consciência. Uma nova verdade (velha, mas revelada e
reveladora de maneira diferente e pela primeira vez) solicitava as atenções de
uma mentalidade nascida da II Guerra Mundial, que, caminhando para o seu acaso
nos anos 44/45, principiava a revelar a face verdadeira de todas as guerras,
sintetizada pela palavra crise.
Balzac queria ser “o historiador de sua época”. Seu
tempo é um tempo histórico, rigorosamente marcado por claras alusões
cronológicas. Em sua obra, tudo faz parte de um sistema. “Não basta ser um
homem, é preciso ser um sistema”, chegou ele a escrever.
O conceito bergsoniano de tempo é submetido a uma
nova interpretação, a uma intensificação e a um desvio. O acento agora cai
sobre a simultaneidade dos conteúdos da consciência, a imanência do passado e
presente, o constante fluir simultâneo dos diferentes períodos de tempo, a
fluidez amorfa da experiência interior, a falta de limites da torrente do tempo
por que a alma é transportada, a relatividade do espaço e do tempo, o que vale
dizer, a impossibilidade de diferenciar e definir o meio no qual a mente se
move.
A liberdade encontrar-se-ia no eu profundo, no eu
que quer, que se apaixona, que amadurece, que evolui, que cresce sem cessar,
que é puro dinamismo e constitui a verdadeira personalidade do indivíduo.
Bergson reconhece, porém, que a maioria dos homens vive apenas no eu de
superfície, atravessando a existência sem jamais experimentar a verdadeira
liberdade. Essa liberdade é que transparece na ação criadora dos reformadores,
dos santos, dos místicos, que rompem as barreiras da moral e da religião
fechadas, para criarem, além dos preceitos cristalizados e dos comportamentos
rotineiros, os horizontes abertos de uma religiosidade e de uma moral que
brotam das vivências profundas do eu.
Nessa nova concepção do tempo praticamente todos os
fios da contextura que forma a matéria da arte moderna convergem; o abandono de
um enredo básico, a eliminação do herói, a renúncia à Psicologia, o “método
automático de escrita”, e, sobretudo, a técnica de montagem e a fusão de formas
temporais e espaciais do filme. O novo conceito de tempo, cujo elemento básico
é a simultaneidade e cuja natureza consiste na espacialização do elemento
temporal, não se expressa de um modo tão marcante em nenhum outro gênero como
nessa arte jovem, que data do mesmo período que a filosofia do tempo de
Bergson.
O tempo é a forma humana de se ser, a condição que
tudo em nós condiciona, o fluido em que o todo do homem mergulha e o homem todo
se unifica. Ponte de ligação de tudo o que ao homem acontece, sem ele não
haveria o acontecido ou a acontecer, plasma inicial que tudo envolve, só por
ele existe o único e o separado, que mutuamente se implicam, o antes e depois,
o sentido integral da vida que não existe sem o antes e depois. Indizível
tessitura de tudo, ele está mesmo não apenas em si, como tempo, mas no espaço
como lugar. Para entender esta folha em que escrevo, a cúpula do céu, a
vastidão da montanha, o tempo vem ter comigo e acompanha os meus olhos e
estabelece um antes e depois no alto e baixo, no vasto, no imenso. Estabelece-o
mesmo na qualidade desta folha branca, no negrume do céu, porque o negro e o
branco só existem se estiverem sendo branco e negro, se durarem como tais, num
breve instante que seja. Fluido misterioso, o seu mistério, porém, mergulha
para além de si, porque o próprio tempo só se entende pelo tempo, a duração
pela duração, o seu fluir por um tempo anterior que o unifica e explica e
todavia não é anterior porque está nele. Assim o que explica se explica por si
mesmo como explicador que está dentro do explicado. Mágica irrealidade, ela
implica-se no está-la pensando como no estar ela própria sendo, suporte e
sangue da nossa condição, da condição do ser que só existe no seu seio, como é
necessária a luz para que exista o olhar.
E no entanto, como pode existir a luz se os nossos
olhos a não criarem? O tempo é a criação do homem, a forma intrínseca de ir
além de si, de ser maior do que é, para ser mesmo o que é, porque para
entendermos o que somos, e assim o sermos, é necessário podermos sair dele e
pensarmo-lo recortado no amanhã e no ontem.
Após lidar com alguns romances de Vergílio
Ferreira, especialmente da fase e ciclo existencialista, por longos anos, e de
aplicar a eles diferentes procedimentos de análise, inclusive a psicanalítica,
fundamentada em Freud, parece-me, hoje, haver fundado uma interpretação de
algum interesse: no campo estético. Em Hegel, a arte da palavra chamada
“poesia” torna-se a expressão suprema da Idéia em seu movimento de particularização:
“ela (a poesia) abarca a totalidade do espírito humano, o que comporta sua
particularização nas mais variadas direções” (Hegel, Esthétique, “La poésie
I”).
Posta assim em paralelo com a filosofia
especulativa, a poesia dela se diferencia, ao mesmo tempo, em virtude da
relação que estabelece entre todo e parte: “Certamente, suas obras devem
possuir uma unidade concordante, e aquilo que anima o todo deve estar
igualmente presente no particular, mas esta presença, em vez de ser marcada e
acentuada pela arte, deve permanecer um em-si interior, semelhante à alma que
está presente em todos os seus membros, sem lhes dar a aparência de uma
existência independente” (ibid). Assim sendo uma expressão – uma exteriorização
particularmente – da Idéia, e porque participa da língua, a poesia é uma
representação interiorizante que coloca a Idéia o mais perto do Sujeito: “A
força da criação poética consiste, pois, em a poesia modelar um conteúdo
interiormente, sem recurso a figuras exteriores ou a sucessões de melodias:
desse modo, ela transforma a objetividade exterior numa objetividade interior
que o espírito exterioriza pela representação, sob a própria forma sob a qual
esta objetividade se encontra e deve se encontrar no espírito” (ibid)
As camadas linguísticas dos romances de Vergílio
Ferreira não têm simplesmente a função de um estilo funcionando como adorno, ou
mesmo como suporte da história, mas alcançam a dimensão de importante elemento
romanesco, capaz de encerrar em si o próprio universo humano que o escritor
quis revelar no seu romance:
“Eis como, para além da problemática da obra, que
por si só se institui como algo de novo no campo da ficção, o processo
“operatório” do estilo faz um romance inteiro, da primeira à última linha”.
Numa nota de pé de página Fernando Mendonça revela
que o próprio Vergílio Ferreira concorda com essa perspectiva interpretativa da
função do seu estilo:
“Tal ‘estilo’, com efeito, tem acima de tudo uma
função operatória e não apenas de ‘suporte’ e muito menos de ‘enfeite’. Assim
sempre se me afigurou superficial, a propósito dos escritores “estilistas” – ou
ao menos de alguns deles – a afirmação de que escrevem bem.. Porque quem apenas
escreve bem – escreve mal...”
Parece portanto suficientemente esclarecido o valor
do estilo na construçào dos romances de Vergílio Ferreira. Dentre outros
fatores, é também através do tratamento da linguagem que o escritor se separa,
como um artista da palavra preocupado com um universo em cujo centro situou a
dimensão humana, dos cronistas de um mundo acossado pela necessidade, pela
escassez e marcado por uma crueldade de exílio.
É certo que o estilo de Vergílio Ferreira vai
definir as suas intenções “operatórias’ principalmente a partir de Cântico
Final (1960), mas Mudança e Manhã Submersa, que lhe são anteriores, são já
romances vazados numa linguagem destinada a realçar as angústias do estar no
mundo. Vale a pena, para exemplicar, transcrever um trecho do romance:
“Ao embalo da invernia, no sossego do fogão, Bruno
pendia sobre si como ramo carregado. Tocava-o, no centro, um cansaço de tudo,
um morno sonho de olvido. Berta? Raul? A guerra? Pelos infernos, largai-me!
Queria Berta submissa e enojava-o a submissão como um visco de lesma. Gostava
de quebrar-lhe a dureza e aborrecia-a depois. Mas que amo eu? Que verdade na
vida me comove? Era bom estar tudo no seu lugar, mas sem luta, sem discussão,
implicitamente. Sim, Raul foi amante dela. Pelo menos, um e outro sentiram-se
amantes. Anda uma fúria na vila, a guerra, velhos instintos de ódio, de
vingança, liberdade, igualdade, fraternidade, - pelos infernos, largai-me!
Queria-se só, com silêncio no coração, um silêncio de ventos largos de
montanha. Pensar era acusar-se ou decidir-se a um rumo. Era sentir-se preso.
Paz! Fosse embora desgraçado, mas sem o remorso de não ter evitado a desgraça.
Tapar os olhos, ir para o fundo, mas sem idéias, como uma pedra”.
É fácil destacar no trecho transcrito expressões de
um “estilo existencialista” – se assim se pode qualificar um estilo literário –
intencionalmente utilizadas para ressaltar a angustiada lassidão de Carlos
Bruno. Tocava-o, no centro, um cansaço de tudo, um morno sonho de olvido (...)
enojava-o a submissão como um visco de lesma (...) que verdade na vida me
comove”(...) Era bom estar tudo no seu lugar, mas sem luta, sem discussão,
implicitamente (...) Pensar era acusar-se ou decidir-se a um rumo (...) Tapar
os olhos, ir para o fundo, mas sem idéias, como uma pedra. Estas são algumas
das expressões mais flagrantes em que não só a sintaxe, mas a própria palavra
em si mesma, como na função poética, age como o núcleo de uma camada simbólica
destinada a ressaltar certas áreas de significado, que no texto transcrito é o
plano existencial em que se move e situa Carlos Bruno.
A Arte se realiza no domínio da emotividade a cujas
portas as razões esperam as ordens de serviço. A função da Arte é exprimir esse
mundo imediato da adesão, da liberdade que espontaneamente se manifesta, do que
sem margens se é. A obra de arte é a via de acesso a esse mundo em que sejamos
nós. O seu artifício só é sentido quando esse mundo não é o nosso e não podemos
portanto entrar no jogo que o revela; ou quando, sendo esse mundo o nosso, o
artifício nos prende a passagem do espírito até esse mundo.
O “prazer” estético é o irrecusável comprazimento
com a nossa verdade profunda, ou simplesmente com a verdade do homem, com o que
há de inseparável da sua condição. Sentir “prazer” na Arte, reconhecer nela a
expressão da liberdade, reconhecer nela a verdade original, verificar nela a
expressão do que profundamente se é, ou, mais rigorosamente, do que é a própria
Vida em nós, rever nela a manifestação pura da pessoa que somos para lá do que
aparentemente no-la possa dar (porque a Arte pode ser a grande denunciante de
nós próprios, não apenas perante os outros, contra quem nos podemos defender,
mas perante nós mesmos, contra quem dificilmente teremos defesa) – tudo isso
exprime variamente, ou sob vários aspectos uma única e unificada realidade.
O amor de Tristão exalta a sensualidade e
simultaneamente a rejeita para o reino das sombras. O absurdo do amor
impossível, da negação da carne pelo espírito não é apenas o mito do absoluto
da proibição, mas ainda do absoluto da espiritualidade. A recusa da satisfação
dos sentidos não visa apenas a adiar para sempre o prazer, a fim de que ele
paradoxalmente se não extinga, mas visa ainda cristãmente a recusá-lo. É no
interdito que o prazer se agudiza, mas é nele também que esse prazer se nega.
Tristão expia o pecado de quem peca e demonstra pelo absurdo que o prazer está
no sem-fim de uma efetivação. E foi este absurdo que o nosso tempo re-conheceu.
A arte é a revelação de um mundo primordial. O mais
ignora-se. Assim a arte “alistada” é equívoca. A arte não veste farda, mas
aceita que possa vesti-la o artista. A água não se veste de ouro e riso, mas o
artista sonha que se possa vestir-se de ouro e riso. De qualquer modo, o
“prazer” estético não esvai em si os problemas em que se realiza. O “prazer”
estético é o que manifesta a assunção do que na arte se nos revela. Assim esse
“prazer” não esgota as nossas relações com a vida, mas apenas lhe exprime o que
nela é mais alto e profundo, a verdade absoluta que é a verdade de nós e que
por isso assumimos como assumimos quem somos. É porque nenhum homem se pode
recusar a si mesmo, que a Arte se não recusa e a verdade que vem nela – e a
beleza que vem nela. É porque se não recusa a profunda verdade de nós próprios,
que é irrecusável a “perfeição” do que na Arte nos submete. Eis ainda porque a
Arte é liberdade e só como liberdade nos atinge, ou seja como expressão de um
homem livre que à liberdade de outro homem se propõe. Para o homem, ser livre e
ser é uma e a mesma coisa. Assim a Arte lhe fala e o revela em plena
autenticidade. Não deliberamos o quem somos, mas somo-lo, e essa é a nossa
verdade irredutível. Se a arte nos fala, é porque somos nós a falar. Mas se
somos nós a falar, a Arte que nos atinge é ainda nós próprios, é a nossa
verdade profunda, exprime a assunção de nós, porque nós não nos podemos recusar
a nós próprios, para lá de quanto possamos julgar recusável, para lá dos
defeitos, dos crimes, das imperfeições do nosso corpo ou do nosso espírito.
A beleza da Arte tem que ver também com isso –
porque nenhum homem pode julgar-se imperfeito em autêntica assunção, porque
seria absurdo assumir-nos em imperfeição, ou seja, paradoxalmente, sermos nós e
não sermos, já que a imperfeição reconhecida vivencialmente como tal exigiria
que a repelíssemos, a separássemos de nós – e nós somos inseparáveis de nós
próprios.
Há na gênese dos contos e romances de Clarice
Lispector do momento interior que, a certa altura do seu itinerário, a própria
subjetividade entra em crise. O espírito, perdido no labirinto da memória e da
auto-análise, reclama um novo equilíbrio. Que se fará pela recuperação do
objeto. Não mais na esfera convencional de algo-que-existe-para-o-eu (nível
psicológico), mas na esfera da sua própria e irredutível realidade. O sujeito
só “se salva” aceitando o objeto como tal; como a alma que, para todas as
religões, deve reconhecer a existência de um Ser que a transcende para beber
nas fontes da sua própria existência.
A dimensões sensoriais e perceptíveis em harmonia,
atingindo a síntese com a consciência:
Trata-se de um salto do psicológico para o
metafísico, o Ontológico, salto plenamente amadurecido na consciência da
narradora:
‘Além do mais a “psicologia” nunca me interessou –
escreve Clarice Lispector. O olhar psicológico me impacientava e me impacienta,
é um instrumento que só transpassa. Acho que desde a adolescência eu havia
saído do estágio do psicológico”.
Abre-se a Paixão Segundo G. H. e lêem-se, em
epígrafe, estas palavras de Bernard Berenson:
“ Uma vida completa pode acabar numa identificação
tão absoluta com o não eu que não haverá mais um eu para morrer”.
(**RIO DE JANEIRO**, 18 DE ABRIL DE 2018)
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